terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
Driving Miss Chan
Existem em Macau dois grupos profissionais que se distinguem dos restantes na área do operariado: os motoristas e pessoal auxiliar ao serviço da administração. Para quem ainda não percebeu, estou a falar dos condutores e dos serventes da Função Pública. Convivo com eles há quase vinte anos, as histórias que se contam e o que se sabe desta gente daria para escrever um livro. Ou uma boa tese de mestrado, pelo menos, da área dos estudos sociais. Quem são estas formiguinhas que conduzem os carros pretos, limpam os escritórios do Governo e levam os ofícios e restante correspondência de departamento em departamento? Quem são estas peças anónimas da engrenagem da máquina pública? Será que sonham, riem, choram e sofrem como qualquer mortal? O que os torna tão especiais?
Qual é a noção destes cargos, e o que representam? Em primeiro lugar estes agentes públicos são normalmente chineses, residentes locais, cuja maioria não domina outro idioma que não seja o cantonense local. São pessoas de origem humilde, com poucos estudos, mas que entre os mesmos da sua condição social gozam do privilégio de um horário fixo, um salário garantido e outras regalias, além de não serem sujeitos a trabalho muito duro. O salário auferido é muitas vezes superior a 10 mil patacas mensais, o que chega a ser mais do que muitos vencimentos de gente mais qualificada no sector privado, onde se trabalha mais, também. O abraço protector de um posto na administração é visto por muitos cidadãos das classes baixas uma benesse, uma espécie de “sorte grande”.
Façamos uma resenha histórica. A necessidade da contratação de pessoal auxiliar tornou-se mais intensa nos anos 80, período de grande crescimento no território, e onde a maior quantidade de serviços públicos levou a um aumento no número de funcionários, e a consequente mudança para edifícios maiores e mais funcionais. Não existia um critério definitivo para a contratação deste pessoal, e muitos chegaram a entrar pela mão de algum funcionário, chegando este a ser um favor pago daqueles “à Macau” (30 mil patacas nesse tempo, ouvi dizer). Os directores e funcionários de categoria mais alta eram normalmente portugueses, e pouco lhes importava o método de provimento, desde que houvesse um motorista mais um ou dois pés-descalços para limpar o escritório e fazer recados. A comunicação era facilitada pelos funcionários bilingues, e o grau de exigência nunca era muito elevado. Os fins-de-semana eram sempre de descanso, e mesmo algum trabalho fora de horas durante a semana era recompensado com pagamento suplementar. E em que outros empregos existem subsídios de férias, família ou casamento, acesso gratuito a cuidados de saúde e vinte e dois dias úteis de férias por ano? Só em sonhos, para a maioria.
Esta malta é especial e sabe disso. Cruzamo-nos tantas vezes com eles, uniforme branquinho, um ar bem disposto típico de quem não precisa de se chatear muito, tiques de gingão, uma tendência natural para um certo “chico-espertismo”. Os motoristas, por exemplo, são uns tipos que chegam a auferir por volta de 15 mil patacas por mês, dependendo do número de anos de serviço e a frequência do trabalho extraordinário. Em regra, um motorista não precisa de passar o dia todo a passear a sua chefia no veículo do serviço. Há dias em que não dirige de todo, e mesmo que se ocupe com outras funções dentro da sua repartição, nunca tem muitas razões de queixa. Tempo livre é coisa que não falta. São normalmente homens, e posso afirmar com certeza quase absoluta que não existe uma mulher motorista ao serviço do Governo da RAEM. É muito improvável, e se existem, então que me desculpem.
Os serventes, ou “pessoal auxiliar” na versão politicamente correcta, não “servem” por aí além. Tempos houve em que os serventes abanavam os amos com folhas de bananeira ou serviam côcos em bandejas de prata, confundindo-se com a condição de mero escravo. A sua função nos dias de hoje resume-se a fazer a limpeza no início e no final do expediente, e estar disponível para alguma outra tarefa mais curriqueira, como transportar documentos ou tirar fotocópias. Nunca lhes é exigido que puxem pela cabeça, ou que se responsabilizem por qualquer acto administrativo. Nem uma lâmpada precisam de trocar, ou sequer preencher uma requisição para o efeito. É só limpar e fazer uns recados, basicamente. E nem sempre o fazem de boa vontade.
Os amigos destes dois grupos são normalmente outros cidadãos com um nível básico de literacia, e nem todos tiveram a mesma sorte. Muitos suam as estopinhas para ganhar o pão, muitas vezes sem a garantia de emprego completamente seguro. Os motoristas e auxiliares dão-se ao luxo de poder fazer planos a longo prazo, conscientes que só perdem o tacho se fizerem asneira da grossa, e mesmo nesse caso gozam dos direitos e da protecção inerentes á condição de agente público. Não surpreende que tantos deles cheguem mesmo a demonstrar uma certa arrogância. Como partilham o mesmo espaço dos restantes funcionários, é normal que façam alguns amigos mais qualificados. Nem a origem humilde ou a falta de cultura geral os impede de participar das conversas ou emitir opiniões sobre os mais diversos temas. Os mais humildes e os bem-lidos conseguem estabelecer quase sempre um diálogo inteligível. Outros falam pelos cotovelos e pouco do que dizem se aproveita. Em alguns casos devia ser proibido abrirem a boca na presença de um papagaio que seja, não vá a ave repetir tamanhas barbaridades. Ao contrário dos motoristas, que são homens, os serventes têm uma grande contingente feminino, um equilíbrio cada vez mais evidente.
As actual geração destes operários é diferente da primeira, a que ainda resta dos tempos da administração portuguesa. Como eram normalmente humildes e até mesmo pobres na juventude, optaram por casar cedo para poder contar com uma parceira com quem repartir a mágoa. Nos anos 90 a abertura iniciada alguns anos antes na China acentuou-se, e o grande continente começou a recuperar de um atraso de décadas. A cidade de Zhuhai, do outro lado das Portas do Cerco, evidencuou um desenvolvimento estrutural notável, ao mesmo tempo que um potencial visitante de Macau poderia beneficiar de um maior poder de compra. A cidade vizinha aproveitou este facto para explorar o mercado da prostituição e das diversões nocturnas, tendo há muito ultrapassado Macau neste tipo de oferta, tanto em quantidade como em qualidade. Os nossos motoristas e serventes, gente deste lado mas com uma ligação forte ao continente, deslumbraram-se com as imensas possibilidades da terra-mãe, e viram a oportunidade de uma “segunda vida”, agora a valer. Afinal tinham acabado de chegar à meia-idade, os filhos estavam criados ou quase, e a estabilidade profissional permitia vôos mais altos. As “segundas famílias” e os divórcios eram epidémicos, a companheira dos tempos mais difíceis eram destronadas por chinesas mais jovens e vivaças, e com isto se desfez muito do tecido social local.
Macau é hoje uma sociedade mais competitiva e menos conservadora, pelo que a carreira de motorista ou auxiliar deixou de ser um exclusivo dos mais pobres ou dos menos educados; tornou-se mesmo numa boa perspectiva para quem completou a escolaridade mínima e não tem uma ambição especial, preferindo o anonimato. Em muitos casos paga tanto ou melhor que alguns empregos nos casinos, e é manifestamente mais tranquilo. Motoristas e pessoal auxiliar, uma espécie que evolui e que cada vez mais se transforma. Convém não os substimar, pois nunca se sabe até onde podem desenvolver algum potencial além do actual laxismo. Eles estão entre nós, oh oh.
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