quarta-feira, 30 de outubro de 2013
Tão pequeninos, coitadinhos
Da leitura da imprensa de hoje, chamou-me a atenção este artigo do JTM, da autoria do Prof. Luiz Oliveira Dias, subordinado ao tema da toxicodependência, que como se sabe foi discutido em Macau na semana passada com a presença da ex-ministra da saúde de Portugal, Maria de Belem Roseira. O Prof. Oliveira Dias é uma pessoa que muito estimo, foi meu professor, e admiro a sua tenacidade e sobriedade, apesar da idade avançada que já leva. No entanto, e tal como lhe reconheço o direito a expressar a sua opinião, sinto-me eu próprio no direito de discordar, e até denunciar a aproximação simplista e redutora que faz a uma tema tão sensível como o consumo de estupefacientes. Não discordo de tudo o que ele diz, mas há alguns pontos em que o estimado professor e colunista relativiza o tema com uma grave ligeireza. A ver:
"Ora, a meu ver, drogas leves é coisa que não existe pois são o caminho mais directo e mais rápido para as pesadas. Só depende da esperteza do vendedor pois, como se sabe, 85% dos que as experimentam, ficam agarrados à 3ª ou 4ª doses. Digo-o porque, infelizmente o sei pois que, durante uma dezena de anos, tentei ajudar alguém que me era e sempre será muito querido a carregar a sua cruz até ao Gólgota da crucifixação por uma overdose de heroína. E tudo começara poucos anos atrás com uns simples “charritos” dessas tais “leves” tão assassinas como as outras."
Existe uma ideia errada que a designação de "drogas leves" foi cunhada por algum grupo de "amigos da passa" que queriam ver o seu hábito reconhecido e assim apanharem mocas tão grandes que até se esqueciam do próprio nome sem ter a polícia à perna. Nada disso. Existem drogas leves e pesadas da mesma forma que existem bebidas alcoólicas com mais ou menos álcool, refrigerantes com mais açucar e outros "light", conservas com mais ou menos conservantes ou azeite com maior ou menor acidez. As substâncias ilícitas estão tabeladas - mesmo para fins judiciais - conforme o grau de dependência e quanto aos efeitos que provoca no consumidor a curto e médio prazo. Existem drogas que provocam dependência psicológica, e outras que provocam dependência física. As primeiras, onde se inclui a "cannabis" (os "charritos" de que o professor fala) podem provocar no seu consumidor o desejo de a tomar diariamente, mas não o levam a entrar em desespero ou a cometer crimes se não tiver acesso a ela. No máximo fica deprimido, só isso. As drogas pesadas, como a heroína ou a cocaína, provocam dependência física, e a desabituação destas substâncias provocam dores, suores frios, um mal estar geral e um calvário de horrores ao seu utilizador.
Posto isto, é errado considerar que todas as drogas "são a mesma coisa". Não são, e produzir esta afirmação é não estar a levar as coisas a sério, mas infelizmente há muita gente que também pensa assim. São todas más, devemos ficar afastados delas e tudo mais, dou-lhe isso, mas há umas piores que outras. Nem toda a gente que se inicia na "cannabis" acaba por exprimentar heroína. Essa teoria da "gateway drug", de que o utilizador de uma droga menos forte acaba por criar uma habituação tal que mais tarde procura outra droga pior, carece de fundamentação científica. É conversa de café, é "ouvi-dizer". Muito boa gente - alguma gente distinta até - fuma ou fumou "charritos" e nunca ficou "agarrado". Essa de ficar viciado "à 3ª ou 4ª dose" (!) só pode ser produto de desinformação gritante, com toda a certeza.
Como disse, tudo começara anos atrás, com os do seu grupo da Linha (onde morava com a mãe) a fumarem uns “charritos inocentes” das tais drogas leves, como muitos teimam em chamar-lhes. Um dia, quando já estavam bastante apanhados pelo vício, o bandido que lhes vendia a morte – que mais tarde encontrei e a quem esmurrei o focinho ignóbil – anunciou-lhe que o “produto” tinha acabado porque a Polícia o confiscara todo; mas que tinha outras coisas e até melhores – heroína, cocaína, ice, lsd, ketamina, anfetaminas – era só escolherem. Recusaram assustados pois que, além de muito caras, toda a gente sabia que faziam tão mal que até podiam matar. Tanto insistiu, porém – que isso eram histórias dos pais e dos mais velhos, que muito piores eram o álcool que bebiam e os cigarros que fumavam, que até lhes daria a primeira dose…que acabaram por render-se.
Uma coisa que me deixa com curiosidade nesta passagem é o pós-modernismo do traficante que o Prof. Oliveira Dias descreve. Conta-nos um caso ocorrido num tempo que suponho situar-se algures nos anos 80, ou até nos anos 70, mas o "anjo da morte" em questão tem "ice" e "ketamina", drogas cujo uso recreativo é relativamente recente. O distinto professor devia estar apenas a ilustrar o caso nomeando todas as drogas que conhece. Adiante que se faz tarde. Existe a ideia de que o vício é da exclusiva responsabilidade do traficante. Nada mais errado. Um traficante não consegue vender o que seja a alguém que não esteja interessado em comprar. Se com aquela retórica que se lê acima o tipo conseguiu vender o seu produto, então os jovens que o Prof. Oliveira Dias refere são parvinhos. Ele que me desculpe. Um traficante ou um passador não tem desculpa, é um criminoso, mas quem lhe compra droga é normalmente quem a procura.
Cheguei a defender publicamente – e assim continuo a pensar – que, enquanto o seu consumo não for descriminalizado (dizem que, em Macau, ainda tem “um longo caminho a percorrer”, se calhar como o da classificação da violência doméstica como crime público e as eleições directas…), enquanto se não vai ao fundo das razões do problema, os tribunais deveriam considerar esses desgraçados em estado de inimputabilidade transitória sempre que em fase de carência aguda ou sob o efeito de estupefacientes; e, portanto, em lugar de os mandarem apodrecer na cadeia, lhes propusessem o internamento em instituições especializadas. Assim haja vagas em número bastante o que, em Macau, inexplicavelmente continua a não acontecer.
Concordo com descriminalização do consumo sim, e vou até mais longe: todas as drogas deviam ser liberalizadas, quer as leves, quer as pesadas. Só tornando as drogas menos lucrativas a quem as disponibiliza no mercado faz com que deixem de ser produzidas, pois deixa de valer a pena. Enquanto isso não acontece, há barões que enriquecem vendendo por 1000 o que lhes custou 10 a fazer, e quem vai preso são os pequenos traficantes, que são usados por eles, e os toxicodependentes, que são as grandes vítimas. Mas como é que o sr. prof. sugere que se trata um jovem que fume uns "charritos", em vez de o mandar para a prisão? "Internamento em instituições especializadas?". Quer dizer, amarra-se ele a uma cama e administra-se-lhe metadona até que ele deixe de ser "um desgraçado" e volte à sua forma humana?
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