domingo, 21 de fevereiro de 2016

Chuchú bandéra maquista! Parte IV: Pa únde nos ta vai?


Esta é a quarta e última parte dedicada à controvérsia gerada por declarações de um conhecido elemento desta comunidade, e provavelmente a sua figura mais respeitada e querida, um sentimento que parece ser extensivo a todas as comunidades de Macau. Aguardei cerca de três semanas até abordar este tema, tempo que usei para ler e reler o que foi escrito, quer das reacções, quer de outros textos que dedico ao tópico dos macaenses aqui no blogue, pois penso que a melhor maneira de falar de certos assuntos é de forma desapaixonada, garantindo que não se misturam as coisas da maneira que realmente são, e no que gostaríamos que fossem. É normal que se possa de discordar dos pontos de vistas expostos neste e nos outros três artigos, e nunca ambicionei dar uma resposta ou uma solução para seja o que for, mas caso alguém venha a ler isto, e discorde com qualquer vírgula que aqui esteja, é bem vindo a comentar, mas só pedia que pelo menos lesse tudo, e evitasse leituras transversais, onde pode "tropeçar" em qualquer frase ou ideia fora de contexto. Agradecido.

Quando se fala dos macaenses, ou da comunidade macaense, há uma série de tabus em que é melhor nem tocar, pois pode ferir sensibilidades, mesmo as de quem concorda ou acredita neles. Recapitulando: os portugueses menosprezam os macaenses; os chineses de Macau desprezam-nos; os mandarins da China olham para eles como "uma mancha", uma prova da ocupação de um território chinês por uma potência estrangeira. Tudo isto foi dito, repetido, relembrado, ou demonstrado, quer por uns, quer por outros, ou se calhar todos, e pode ser verdade, ou não, ou em parte. Eu não acredito em fatalismos, e para mim uma, duas, dez ou cem pessoas não representam uma nação ou uma comunidade inteiras, e isto serve para os dois pólos: se há entre os três grupos que referi quem pensa assim, não serão todos, ou sequer uma maioria, e mesmo esses que dizem ter "as suas razões", não será com certeza com TODOS os macaenses, ou sequer com parte deles, e se querem que vos diga, quem se apresta a generalizações desta natureza, pode até ser que não conheça macaense algum, e esteja apenas a recitar alguma ladainha da má-vontade, e sabe-se lá com que finalidade. Às vezes estas coisas fazem-se e dizem-se por cinco tostões, que é mais do que toda a gente vale para certos invertebrados. 

Os macaenses foram teimosamente e orgulhosamente se mantendo como uma comunidade à parte nesta cidade que os viu nascer, e que em virtude do seu estatuto e características singulares, reclamam também esta terra como a sua, e em alguns casos mais sua que do que de mais alguém. O problema foi a família - filhos de um pai remediado e ausente, e de uma mãe "mandona" e tutelar, a roleta da vida ainda os fez ir nascer num cantinho de uma das maiores encruzilhadas da História. Mesmo sem registos concretos que nos dêem conta desse facto, os macaenses existem praticamente desde que os portugueses assentaram arraiais nesta zona do sul da China no século XVI, e depois de um período de "experimentalismo" no campo da miscigenação, que levaram ao "pote" gentes tão diversas como chineses, malaios, filipinos, e até japoneses, e no fundo a primeira definição de "macaense" era basicamente "filho das cachopas orientais que se enroscavam com os portugueses de Macau e arredores" - e não me venham com acusações de "chauvinismo" e o diabo a sete, pois naquele tempo e ainda para mais nesta região, as mulheres eram praticamente uma comodidade, como uma peça de mobília, ou uma cabeça de gado. Ainda bem que se evoluiu daí, ok? (figas). Adiante. 

O conceito de macaense foi-se alterando à medida que a História foi levando uns e trazendo outros, e se formos olhar para os livros que nos relatam a Macau fortificada, encontramos personagens de que hoje só restará algum ADN, nos actuais macaenses, e não só. As primeiras famílias que deixaram descendência que ainda hoje se pode encontrar em Macau terão surgido apenas no século XIX, e nos cem anos seguintes entre as que se extinguiram, e as que foram "absorvidas" pelas famílias chinesas (casos raros de que sabe muito pouco), ou as que perderam representação devido aos fluxos migratórios que dariam origem à diáspora, apareceram outras novas, podendo-se dizer mesmo que teremos uma multiplicidade de gerações de macaenses. Pelos apelidos facilmente se percebe que os portugueses continuavam a ser o "galo capão", e o período mais produtivo terá sido o que antecedeu a retirada da guarnição do Exército Português, em finais dos anos 60, com muitos deles acabando por se radicar no território. Quanto à outra metade, foi predominantemente chinesa, mas não só; há ainda hoje macaenses que se consideram como tal, sem terem qualquer ascendência portuguesa, ou em alguns casos chinesa, em alguns casos por via da conversão ao catolicismo e respectivo baptismo (ironicamente foi a Igreja a principal responsável por esta geração assexuada). Tudo isto vem complicar ainda mais a equação, ficando uma enorme interrogação sobre qual será afinal o produto. E será mesmo necessário uma definição oficial? E quantos macaenses temos hoje actualmente em Macau? Vamos tentar saber, recorrendo para o efeito aos números oficiais, cortesia da Direcção de Estatística e Censos:



Hmmm...não se pode dizer que tenha dado uma grande ajuda para clarificar afinal quantos macaenses vivem em Macau, ou neste caso quantos eram em 2006, data da realização deste Census. De todos estes dados, os únicos que parecem recolher a unanimidade das opiniões sobre "o que é um macaense", é que tanto aqueles que têm ascendência apenas chinesa ou apenas portuguesa não preenchem os requisitos, mesmo que haja quem defenda que o segundo caso pode-se considerar, mas apenas num âmbito muito alargado da definição de macaense. Sem dados concretos que nos auxiliem, uma população flutuante, e uma falta de consenso quanto ao perfil de macaense, será que se pode falar de uma "identidade macaense" propriamente dita? Talvez, vamos ver, mas é exactamente Miguel Senna Fernandes, patriarca de uma das mais antigas famílias macaenses e personagem principal desta mini-série, que se propôs a debater o tema, ficando por saber exactamente saber se a ideia é chegar a uma conclusão definitiva, e em caso afirmativo, o que fazer a partir daí. Num dos artigos que se seguiram à controversa entrevista do dia 4/1, Marques Silva faz uma "provocaçãozinha", uma espécie de "nha nha, toma, toma", ao falar de uma "crise de identidade", ou do "diluir da comunidade" como possíveis explicações para as declarações incisivas de Miguel Senna Fernandes, quem sabe sugerindo que serão a pedra-basilar para uma nova viragem de direcção da comunidade macaense. É no mínimo fatalista falar-se da diluição da comunidade como um sinal do seu fim, pois tem-se vindo a diluir praticamente desde que começou, continuou a diluir-se, e diluindo-se foi, ressurgindo depois, e assumindo novas formas - como o que acabei de dizer ali em cima, um macaense há 100 anos não é o mesmo de hoje. E posto isto, porquanto houve desde sempre  a noção do "macaense", que praticamente nada tem a ver com a actual, nunca deixará de haver - a não ser que se acabem os relacionamentos amorosos entre portugueses, senão com os chineses (e está para lavar e durar), pelo menos com "outros" (ref. census de 2006 da DSES).


Aqui está uma chapa "fresquinha" do III Colóquio da Identidade Macaense  - assim mesmo, com esta denominação. Eu juro por tudo o que quiserem, e se isso ajudar, ponho-me até de joelhos em cima de milho cru partido, batendo com os punhos cerrados no peito em memória dos mártires da revolução, que não vos estou a tentar "ensinar" nada, nem a ser arrogante, ou sequer a apontar para qualquer equívoco que se esteja a cometer da parte de seja quem for. Agora, muito respeitosamente, e prostrado na passadeira do salão do trono em frente ao rei, permitam-me que pergunte o seguinte: o que entendem exactamente por "identidade", e já agora se acham que isso é alguma condição "sine qua-non" para se fazer seja o que for? A sério, isto não chega a ser uma recomendação, sequer, mas  no vosso lugar eu não ligava muito a isso da identidade, ou pelo menos não fazia disso nenhuma prioridade. Fui à primeira reunião subordinada ao tema, e fiquei sem entender muito bem o que se pretendia, ainda que tivessem sido ditas meia dúzia de coisas que se calhar só pecam pela demora, mas e agora? Estão a tentar "descobrir a identidade", como se isso fosse um jogo de Sudoku, ou as Palavras Cruzadas? Realizou-se um "inquérito sobre a identidade macaense", leio eu, e o que se procura saber, exactamente? Se a "identidade" tem comido bem e dormido o número de horas suficiente. Se a intenção inicial era definir, ou procurar, ou detectar, sei lá, a identidade macaense, como é que aparece um inquérito subordinado à mesma? Nesse caso, as conclusões teriam que se retirar com base nos critérios em que assenta essa identidade, a mesma que ainda não se sabe bem qual é, ou do que se trata. Não estou a disparatar, nem a "gozar com a vossa cara", p'la mor de Deus, mas ponham esta sugestão no fundo da caixa, e considerem-na apenas quando já nada resultar, ou combinem-na com outra para a tornar mais digerível: esqueçam isso da identidade. Já têm uma, todos têm, e se por "identidade" entendem uma coisa assim com tradição, um nome que a precede e anuncia, um sinónimo de qualidade, algo como o queijo Castelões ou a água das Pedras, deixem-me mostrar-vos uma coisa:


Calma, não se assustem, são apenas os pauliteiros de Miranda de Douro, que por incrível que pareça, têm tanto em comum com os macaenses que até parece que fazem de propósito. Têm esta tradição que consiste em vestirem-se com a toalha da mesa da sala para andarem aos pulinhos a bater com uns paus uns nos outros, como se estivessem a apanhar moscas invisíveis (e não apanham uma, pasme-se). E sabem o que mais? Têm uma língua super-parecida com o patuá: o Mirandês! E não é tudo: o tal Mirandês é reconhecido como segunda língua oficial em Portugal, e falado por...bom, não vale a pena ver os números, mas é falado em Miranda do Douro e arredores. E isto diz-me o quê? A mim, nada, e para eles também não é "tudo na vida", e aí é que está o meio. Um indivíduo de Miranda de Douro não é obrigado a andar aos pulinhos e a bater com paus, nem a dominar o dialecto Mirandês para se considerar também ele um Mirandês.  Tudo bem, eles andam "à larga", porque não correm o risco de se "diluir", nem têm uma China ao lado que os possa "papar", e perante toda esta largueza, nem dão valor ao bem precioso que têm, e que não interessa a mais ninguém senão a eles. Mas eles pediram alguma coisa? Fazem o que fazem, são eles próprios, e à conta disso são conhecidos - não "famosos", atenção. E se esta tradição de bater com os paus acabasse, apesar de existirem escolas (?) que a ensinam e tudo? Deixariam de ser eles mirandeses? Claro que não, e para mim continuavam a ser o que sempre foram, que eu não sou, e que não me diz nada. Eu tenho a minha identidade, que se calhar não anima festas de casamento, nem se apresenta em arraiais entre a matança do bácoro e a procissão em homenagem à N. Sra. de Ai-Jesus-Apaga-a-Luz, mas não precisa disso para coisa nenhuma, nem eu me sentiria sem identidade caso não fosse devidamente promovida e publicitada. Outro exemplo, numa outra perspectiva:


É possível que haja quem não saiba ou se recorde do nome destes objectos, mas isso não é mau, de todo - é sinal que não vive rodeado de bosta de vaca. Exacto, uns podem conhecer estas tilintantes campainhas por "badalos", mas chamando o que os bois usam ao pescoço pelos nomes, são "chocalhos". Yep, querem ver?


Ali em cima podem ver um artesão fabricante de chocalhos, ou "chocalheiro", e em baixo estão os orgulhosos animais ostentando a sua arte. Sim, orgulhosos a valer, e arte sem aspas - o fabrico de chocalhos tornou-se recentemente Património Cultural Imaterial com Necessidade de Salvaguarda Urgente, classificação atribuída pela UNESCO! Ai não acreditam?


Ali em cima está a notícia, e logo em baixo os representantes da candidatura, festejando o reconhecimento, mugindo de alegria. E agora perguntam-me vocês: porque é que estou aqui eu a chocalhar a arte do achincalho? Perdão, é vice-versa: "achincalhar a arte do chocalho". É que no dia em que se soube desta notícia que deixou em êxtase 16 habitantes da localidade alentejana de Alcáçovas, concelho de Viana do Alentejo, distrito de Évora, uma amizade minha no Facebook comentava o tom jocoso da notícia, que sem mais detalhes que nos informassem da solenidade do evento, resumia-se ao título "Chocalho promovido a Património Mundial da UNESCO". Como o país é mais do que Viana do Alentejo (eu diria antes que é tudo menos isso), há pessoas que associam o chocalho a...como é que eu vou dizer isto? Pronto, associa-se ao gado bovino, mas subentende-se que com algum engenho, está aqui uma mina de ouro em matéria de potencial humorístico. Foi para nosso espanto que subitamente aparecem comentários assaz desagradáveis, não de bois, mas de gente, aos que só faltava mesmo atentar ao pudor da minha amiga (vá lá, é a actriz Graça Lobo, que ainda por cima já é uma senhora, apesar de vivacidade e boa disposição). Não foi com a intenção de me armar em cavaleiro andante, mas sai em contra-ataque, expondo aos referidos cavalheiros o nosso desagravo pelo tom boçal com que se dirigiam a alguém que nem sequer tinha insultado um badalo que fosse - achou apenas piada à notícia, talvez deixando escapar algum desprezo pelos chocalhos, entretanto elevados a Deuses do pasto alentejano - e que se calhar seria mais producente explicarem a razão de tanta indignação. Depois de ficar esclarecido sobre as outras utilidades do chocalho, ou melhor, outra - instrumento musical - agradeci o esclarecimento, e pedi que me indicassem onde  no YouTube ou outro media poderia encontrar algum recital do Kenny G dos chocalhos, ou em alternativa onde podia fazer "download" dos concertos para badalo de Chopin. Nem um balido me deram de resposta, vejam lá. Se calhar já tinham marrado o suficiente, deu-lhes a larica e foram pastar.
E o que tem tudo isto a ver com a tal identidade, o Miguel ou os macaenses? Bem, em relação aos mirandeses, penso que já me fiz entender, e quanto a isto dos chocalhos, e com as devidas distâncias, o que eu queria demonstrar é que se essa "identidade perdida" é o Santo Graal dos macaenses, não vai ser por a descobrirem que o mundo se curva a seus pés. E pensem nisto, se uns têm pauliteiros, outros têm chocalhos para abanar quando fazem "mééé", os macaenses têm coisas únicas que valem muito mais do que tudo aquilo, pelo menos para mim: uma gastronomia que é criação sua, e porque não, o patuá, bolas! Olha o Miguel a liderar a expedição dos salteadores da arca perdida, pensativo e preocupado com o fracasso da expedição e o fim de Macau e dos seus "filhos",  enquanto vai sentado em cima do raio da arca. E reparem nesta designação que é comum atribuir-se aos macaenses: filhos da terra. Assenta que nem uma luva, e nem que se matem conseguem arranjar maneira de encontrar um defeito por onde lhe peguem. O meu caro Marques da Silva, por exemplo, apenas suspeita que tem ascendência que remonta às brumas da História, de vândalos, suevos, árabes, romanos, e com o lusitano Viriato como "matrix". Eu não tenho tanta certeza disso quando me dá para matutar sobre quais eram os tetravôs dos meus tetravôs, pois a minha árvore genealógica só tem pedalada para ir até 1890 e qualquer coisa, e não conheci nenhum dos meus ancestrais que fosse contemporâneo de Viriato. Agora os macaenses, isso sim, a sua origem remonta a um tempo bem assinalado e  documentado, e nem falta sequer mais importante: nasceram em Macau. 

Portanto esta discussão que realizam em salas iluminadas com lâmpadas fluorescentes, com o pretexto de fazer nascer a luz, procura chegar a que conclusão, afinal? Uma definição de identidade, portanto, nada que o mundo esteja propriamente à espera - basta ir à página da Wikipedia em português e escrever "macaenses" e vejam só o que aparece:


Reconhecem ali alguém? A definição de macaense pode não estar ao gosto de todos os paladares, mas nisto são muito parecidos com os portugueses, e já vou explicar porquê, mais à frente. A página está bastante composta, com vários "links" e referência documental acima de qualquer suspeita, e ainda há versões em inglês, chinês, francês e indonésio, entre outras, portanto como podem ver o mundo não está em suspenso à espera da tal identidade, para que se resolva esse intrigante mistério: "quem são os macaenses". Ah, mas já agora queria dar um conselho que pode evitar amargos de boca:

Na eventualidade de visitarem um dia a Escócia, onde além do inglês, os gajos têm também um "patuá" seu, pode acontecer eles perguntarem de onde são, o que é perfeitamente normal. Menos normal é quando lhes disserem que são macaenses, e eles exclamarem qualquer coisa como "ahh...macanese fowk!". Entendo que lhes queiram devolver o ultraje logo de seguida com um "hey, fowk you!", mas como podem ver, aquilo é..."cultural e linguístico". Se não têm ainda uma palavra em patuá para "escocês", podem pregar-lhe uma partidazinha, também, chamando-lhes outra coisa igualmente "picante" - chupa ôvo não, por favor, que à 123245ª vez começa a ficar um bocado...datado. Ou podem dar-lhes um desconto, e sendo escoceses como são, pode ser que estejam constantemente com os copos. Até lhes dá para meter 10 mil macaenses no Peru, vejam só! 


Estas são algumas das ideias que ficaram expressas no colóquio de há quase quinze dias. Sim, concordo com algumas, outras são discutíveis, e agora vamos arregaçar as mangas e, sei lá, produzir memória documental, como sugere o Hugo Cardoso? Nem sugere, eu é que sugiro que ele sugere, pois este "best of" seleccionado pela revista Macau dá quase a entender que se trata de um concurso para "melhor frase curta", algo desse género. Curioso quando o Sérgio Perez menciona o ensino da História de Macau, que no tempo em que fez a sua escolaridade pré-universitária estava condicionada pelo simples facto de não se saber se era pertinente ensiná-la. A culpa não é bem nossa, sabe, e os srs. "reinóis" (eh!) se calhar achavam mais útil que fosse aprender antes os concelhos de Portugal continental, sei lá. Os caminhos de ferro penso que não me ensinaram, mas como o meu caro pode ter percebido sempre que passava pela estação da Porto-Campanhã, está lá o nome bem sinalizado, não tem nada que enganar. Quanto aos reis, não interessa a ninguém saber os nomes de todos, mas por uma questão de contexto histórico, talvez os mais importantes e as suas obras. Estou aqui a divagar, deveras, mas quanto à História de Macau, há uma curiosidade muito interessante, e já digo qual é, em conjunto com estas outras "curiosidades":


Esta nota explicativa consegue explicar muita coisa para lá daquilo que explica (olha que linda aliteração que eu quase fazia sem querer), e encontra-se no fundo da página da Wikipédia dedicada aos macaenses, e como eu já tinha referido antes, os macaenses são conhecidos pelos chineses de Macau por "filhos da terra" (contendo-se para evitar uma referência jocosa à horticultura), enquanto que os chineses de Macau são "ou mun yan", que em português podia-se traduzir para "pessoa de Macau". Caído de pára-quedas ou chegado a meio do filme, podia ser que alguém mais distraído fizesse um reparo do tipo "pessoa de Macau, quer dizer, macaense, certo?". Não sua anta, e é aqui que chegamos ao fim da estação ferroviária quanto a este tema da identidade - se quem entende tudo isto detecta uma identidade própria em Macau, que cada um dos seus residentes partilham, e às vezes nem sabem, porque não é coisa que se quantifique, ou se ponha à venda no eBay. E quanto à História de Macau, reparem naquela última parte da nota, dedicada aos carinhosos epítetos com que são brindados os estrangeiros (e os macaenses podem considerar-se cheios de sorte, atendendo à amplitude do conceito de "estrangeiro" vigente na China: tudo o que não é chinês). A nota chama a atenção para o "racismo" patente naquelas denominações, e para quem olha apenas e não vê mais do que ali está, chamar de bois, vacas e diabos às pessoas pelo simples facto de serem estrangeiros, ou diferentes, dá logo para enfiar as calças dentro das meias, não venham aí as ratazanas do "racismo" e subir-lhes pelas pernas acima. Ainda bem que não referiram o nome pelo qual são tratados os africanos ou os pretos em geral: "hak-kwai", literalmente "diabo-preto". Ainda vinha aí o Spike Lee recitar a proclamação da emancipação ao mesmo tempo que gingava como se tivesse a ter um ataque de urticária (ou eram os ratos do "racismo", que ele trouxe para espalhar por aí).

Agora segurem-se bem à cadeira, que o que vou dizer a seguir pode muito bem fazer qualquer um cair de cu no chão: se eu tivesse uma pataca por cada vez que me chamam "ngau", ou que se referem à minha pessoa por este ternurento miminho, estava rico, pá. O problema é que continuaria a precisar de trabalhar na mesma, pois logo por azar, é por "ngau" que me tratam no serviço. Mas atenção, pois em vez de "ngau-sok", que é um boi muito grande e feio, ainda que orgulhoso do seu chocalho agora património da humanidade, sou antes tratado por..."ngao chai", que é um vitelinho - que queriduchos são os vitelinhos (e deliciosos também). Isto é tão verdade que até há pouco tempo, ou ainda agora mesmo enquanto conto esta curiosidade fenomenal, o nome em chinês que consta à frente do meu apelido burgalês (Crespo), é nem mais nem menos que 牛子 - isso mesmo, "vaquinha", ou "vitelinho" se preferirem.  It's official. Muuu! E como reajo eu a tamanha afronta? Qual afronta, e lá sou eu um desses "reinóis" para quem tudo é feito com a intenção de o destruir, humilhar, enxovalhar, deitar um soporífero na bebida e depois sacar-lhe um rim. No momento em que eu tomei conhecimento deste facto, tinha consciência de que não me estavam a insultar ou discriminar com base na minha origem - e se por "discriminar" se entende "achar diferente", bem, se não forem ceguinhos, é lógico que nem precisariam de me discriminar. Eu é que me auto-discriminava, se não dessem pela diferença.

Não é "racismo" porque para que fosse entendido como tal, seria necessário que lhes fosse ensinado esse conceito, e à luz do etnocentrismo latente do povo chinês, não havia saco onde enfiar tanto "racismo", uma vez que temos 1) eles, e 2) o resto do mundo. E quanto à História propriamente dita, diz-se que "são os vencedores" quem a escreve. Pode ser verdade, e no caso da China, mesmo enquanto o jogo ainda está empatado, vão começando a preparar a festa, pois é como se estivesse ganho - observem a pitoresca situação das ilhas reclamadas pelas Filipinas, e que a China só aceita "negociar entre ambos, desde que fique bem claro que as ilhas lhes pertencem". Hoje aprende-se História de Macau na EPM, se por acaso o Sergio Pérez desconhecia esse facto. Não fosse pelo meu filho estudar lá, eu também nunca teria conhecimento, mas não se pense que é um motivo de orgulho, pois temos que admitir que a História de Macau não é propriamente um fartote, pelo menos no ensino de matriz portuguesa. No ensino chinês, aprende-se História de Macau, e se forem a este artigo aqui da tasca, datado de 2014, deparam com isto:


Reconhecem certamente o personagem, Sulu Sou, famoso activista e parte do elenco de Star Trek New Macau - The New Generation. No cartaz que segura, e onde se lê um "slogan" anti-governo (que mais? e nem é preciso dizer qual governo, que para o efeito qualquer um serve). A ideia ali expressa é basicamente esta: "livrá-mo-nos dos piratas, mas vieram os ladrões". Os piratas, que ali são representados pelos caracteres 海盜, que literalmente significa isso mesmo: piratas. Não sei se aqui são uns piratas fofinhos, como o vitelinho em comparação com o tio-boi, mas nem o facto do rapaz ser geneticamente inclinado para ser do contra explica as coisas de maneira a deitar-lhe a culpa toda em cima, como seria da praxe. Na primeira aula de História de Macau nas escolas chinesas, os jovens "ou mun yan" ficam logo a saber na primeira frase que "Macau era um território chinês até à chegada dos piratas". Deve ser só nas escolas comunas, tipo a Hou Kong, ou isso, certo? Por acaso não sei se na Hou Kong chamam aos portugueses qualquer coisa pior, mas em TODAS as outras, foram os piratas dos nossos ancestrais que aqui desembarcaram no século XVI. Arrrrr! Os miúdos anotam, e com ainda são verdinhos e cheiram a leite de soja, é quase impossível apagar o conceito de que somos mesmo piratas. Mas não pensem que eles levam a mal; os meus colegas, por exemplo, acharam estranha a minha admiração - "sim, sim...é verdade, mas que mal é que tem?". Como o Sergio Pérez deve compreender, interromper a professora ou o professor logo na primeira frase que lhes sai da boca, e ainda por cima em protesto contra o que acabou de dizer, não lhe auguraria um futuro muito risonho no resto do seu percurso escolar. Os tipos são espertos, uh? Sabem-na de cor.

Agora para terminar, pois o tamanho do artigo já assusta, mas só quem não lê, e quem não lê não vê, e não sei quê. Na reportagem da Revista Macau já referida, leio algures que a certo ponto "Elisabela Larrea subiu ao palco e falou em inglês", e nem de propósito, falou da nova geração de macaenses "que não fala português", pedindo para que "não os ataquem". Foi isso que disse Larrea. Larrea disse. Foi dito por Larrea. É divertido dizer Larrea, e fácil também, pelo menos para mim. Não deve ser assim tão fácil para as novas gerações de macaenses, quer falem eles português ou não. O meu filho corresponde à descrição, fala português, mas diria "Laréa", tal como diz "caro" quando quer dizer "carro". Se calhar dizia "carro" corectamente correctamente se estivesse atento a esse pormenor, mas "sai-lhe", porque é uma daquelas especificidades que identificam os macaenses. Identificam, dá-lhes identidade. E porque se justificaria atacar alguém por não saber falar português? Por ser macaense e não falar português? Faria sentido "atacar" Larrea por não falar Euskarra? Podia falar, porque faz parte da identidade com que nasceu, mas se calhar não se identifica com a sua metade basca, e optou pela identidade com que...mais se identifica? Eu não me importo de ter nascido Português, mas não me dá vontade de pular de alegria por esse facto. Serei mau português por não me identificar com os pauliteiros, ou pelos chocalhos, e por isso mereço ser atacado? Pearls for thought - assim todos entendem.

O tempo que levo de Macau não me dá direito nem a um desconto na tarifa do autocarro, quanto mais outra vantagem derivada da longevidade, mas para o que vou dizer a seguir é bastante pertinente: 23 anos. Ok, assim, nos primeiros dez anos que aqui vivi, não abri a boca para me pronunciar sobre NADA que dissesse respeito a Macau, aos macaenses, aos chineses, ou tudo o que não conseguia entender muito bem, pois não estando eu a par do que sentia a gente, não me atrevia a cometer essa desfaçatez. Um dia havia de entender algumas coisas, e de facto assim foi. A primeira peça de patuá que assisti foi em 2008, e a partir daí nunca mais perdi nenhuma. E porque não ia antes? Boa pergunta, pois afinal da primeira vez que fui gostei logo. Talvez não se estivesse ainda preparado, e sabem o que mais, eu não sou pessoa de fazer fretes, ou fingir sentimentos que não tenho, e o pior de tudo, que me tem causado mais dissabores que outra coisa, não sou capaz de dizer que "gosto" de algo quando na verdade não me agradou, ou não me deixou impressionado de todo. Hoje ainda há coisas que não entendo, e que prefiro não comentar. Ficam para depois.

Não sei bem porque razão, pois nunca se justificou tal medida, fui "vacinado" logo que cheguei ao território contra uma certa "raiva" que era produto de um ressentimento do qual eu não tinha uma pevide de culpa - tinha acabado de chegar de Portugal, e não tinha nem tenho hoje qualquer filiação política. Cresci num lugar onde não existiam "guetos", e na escola havia de tudo, como na praça: os pobres, os ricos, os remediados, gordos, magros, pretos e brancos, era o ensino público, e a colocação dependia da área de residência. Em Macau aprendi que não era assim, nem nunca foi. Hoje as gerações antigas que estudaram na Escola Comercial são na maioria funcionários da administração - ou foram. Por outro lado, entre os que estudaram no Liceu, encontramos hoje aqueles profissionais liberais que todos conhecemos, entre eles o próprio Miguel! Já o Colégio D. Bosco, onde estudavam só rapazes, teve o condão de conseguir para um número respeitável deles um emprego na CEM quando terminaram o ensino secundário - era só atravessar a estrada, imaginem.

Não sei quem teve a culpa desta crueldade - mesmo que não seja daquelas em que se "sofre" literalmente - que é predestinar jovens que nem provas tinham ainda dado das suas capacidades. Mas deixem  lá, que isso eu acabei por entender, também. Pode ser culpa do pai ausente, ou da mãe ditadora, que apesar de também não se poder dizer que era presente, estava demasiado perto para que se ousasse colocar pé em ramo verde. No fundo, aprendi que não é tão fácil assim chegar perto de alguém sem levantar suspeitas sobre as intenções que nos levam a fazê-lo, e é pena que pouca gente tenha entendido o porquê destes receios, suspeitas, desconfiança e mal-entendidos. Os macaenses passaram por esse barril de pólvora que foi o século XX, entre uma gestão que nunca decidiu o que fazer com eles, e um futuro do lado de outra que dava provas de não ser totalmente de confiança, nem que fosse pelo facto de ser instável, e foi-lhes dado a escolher: ou continuam macaenses, mas deixam Macau, ou permanecem em Macau, mas não como macaenses. Permitam-me um desabafo, e não será necessário saber português, ou dominar muito bem a língua para perceber: foi foda.

Não tenho problema nenhum com esta "nouvelle vague" de animosidade com coisas que ainda até há pouco tempo eram "uma maravilha", como o ensino do português, ou dos caminhos de ferro, mesmo que não seja preciso ir a correr apanhar o comboio. Fico preocupado, isso sim, com essa vaga de tresloucados que abordam cidadãos comuns e insuspeitos e dizem "olha um chinês!". Uff, ponham os olhos, redondos ou em bico, no que se passa neste momento na Europa, e entendem que isto não é bem "uma coisa de nada". De resto, tudo igual, e para mim continua a ser o mesmo "chau chau pele" de sempre: se não sei porquê, não vou atirar perdigotos para o ar, só porque sim. Caso contrário, nem preciso de pedir desculpa, ou medir as sensibilidades. Desde quando é que se pede desculpa pela sinceridade?

FIM


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