sábado, 6 de setembro de 2014

Catarina-eu-fêmea



Em primeiro lugar gostava de dar destaque ao semanário Plataforma, a mais recente das publicações em língua portuguesa de Macau, dirigida pelo meu amigo Paulo Rêgo, que por acaso não vejo vai para algum tempo. Quando o jornal iniciou a sua publicação em Maio, dediquei um "post" ao facto de não o conseguir encontrar na sua versão impressa, e de não existir uma edição "online", e isso deixou-me um pouco frustrado, pois gostaria de me inteirar do estilo e dos conteúdos. Pelo meio parece que se deram alguns problemas com o patrocínio, mas já vai para algumas semanas que tenho seguido o jornal através da sua edição electrónica (continua a ser complicado encontrar a edição impressa), e tenho gostado bastante - para eu não "gostar bastante" de um jornal este tem que ser mesmo muito mau. Tudo isto para dar os parabéns ao Paulo, e já agora deixar aqui o "link" para quem quiser ir lá espreitar. Já agora para quem preferir a edição em língua chinesa, pode clicar nessa opção no canto superior direito da página.

Agora que estamos todos mais à vontade, tenho um pequeno comentário a fazer em relação a um artigo de opinião desta semana. Dar opinião sobre artigos de opinião é um pouco como fazer as palavras cruzadas que já alguém fez, mas apagaram-se as respostas com uma borracha. Ou nem sempre. Quando se fazem certas asserções com o objectivo de induzir outros menos informados em erro, e em alguns casos fazendo julgamentos precipitados e perigosos - e não é este o caso - como o de afirmar, ou pelo menos insinuar que algo que pode ou não ser ilegal é "crime", sem dar qualquer pista de que se trata apenas de "opinião", é grave. Permitam-me ir mais longe: é porco, e fica a revolver-se no estrume da consciência do seu autor, ou autora. Mas nem me supreendeu quando li, e muito menos quando fui diplomaticamente e em privado discutir o tema com a pessoa em questão que a reacção tenha sido pedântica e arrogante, própria de uma certa escola de jornalismo que se implantou em Macau, que existia antes da transição e que depois se agravou, em que o mérito e o demérito dependem de factores externos, como "quem é", "quais as ligações" e "quanto pagam", e ainda se oferecem serviços de crucificação na praça pública. Pode parecer tentador, mas mesmo não estando sujeito à ética da profissão de jornalista, sei lá, há sítios onde não vou - tremem-me as pernas. Não podendo endireitar uma árvore adulta que já de si nasceu torta, não me resta senão ficar atento, e pelo menos contribuir mesmo humildemente que seja, senão para a reposição da verdade, pelo menos para deter a mentira.

Agora que em termos de "escola" estamos conversados, vou então dizer que artigo de opinião é este a que me refiro, isto é, se alguém ainda não tinha percebido pela imagem em cima: trata-se de "Um passo atrás", de Catarina Domingues. Recordo-me da altura em que esta jornalista chegou ao território, penso que terá sido por volta de 2003, ou um pouco depois, e que a seguir foi para a China trabalhar, mas mesmo assim foi escrevendo amiúde na imprensa de Macau, e da última vez que me lembro terá assinado um artigo de opinião no Ponto Final. A sua temática de eleição é a China, a sociedade chinesa no seu geral, e por vezes consegue humildemente transmitir as suas ideias do ponto de vista de uma ocidental - pertinentemente ou não pouco importa - e outras vezes vai um pouco mais além, e como neste caso particular, excede-se. Não digo que não tenha direito a pensar desta forma, e noutras circunstâncias até lhe ficaria bem, mas aqui é estar a pegar em preceitos incutidos numa civilização milenar e aplicar a sua medida. Podemos achar que há valores que se podem considerar implícitos à nossa condição de seres humanos, mas há situações em que o melhor mesmo é "cada macaco no seu galho", e deixá-los depois mudar de galho, quando se cansarem daquele. Passo a elaborar.

Catarina Domingues conta que a direcção de uma escola na província de Henan publicou uma lista de restrições aos seus alunos, que além de não poderem fumar ou beber (suponho que bebidas alcoólicas), não podem usar telemóvel e para autora o mais grave, não lhes são permitidas demonstrações de afecto entre eles, inclusivé "andar de mãos dadas". Outra escola ainda na Mongólia Interior não deixa alunos do sexo oposto se sentarem juntos no refeitório, e outra ainda em Zhejiang obriga os alunos de sexos opostos a ficarem a uma distância pelo menos meio metro um do outro. Segundo a autora do artigo, os utilizadores das redes sociais ficaram "indignados", e de seguida tira de tudo uma quantidade de conclusões meio estranhas, algo extravagantes, com remissões que nos levam a Mao Zedong e tudo. A associação de causas e efeitos com o respectivo diagnóstico e receita passada seriam fáceis de entender partindo de alguém menos experiente (ou nem por isso, atentendo às diferenças perceptíveis a olho nu), mas para quem está na China há tanto tempo, devia ter já entendido que a "indignação" dos cibernautas não se deve propriamente à restrição em si, mas mais à forma rigorosa e o modo imperativo com que são apresentadas. Quanto a isto das restrições e das imposições a China está neste momento a atravessar por uma situação meio delicada, mas tudo o que possa acontecer em termos de progressos ou atrasos, isso pouco ou nada tem a ver com liberação sexual.

Começando pela concepção de "passo atrás" que a Catarina refere no início do texto, pergunto: onde é que foram dados passos em frente, quanto mais "quilómetros andados"? Deixemos por um minuto a Mongólia Interior ou Henan e olhemos para o exemplo de Macau, onde o pudor e o conservadorismo são de uma intensidade tal que um olhar mais demorado é quase considerado assédio. Não entendo a relação que faz entre o insucesso escolar o facto dos alunos de sexos opostos ficarem à distância de meio metro um do outro quando aqui temos escolas só para rapazes e escolas só para raparigas, e aqui perto de casa tenho uma destas que é considerada das melhores: o Instituto Salesiano, onde só estudam alunos do sexo masculino. Mesmo nas escolas mistas o protocolo é cumprido sem que seja preciso qualquer norma ou aviso, e não é necessário explicar-lhes que o contacto íntimo, mesmo que algo inocente como dar as mãos, ou até passar muito tempo juntos, pode ser interpretado de outra forma, e ambos evitam ficar expostos a rumores, uma vez que prezam a honra. Recordo-me de um episódio tão curioso como lamentável de um casal de namorados, ela com 15 e ele com 17 anos, que foi surpreendido pelo pai dela a ter relações sexuais, ou melhor dizendo, enquanto se recompunham do acto, e já vestidos. O homem chamou a polícia, e mesmo sendo ambos menores de idade, o rapaz não era inimputável e acabou acusado de violação, apesar das súplicas da namorada, que insistia que a relação foi consentida. Não é definitivo que os jovens "sofram" por não poder expressar o seu afecto por outro de que gostam, e para isso basta ver como ficam sobressaltados quando um estrangeiro se aproxima demasiado, ou a forma como facilmente chamam alguém mais ousado de "tarado", e para tal basta um gesto mais brusco ou um comportamento mais irregular. O que nós ocidentais entendemos por "tarado", para eles não tem nome, e é um caso de polícia. As meninas por seu lado entendem uma investida demasiado rápida por parte do rapaz como um insulto, dando-lhe a entender a si e aos outros que ela é "fácil".

E mesmo nos adultos isto é facilmente verificável. Tocar em alguém do sexo oposto é sinónimo de intimidade assumida, e mesmo as mulheres casadas evitam ser demasiado simpáticas com outros homens, mesmo que queiram, pois sabem que têm os olhos todos postos em cima dela. Tenho dois colegas, que acabaram por se casar um com outro eventualmente, que quando começaram a trabalhar juntos era evidente que gostavam um do outro - apesar das tentativas para disfarçar. Foi preciso vários meses para que começassem a namorar, e outro tanto para assumirem a relação. Caso um deles fosse com "muita sede ao pote" seria uma tragédia; ele ficaria "marcado" como um "tarado", e ela como leviana, e provavelmente nem o homem a que se entregou por amor genuíno a respeitaria. Outro caso interessante relatado na rádio de Hong Kong (e isto para mostrar que aqui ao lado não é diferente) teve a ver com um casal de recém-licenciados que casou e não conseguia ter filhos. Razão? Não sabiam como fazer, e pensavam que dormir juntos na mesma cama seria suficiente para que "com o tempo" ela engravidasse. Isto leva-nos também à questão da Educação Sexual, que para nós ou qualquer outra pessoa que entenda do que se trata é uma pretensão bastante válida, mas que para a maioria dos chineses, mesmo os mais jovens, é entendido como "aprender a ter relações sexuais", que se fala apenas da cópula, e as meninas que se quiserem manter virgens devem evitar a Educação Sexual a todo o custo. Já escrevi sobre isto várias vezes, e sinto-me frustrado cada vez que toco neste assunto com os meus colegas ou conhecidos chineses, pois sou imediatamente mal interpretado - e tenho sorte em ser estrangeiro e por isso ter um desconto. Concordo com a Catarina Domingues que tanto os chineses como qualquer outra nacionalidade teria mais a ganhar com alguma flexibilização no campo dos afectos, tratar isto como uma coisa normal, distinguir um abraço fraternal ou um toque carinhoso de uma má intenção, mas tentar mudar as coisas passa do pretencioso e vai a caminho do megalómano.

Com o que eu não posso mesmo concordar é com o paralelo que a jornalista faz entre este pudor e o progresso de um povo, ou aquilo que considera "processo normal de interação e de crescimento". A China foi sempre assim, dificilmente mudará, e tudo o que se vai passando de bom ou mau (mais de mau, infelizmente) não tem nada a ver com as demonstrações de afecto entre adolescentes. Aliás é também fácil de observar a importância que se dá ao desempenho académico, com quadros de honra, "rankings" que incluem top-5, top-10 e em alguns casos a que os alunos com pior desempenho não possam frequentar no ano seguinte a mesma escola, e tudo isto leva a que na semana dos exames os jovens fiquem literalmente trancados em casa, com alguns pais a tirarem férias do trabalho para os acompanhar nos estudos. A referência a Mao Zedong é surrealista. Nem a sua "vida sexual activa" tinha qualquer relação com os costumes, nem ele terá imposto grandes restrições como a Catarina diz - mesmo a política do filho único, com abortos forçados e esterilizações obrigatórias foram posteriores a ele. A hiperactividade sexual do Grande Timoneiro tinha mais a ver com o que ele (e não só) entendia como "ritual" de afirmação do poder. Talvez isso leve a entender que "queria a fruta toda para ele" e nada para os outros, mas na cultura chinesa, e com as condicionantes que já foram aqui expostas, alguém que tenha vários parceiros sexuais é promíscuo, a não ser que seja rico, e nesse caso é "glorioso". Sim, eu sei, isto custa a entender, mas percebe-se quando se olha para os chineses mais abastados que frequentam certos locais como saunas ou clubes nocturnos, e nota-se que não é apenas o líbido que os move.

Espero que não me leve a mal ou que considere que estou a ser paternalista, e se calhar está farta de saber tudo o que disse aqui, e não terá conseguido passar bem a sua mensagem. Mas agora sem me referir à Catarina, acho curioso que algumas vezes sejamos nós, portugueses, a tentar passar esta mensagem libertária a um povo que evidentemente não está muito interessado nela. Até parece que nos esquecemos que também fomos assim ou pior, pois não foi há tanto tempo que desse para esquecer. Ainda hoje estamos presos a alguns conservadorismos bacocos, e nota-se que por vezes aquilo que se considera "liberdade" atira mais para o deboche, como se qualquer imposição de limites fosse, como refere a Catarina Domingues, "um passo atrás". Vivemos oprimidos durante muito tempo, então para afastar esse fantasma optamos por excessos, e muitas vezes caímos no exibicionismo por considerar essa a única alternativa à censura, e no fim acabamos censurados por culpa própria. Esta noção de comportamentos afectivos é um pouco como os sistemas políticos: a democracia pode resultar para alguns, mais ou menos para outros, e não servir para os restantes. Espero que não leve a mal este meu contraponto ao seu artigo, ou o título que dei ao "post" que foi uma coisa que me lembrei assim de repente, e sem maldade. De resto continue o seu bom trabalho, e os meus desejos são de sucesso, e das maiores felicidades.

PS: Mostrei a versão chinesa do artigo a duas pessoas locais que têm aquela língua como a materna (nunca o faria de outra forma) e concluíram que o teor é "excessivo, com uma interpretação pouco exacta da realidade". Mas deixe-me dizer-lhe que até nisto não se alargaram em muitos comentários, para que se veja até onde vai o pudor.

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