terça-feira, 14 de maio de 2013
Freiras
Urbain Grandier, vítima de manipulação inquisitorial.
Loudun, Poitiers, Oeste de França, ano de 1634. Um grupo de freiras do convento local vem sofrendo há dois anos de um grupo de sintomas que indiciam possessão demoníaca: convulsões, sonhos vívidos e eróticos, gritos histéricos, uma série interminável de comportamentos erráticos. O objecto do seu desejo é o Padre Urbain Grandier, nomeado para a paróquia em 1617. Não faltou muito para que o rebanho levantasse suspeitas sobre o seu pastor: Grandier era o Diabo, e as freiras estariam certamente sob a sua demoníaca influência. A Inquisição encarregou dois padres de investigar o caso, e não foram encontradas provas de possessão ou motivos para realizar qualquer exorcismo. Apesar da teatralidade das freiras, estas não levitavam, falavam em idiomas antigos ou desconhecidos ou demonstravam qualquer outro poder sobrenatural atribuído por Lúcifer. Na pior das hipóteses eram apenas histéricas. Mas isto de nada valeu ao pobre Grandier, que foi preso, torturado e queimado em público na pira inquisitória. Urban Grandier era um homem abastado, poderoso e bem-parecido, e suspeita-se que tudo não tenha passado de uma conspiração urdida pelos seus inimigos, ou por alguém igualmente rico e poderoso que o invejava. Uma das provas contra o padre era um documento forjado onde Grandier teria assinado um pacto com o Diabo. Depois disso as freiras de Loudun foram exorcizadas, e os rituais atraíram turistas de toda a França.
As freiras dos Peste & Sida.
A vocação de freira faz parte do imaginário de todos nós, e não deixa ninguém indiferente. É complicado perceber como uma mulher abdica dos seus direitos mundanos de amar, casar, constituir família e toda a sua liberdade para se dedicar a uma vida de clausura dentro das paredes de um convento, onde a vida deve ser mesmo aborrecida. A fragilidade da sua condição feminina e discrição a que os votos que tomaram obriga fazem delas alvos fáceis da chacota de quem goza os prazeres do mundo exterior. São várias as chalaças sobre freiras, que são vistas como potenciais vítimas de abusos por parte de padres ou outros membros do clero desonestos. Não deve ser nada fácil ter que andar pela rua e escutar impropérios sem ter a possibilidade de responder com um estalo ou uma biqueirada nas partes baixas do agressor. A passividade das freiras da actualidade contrasta certamente com a matreirice das freiras de Loudun, que de frágeis e subsmissas teriam muito pouco.
As freiras e a vida conventual são concomitantemente exploradas pela arte, nomeadamente pelo cinema. Pedro Almodôvar realizou em 1983 o filme “Entre Tinieblas”, que conta a história de uma estrela de “rock” que se refugia num convento após a morte acidental do seu namorado, temendo ser a principal suspeita, e onde encontra um grupo de “irmãs” pouco convencionais. Do humor negro ao mais ligeiro, Whoopi Goldberg facturou um dos seus maiores sucessos com “Sister Act”, uma comédia-musical passada num convento onde mais uma vez as freiras mostram um lado mais “humano” e menos ortodoxo. O melodrama “Dead Man Walking”, um dos filmes mais premiados de 1996, conta a história de uma freira (Susan Sarandon) que eventualmente se apaixona por um condenado à morte (Sean Penn), a quem devia supostamente dar conforto espiritual. O filme de 1985 “Agnes de Deus”, baseado na peça teatral homónima de John Pielmier, causou bastante controvérsia, com Meg Tilly a interpretar o papel de uma freira que engravida durante a sua reclusão num convento, sem que existam suspeitos além do próprio Espírito Santo. Um filme essencialmente policial temperado com algum misticismo e intriga psicológica, que não se livrou da ira de grupos religiosos. Almodôvar regressaria ao tema das freiras em “Tudo sobre a minha mãe”, de 1999, onde Penelope Cruz encarna uma freira grávida e seropositiva, fruto do relacionamento com um travesti. Não podia deixar de referir ainda o filme “Cartas de amor de uma freira portuguesa”, uma produção alemã de 1977 que conta com vários actores portugueses no elenco, e baseada numa publicação francesa do século 18, que divulgou cinco cartas de amor escritas por uma noviça do convento de Beja, Mariana Alcoforado.
Apesar do anedotário referido acima, os portugueses respeitam as freiras, mesmo que se abstenham de entender a sua opção ainda considerada “radical” para os nossos costumes. Não há pai que se preze que queira ver a sua filha confinada a um convento, trajando um hábito que a faz parecer um pinguim. Damos o nosso lugar no autocarro ou no metro quando vemos uma freira, e na sua presença abstemo-nos de dizer asneiras ou de falar muito alto. O “respeito” leva por vezes a alguns excessos. Em 1987 o grupo rock Peste & Sida lançou o disco “Portem-se bem”, cuja capa continha a imagem de um grupo de freiras. A mesma imagem acompanhou a digressão nacional da banda, que por essa razão viu os cartazes que anunciavam o concerto serem censurados na Madeira. Mas independentemente da sua motivação, do passado obscuro que as levou a dedicar a sua vida a Cristo, as freiras merecem o nosso respeito, sim. O seu papel no auxílio aos mais pobres e desprotegidos, na educação das crianças originárias de famílias com menos possibilidades, o trabalho humanitário que realizam em cenários de catástrofe e palcos de guerra, onde estão expostas constantemente a perigos diversos, não merecem nada senão respeito. Nem que seja pelo contributo que deram para a nossa gastronomia, com a divinal doçaria conventual. Pouco importa a ordem a que pertencem (eu próprio não consigo distinguir, para mim são todas freiras), as freiras fazem falta. Paz, irmãs. Continuem a ser quem são.
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