quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Quem somos, realmente? Parte V: o bebé


É sempre uma festa quando está para chegar um bebé. Ai o bebé, vem aí o bebé, vamos encher o bebé de beijinhos e de miminhos, mas primeiro vamos esperar que cortem o cordão umbilical e lhe dêem um banho. Quando uma mulher anuncia que está de esperanças, e essa gravidez foi gerada de forma convencional – ficam de fora as violações, o sexo casual com desconhecidos ou a prostituição sem protecção – ficam todos encantados. A situação ideal: um par de recém-casados na casa dos vinte anos anuncia à família e aos amigos que está a caminho mais um sócio deste clube de gente bonita. Ouve-se um “ohhhh” em uníssono, e olham todos uns para os outros com um sorriso ternurento, e depois batem palmas. Todos pensam no momento em que o bebé vai nascer, e lhe vão comprar roupinha, brinquedinhos, um carrinho, um monte de inhos. Ninguém se lembra que para isto acontecer foi necessário uma sessão de esfolanço, de sexo puro e duro e “hardcore”, finalizada com um tiro certeiro nos ovários da rapariga. Nada disso, pois o sexo é uma coisa suja, e para fazer bebés utiliza-se um outro processo. O papá e a mamã gostam muito um do outro, e o papá põe uma semente na barriguinha da mamã, e assim nasce o menino. Palavras como “canzana”, para não escolher outra mais ordinária, ficam excluídas da origem deste bebé. Há sempre um amigo mais atrevido, o engraçadinho deste grupo de gente ainda manda uma boca ao futuro pai: “sim senhor, ah, seu malandreco”. O noivo pede discrição, “psst...que estão aí os pais dela”, mas uma tia solteirona que escutava remata: “o senhor está mas é bêbado”, ao que o amigo responde: “cala a boca, pêga”. Estes são detalhes sem importância. O que interessa mesmo é o bebé.

Depois de alguns meses e umas tantas horas de dor lacinante da mãe, cuja vagina dilata umas dez vezes o tamanho original, eis o bebé. A primeira imagem do bebé é a de uma criatura frágil, indefesa, irracional, tremenda e hedionda. Borrado de sangue e de ranhoca, vem ao mundo aos berros exibindo a boca desdentada. É lavado e algures a meio deste filme pára de chorar, e ainda um bocado atordoado com tudo o que lhe aconteceu, a primeira coisa em que pensa é nas mamas da mãe. Espectacular. A espécie humana produziu uma criatura semelhante ao porco e ao vitelo, com este último a ter a vantagem de se aguentar de pé pouco depois de vir ao mundo. Não surpreende que nenhum de nós se lembre desta experiência traumática que foi o parto. Foi tão doloroso, embaraçoso e humilhante que a nossa memória o reprimiu. Aqueles pais que filmam o parto – uma situação delicada para a mãe, que depois vai ter um monte de gente a olhar para a sua vulva escancarada quando mostrarem o vídeo aos amigos – deviam era ter vergonha na cara. Fiquem lá fora à espera e fumem 50 cigarros em duas horas, como toda a gente.

Passados poucos dias todos ficam a conhecer o bebé, logo que são publicadas as primeiras fotografias: família próxima, parentes afastados, primos em terceiro grau, amigos do casal e dos avós, amigos dos amigos, colegas dos amigos, primos dos amigos dos colegas, esquimós do Alasca, toda a gente. É o milagre do nascimento de mãos dadas com o milagre do Facebook. Perante a primeira imagem do bebé, aqueles que conhecem os pais opinam sobre com quem é ele parecido. Há quem opte pela simplicidade, e diga que se parece com a mãe ou com o pai – evidente, e seria de estranhar se fosse parecido com o carteiro. Alguns mais observadores encontram semelhanças com o avô, o primo ou o tio, enquanto outros criam um verdadeiro monstro Frankenstein: os olhos da mãe, o nariz do pai, as orelhas do avô, a testa do tio, etc. etc. Pois bem, esta gente não sabe o que diz. Nos primeiros meses de idade os bebés são todos a mesma coisa; quem viu um, viu todos. Claro que alguns são brancos, outros loiros, pretos, asiáticos, com mais ou menos cabelo, mas o rosto é de elefante marinho. Não há recém-nascidos bonitos. Existia o concurso para “Bebé do mês”, mas ninguém imagina um “Recém-nascido do mês”. Seria como um filme de terror.

Todos fomos bebés um dia, só que não nos lembramos. A minha memória mais antiga reporta-se aos 3 anos de idade, mas isto apenas porque sou um génio, mas a maior parte das pessoas não se recorda de nada antes dos 5 ou 6 anos. Os pais, tios, irmãos mais velhos e vizinhas coscovilheiras contam-nos episódios que nos aconteceram quando tinhamos um ou dois anos de idade, e nós sorrimos, agradecidos por nos terem contado que um dia fomos parar ao hospital de urgência porque engolimos um lápis, ou que nos soltámos da fralda e os pais depararam connosco a pintar as paredes do quarto de fezes. Encantamo-nos cada vez que fazemos anos e os pais mostram aos convidados os filmes que fizeram quando tinhamos a inteligência de um cocker spaniel – ou menos do que isso. Se um dia aspirarmos à Presidência da República, quem vai votar em nós quando existem provas de que arrastávamos o gato pela casa toda preso pela cauda?

Ser bebé é ser complicado, é como ser velho, mas ao contrário. São ambos indefesos e vulneráveis, ninguém entende nada do que dizem, regozijam-se quando conseguem andar sozinhos sem o apoio de um suporte, babam-se e usam fralda. A única diferença é que uns estão apenas a começar, e outros estão no fim da linha. São a antítese um do outro, mas recordam-nos que um dia voltámos ao mesmo ponto de onde partimos, e ficamos sem entender bem qual foi o propósito de tudo o que aconteceu pelo meio.

PS: Quem não acredita que foi bebé em tempos, e quer saber quando isto aconteceu, existe um teste que nunca falha. Subtraía a sua idade actual pelo número imediatamente inferior, e descobre com que idade este facto fascinante ocorreu. Se quiser saber o período exacto, tenha como referência a sua data de nascimento: são os 24 meses seguintes. Viu como é fácil?


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