quinta-feira, 16 de maio de 2013

O desconforto do conforto


As recentes declarações do “mayor” de Osaca, Toru Hashimoto, causaram uma onda de indignação nos países que mais sofreram às mão do exército imperial nipónico durante a Guerra do Pacífico. Hashimoto afirmou que as “mulheres de conforto”, como eram conhecidas as jovens chinesas, coreanas e filipinas obrigadas a prostituir-se com soldados japoneses, eram “necessárias para manter a disciplina no seio do exército”. Os soldados combatiam todo o dia, arriscando a vida, e portanto à noitinha precisavam de algum “carinho”, mesmo que este fosse providenciado por mulheres que eram obrigadas a fazê-lo – escravas sexuais.

Hashimoto proferiu estas afirmações durante a visita a uma base naval norte-americana na última segunda-feira, onde disse que os soldados americanos deviam considerar solicitar o serviço de prostitutas, de forma de “renovar energias”, recordando que a profissão está legalizada no Japão. O comentário já não caiu bem entre os oficiais norte-americanos, e Hashimoto foi depois fazer pior ao referir-se às “mulheres de conforto”. Isto é mais que suficiente para duvidar da sanidade mental do edil de Osaca. Que se demita é o mínimo que se pede. Uma junta médica que ateste a sua condição psiquiátrica é outra medida a ter em conta.
Este aspecto do passado belicista do Japão requer um tratamento cuidadoso, principalmente porque algumas destas mulheres vítimas de agressão sexual por parte do invasor ainda são vivas. Mesmo tratando o assunto de forma mais racional, inserindo-o no contexto de uma guerra como um dos “excessos” próprios dos conflitos armados entre países é errado. Custa a quem sofreu os horrores da guerra, da ocupação, da destruição da sua pátria e da morte de familiares e pessoas queridas ouvir alguém dizer que “é apenas normal”, ou remeter a tragédia à frieza dos números. O melhor mesmo é ficar calado.

Os maiores derrotados da II Guerra, Alemanha e Japão, são países exemplares num sem número de aspectos. Podemos não gostar de alemães ou de japoneses, ou de ambos, mas duas nações que no passado cometeram crimes horrendos, foram derrotadas e humilhadas, para depois renascerem das cinzas e se tornarem potências económicas é de se lhes tirar o chapéu. Quem visita estes países e depara com o nível civilizacional, cultural e social da sua população custa a aceitar que apenas há 70 anos eram impérios do mal, vilões com uma agenda maléfica, sádicos agressores com planos de dominação global. Campos de concentração, câmaras de gás, experiências médicas como pretexto para a tortura, mulheres violadas e bebés espetados na ponta das baionetas são episódios lamentáveis de um passado que hoje parece fazer parte disso mesmo: do passado.

Os alemães, por exemplo, estão conscientes do seu passado nazi, que provavelmente os envergonha, mas por isso não deixam de ser um povo inteligente, trabalhador e resiliente. Caíram, ergueram-se do tombo e mostraram ao mundo que são um grande país, que quer provar ao mundo que a abnegação e o engenho podem apagar, os pelo menos amenizar, os equívocos da História. A Alemanha foi uma das impulsionadoras da União Europeia, o garante do actual período de paz na Europa, o mais longo de sempre, e é o seu maior contribuinte – quer se goste ou não do seu poderio financeiro, que dita as regras do mercado e ameaça a autonomia dos restantes países europeus. Todos reconhecemos qualidade dos produtos alemães, confiamos nos seus electrodomésticos, nos seus carros, na sua indústria farmacêutica. É um deleite visitar as cidades alemãs onde existe qualidade de vida a valer, onde se preservam os edifícios históricos e se leva a protecção ambiental a sério. Imigrantes de todas as origens escolhem o país para procurar uma vida melhor, onde são bem acolhidos e se integram com facilidade. As referências ao passado belicista foram obliteradas: a suástica é proibida, bem como a saudação nazista e a negação do Holocausto, e até o nome “Adolfo” foi eliminado da lista de nomes permitidos. Os alemães souberam lidar com as marcas que a guerra deixou, e fizeram com sucesso uma fuga para a frente.

O Japão, o outro grande derrotado da Guerra de 39-45, adoptou a mesma estratégia em matéria de reabilitação do tecido económico e social do país. O arquipélago tem uma história riquíssima, e era uma grande civilização, mesmo antes do expansionismo que culminou na explosão das bombas de Hiroshima e Nagasaki, que colocaram um ponto final aos intentos belicistas do Império e fizeram com que regressasse a paz ao mundo. Depois disso os nipónicos arregaçaram as mangas, e tal como os alemães adoptaram a via económica, ao mesmo tempo que se mantinham na linha da frente das mais diversas manifestações de cariz social e cultural. O cinema japonês, mesmo o dos anos seguintes à derrota do exército imperial, é uma referência, e a cultura japonesa uma das mais facilmente assimiláveis no Ocidente. Em termos de civilidade e pensamento progressista o Japão é ainda um oásis na região Ásia-Pacífico; os japoneses são um povo liberal, educado, civilizado e exigente, chegando a levar ao extremo algumas destas características. O empenho dos japoneses em levantar a nação depois da humilhação de 1945 levou-os a que se tornassem a segunda maior economia mundial em finais dos anos 80, depois dos Estados Unidos.

A diferença em relação à Alemanha prende-se exactamente com a atitude perante a História. Os japoneses dão a entender que não se querem retratar dos crimes cometidos pelo seu exército durante a guerra, o que provoca uma natural (e justificada) irritação nas suas vítimas. As romagens de elementos do Governo ao templo de Yasukuni, onde prestam homenagem a criminosos de guerra a que chamam “heróis”, a superficialidade com que o tema é tratado nos manuais escolares ou a forma tímida como demonstram arrependimento deixam a impressão que os nipónicos não querem admitir os erros, ou que estarão a branquear os factos. A China e a Coreia do Sul são os mais vocais nas críticas ao país do sol-nascente. Os coreanos são vizinhos e rivais históricos dos japoneses, se bem que mantêm desde então uma relação de amizade e de cooperação. A animosidade chinesa é mais ou menos recente. O país do meio atravessou durante o pós-guerra um período atribulado, e apenas a recente prosperidade económica explica que venham agora bater o pé e exigir satisfações ao antigo agressor. É preciso não esquecer que, questões históricas à parte, o Japão foi um dos principais parceiros da China nos primórdios da retoma económica. Os próprios chineses, especialmente os das RAE de Macau e Hong Kong, simpatizam com o Japão e com a cultura japonesa.

Se existe algo que a História nos ensina é a aprender com os erros, para que não se venham a repetir. A insistência do Japão em não dar o braço a torcer e apresentar sem reservas as mais humildes desculpas às nações que anexou e agrediu há sete décadas é lamentável. As afirmações do autarca de Osaka são mais do que isso: são condenáveis, e uma punição exemplar faria certamente que outros pensassem duas vezes antes de brincar com a dor alheia. Todos temos uma pequena costela nacionalista. Mesmo nós, portugueses, não encaramos o nosso expansionismo quinhentista da mesma forma que alguns dos nossos críticos. Condenamos o colonialismo, a escravatura e tudo mais, mas procuramos sempre inserir o passado no contexto histórico, de algo que fazia sentido mas que aos olhos dos valores humanistas pelos quais nos regemos é cruel e descabido. Atire a primeira pedra quem nunca errou, o que lá vai, lá vai, e não devemos entrar em pânico e assumir que as reservas que os japoneses mantêm quanto ao admitir o seu passado é indicativo de algum novo plano expansionista e imperialista. É importante que dêm a mão à palmatória, e acredito que o façam um dia, mas não são maus tipos. O tal Hashimoto é apenas um pateta que não os representa.

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