sexta-feira, 1 de março de 2013

Cavalo, porque não?


A Europa, ou pelo menos parte dela, está em pânico por causa do escândalo da carne de cavalo. Já abordei o tema no passado dia 11, altura em que foi descoberta a fraude na lasanha da Findus. Como não há fumo sem fogo, foi detectada carne de cavalo noutros produtos que eram vendidos ao consumidor como sendo carne de vaca. Não surpreende: alguém acredita que carne que entra na lasanha é diferente da que entra nas almôndegas, nos hamburgueres ou no empadão de carne congelados? É aquilo que se designa por “all-purpose meat”, ou “carne para todos os fins”. É um pouco como acontece nos restaurantes indianos ou chineses: basta mudar o acompanhamento e o tempero.

Sinceramente não vejo como isto possa ser visto como um problema de saúde pública. Fraude sim, claro, o consumidor tem direito a adquirir aquilo por que paga, e ninguém deve ser obrigado a comer um tipo de carne pela qual não optaria em circunstâncias normais. Em suma, os autores desta brincadeira devem ser responsabilizados por uma fraude que se reveste com contornos de criminalidade organizada. É óbvio que a ideia de substituir carne de vaca por outra inferior, neste caso de cavalo, foi de obter lucro por meios desonestos. Mas daí ao pânico generalizado e ao medo de comer carne de cavalo vai uma grande distância – ninguém deve temer a carne de cavalo. Não é menos saudável que a carne de vaca ou de porco, e não é intragável. Longe disso.

Estive em Cantão em finais de 1999 num restaurante dos arredores onde a especialidade era carne de burro. Para ilustrar bem o que me esperava, estavam mesmo dois simpáticos burrinhos à porta do restaurante, possivelmente alheios ao facto de que se candidatavam a servir de almoço e jantar no dia seguinte. O restaurante assemelhava-se a um prédio semi-acabado, completamente em pedra, composto por dois andares. No térreo, onde estavam “estacionados” os tais burros, existiriam duas ou três mesas em frente a um bar improvisado, onde além do balcão existia apenas uma arca que acomodava as bebidas. No primeiro andar, onde fiquei, existiriam entre oito e dez mesas, todas ocupadas. A iluminação consistia de lâmpadas fluorescentes colocadas visivelmente à pressa, o que dava a entender que esta tasca onde se servia burro funcionava sasonalmente – o que viria a confirmar mais tarde. Não vi a cozinha, mas suponho que ficava nas traseiras, perto de um matagal.

Perfeitamente consciente de que era burro e apenas burro que eu ia ali comer, deixei a minha companheira e respectiva família pedirem a comida à vontade, sabendo que seja qual fosse o pedido, o que vinha seria sempre carne de burro. Não me lembro exactamente em que modos foi servido o asno que nos serviu de manjar, mas lembro-me de ter gostado. Foi até bastante agradável, senão delicioso. A meio do jantar tivemos a honra de conhecer o proprietário, que sorria de orelha a orelha, possivelmente entusiasmado com a presença de um ocidental. Apressou-se a enumerar as qualidades da carne de burro, mais orgulhoso com o negócio que geria do que com algum tipo receio ou preconceito que eu pudesse ter. Eu estava bastante à vontade, a saborear a experiência (e o burro), e nem precisava que me convencessem de nada. Pagámos, e nem foi caro de todo, voltei para o hotel e nem pensei mais no assunto. Dormi bem essa noite, e não me lembro de ter zurrado nem nada.

Quando era miúdo os talhos do Montijo vendiam um tipo de mistura conhecida por “bofes”, imprópria para o consumo humano (o cheiro não deixava qualquer dúvida a esse respeito) e destinada aos cães de maior envergadura que necessitam de mais proteínas. Consistia sobretudo de vísceras, gordura e carne de segunda, que diziam, era de cavalo. Não tenho bem a certeza, mas penso ter comido pelo menos uma vez ao jantar carne de cavalo quando era jovem. E tinhamos consciência disso. Não foi mau, pelo menos da única vez que me lembro. É uma carne que não difere muito em cor, textura e sabor da carne de vaca (daí a confusão), se é que se pode falar de sabores distintos: toda a carne sabe, ora, a carne. É difícil distinguir carne de vaca de carne de veado ou de rena, a não ser que se apresente junto com o prato a cabeça do bicho. Tenho a certeza que muito boa gente terá comido carne de cavalo durante anos acreditando que era vaca, e se o deixam de fazer agora é simplesmente por preconceito, e não porque “não gostam”.

Para alguns o tal preconceito prende-se com o facto de se tratar de cavalo, considerado um animal “nobre”. É lógico que a carne usada nesta fraude não é originária de cavalos de raça puro-sangue árabe, lusitano ou de póneis queriduchos. Vem de cavalos de quinta, aqueles meios rafeiros que puxam charruas e depois de ter utilidade são vendidos à fábrica da cola. E a propósito, sabiam que além da cola também a gelatina é feita com ossos de vaca e de cavalo? Para mim um simples cavalo não é mais nobre que uma vaca, a tal que nos dá o bife. A discussão sobre comer ou não cavalo é semelhante à divisão que existe com outros tipos de carne, como o coelho, a avestruz ou o veado: ou se gosta, ou se “tem pena”. Eu não tenho mais pena do cavalo do que qualquer um destes que referi, que também como sem cerimónia.

Agora que a própria Europa atravessa esta crise que todos sabemos, porque não considerar a carne de cavalo como uma opção mais barata à carne de vaca. Tanto medicos como nutricionistas não reprovam, e em termos de sabor não fica nada a dever aos clássicos bifes bovinos. Os franceses, que têm uma cozinha reconhecida mundialmente, comem carne de cavalo como se não fosse nada, e existem até talhos especializados neste produto. Então os franceses estão sempre certos na arte de bem comer menos quando toca ao cavalo? Quem não quer, não coma, mas quem já comeu “enganado” não deve sentir qualquer espécie de remorso. E digam lá se sentiram a diferença?

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