quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O sr. Cheong


Como os leitores que me acompanham já devem saber, mudei de casa há quase três meses, e apesar de considerar o novo lar acolhedor, sossegado e prático, pelo menos para um só inquilino, vem com um defeito que é comum a todas as moradias arrendadas: o senhorio. A maioria dos que arrendam casa em Macau não chegam a ter qualquer contacto com o proprietário do imóvel, a não ser na altura da assinatura do contrato, e às vezes nem isso. Por muito que nos agrade a componente humana que entra no momento da celebração de um contrato, alguns proprietário delegam poderes à agência imobiliária que os representa, e que os ajudou a colocar a casa no mercado. Quem tem mesmo necessidade de falar com o senhorio durante o ano ou dois que os separa do termo do contrato, ou tem saudades da sua linda voz, basta atrasar-se alguns dias no pagamento da renda, e ela liga com toda a certeza. Se morar por perto é até possível que nos faça uma visita. Não que esteja a querer recordar-nos do atraso na renda, nada disso, mas fica preocupado e vai ver se está tudo bem connosco. Se não estamos em casa, é capaz de encostar o nariz à porta para verificar se cheira a cadáver e há necessidade de chamar os bombeiros para arrombar a fechadura.

Infelizmente não tenho a mesma sorte de muitos dos leitores co-arrendatários, que nunca ou raramente põem a vista e o olfacto no senhorio. O proprietário deste andar térreo localizado no meio de um pátio algures na zona do Tarrafeiro vive mesmo ao fundo desse pátio, e tenho contacto frequente com ele: é o senhor Cheong. Aquele na imagem que escolhi para ilustrar este texto é Nosferatu, o vampiro, e não o sr. Cheong, como alguns menos informados poderiam pensar. O sr. Cheong é muito mais feio e assustador que o vampiro alemão da era do cinema mudo. O sr. Cheong é atroz, e faz qualquer caricatura do comerciante chinês mesquinho, avarento, cruel e descurado na aparência e na higiene e a cheirar a doninha parecer incompleta. O sr. Cheong existe, mas não devia existir. É um erro. Uma partida que a natureza pregou ao resto da humanidade.

Este sr. Cheong terá cerca de 50 anos, ou mais, ou talvez um pouco menos, é difícil dizer ao certo. Pode ser que seja mais novo, mas sofra de alguma doença derivada do evidente desprezo pelo seu aspecto e saúde, ou seja muito mais velho, e esteja conservado graças ao bafio e ao cascão que ostenta na pele em tons de cinzento. O sr. Cheong usa sapatos ortopédicos, e o direito tem um tacão mais alto que o esquerdo. Isto leva a que coxeie de forma tão evidente que “coxear” é uma palavra que não se aplica neste caso. O sr. Cheong bamboleia, e desconfio que o tacão mais alto num dos sapatos não lhe tem feito lá muito bem. Antes pelo contrário.

O sr. Cheong vive aqui no pátio, como já referi, e quando mudei veio aqui a casa algumas vezes para retirar alguns trastes que deixou no meio da sala, e tive pena de não ter tirado uma fotografia daquela tralha para ilustrar aquilo que vou dizer: os trastes que o sr. Cheong veio aqui buscar são o paradigma do que ele é realmente. O sr. Cheong é um traste. Como estávamos em Junho e fazia muito calor, os dez metros que o sr. Cheong percorreu da sua casa ao fundo do pátio até à minha, a meio do dito cujo, a juntar aos dez degraus que separam a porta da rua da sala de onde agora vos escrevo foram suficientes para ficar a transpirar como um animal e a deitar os bofes pela boca. Mais uma vez fiquei com pena de não registar esta imagem, pois com um pouco de photoshopping conseguia criar o primeiro híbrido entre um Neanderthal e um búfalo. Talvez seja o choque que me paraliza os neurónios cada vez que o vejo que me leva a ter estas ideias quando já é tarde demais. Demoro a restabelecer a minha integridade intelectual cada vez que tenho um encontro imediato com o sr. Cheong.

O sr. Cheong é proprietário desta casa, da outra aqui ao lado, da sua, e de uma loja ao lado desta, que uma vez tive a oportunidade de espreitar lá para dentro, e está completamente vazia, mas surpreendentemente limpa. Não se pense que o sr. Cheong é rico por possuír todos estas propriedades, pois tal como o próprio sr. Cheong, estes imóveis não valem nada. O sr. Cheong tem uma loja que se intitula “companhia de engenharia” aqui perto, nas traseiras da Travessa dos Colonos, mas não dá para entender muito bem o que se faz ali. A decoração é muito sui generis: mobília chinesa antiga, quadros com pinturas a tinta-da-china, aquário com peixes vivos, pasme-se, uma pele de tigre aparentemente genuína, numa das cadeiras, e à volta da parede no lado esquerdo, junto ao tecto, uma videira de imitação, com uvas de plástico e parras de papel. É nesta loja muito “kitsch” que o sr. Cheong trata dos negócios. É ali que lhe vou pagar a renda no dia 28 de cada mês e ele me passa um recibo.

Uma das coisas boas do sr. Cheong, aliás a única, é que ele próprio se encarrega do pagamento da água e da luz, e depois vem-me cobrar o montante. Desconhecendo no início a modalidade de pagamento a aplicar, estava eu um Sábado à noite muito sossegadinho em frente ao PC, quando por volta das dez horas batem-me à porta com tal vigor que julguei tratar-se da polícia. Como quem não deve não teme, desci a escada e abri a porta, e lá estava ele, qual Corcunda de Nôtre-Dame, de recibo na mão a cobrar-me 450 paus da conta de electricidade. Fitei-o com desprezo, olhos meio cerrados, e expliquei-lhe que não tinha ali o dinheiro, pois ao contrário dele, não guardo as notas debaixo do colchão. Perante esta resposta, fez um sorriso cínico e abriu os braços como um padre quando dá início à missa, gestos que davam a entender que sou um caloteiro e ele tem filhos pequenos em casa à espera daquele dinheiro para comer. Ofereci-me para interromper a minha pacata seclusão sabática para ir até à caixa levantar o dinheiro e depois ia até à loja pagar-lhe. Era isso ou dar-lhe ali uma carga de porrada tamanha, que nem com o auxílio de dois tacões altos voltava a aguentar-se de pé.

Como a casa é antiga e algumas utilidades requeriam conserto, o sr. Cheong ofereceu-se a financiar os arranjos. Parece simpático da sua parte, mas é preciso recordar que a casa é dele, e eu sou apenas o inquilino. Algumas torneiras, condutas e tomadas estavam num estado lastimável, e em alguns casos levantavam sérias dúvidas em matéria de segurança, mas para ele “estavam muito bem, porque funcionavam”. Depois de alguma insistência concordou em pagar a sua substituição, e negociar uma máquina de lavar nova, pois aquela que existia estava para lá de condenada, foi mais difícil do que negociar a libertação dos reféns da embaixada norte-americana no Irão. Houve alguns reparos que eu próprio paguei, e ele nunca chegou sequer a saber, e nem vou falar do que se passou com o frigorífico, senão vou para a cama com azia. Não há dinheiro no mundo que pague a paz e serenidade de não o ter que aturar.

Um episódio surreal deu-se com o chuveiro, que estava avariado. Levou-me à sua loja onde tirou um outro novinho em folha, de uma caixa com dezenas de chuveiros iguais, muito foleiros, com pedras redondas coloridas no cabo e uma saída com uma função de pseudo-hidro-massagem. Passadas duas semanas o chuveiro provou ser uma merda igual ao sr. Cheong, com a água a sair dos lados, molhando a casa-de-banho toda. Não pude deixar de fazer um paralelo entre o chuveiro que jorra água dos lados e a função urinária do sr. Cheong, que com aquele ar sofre da próstata, com toda a certeza. Voltei à loja com o chuveiro deficitário, e muito alterado, o sr. Cheong perguntou-me “o que andei a fazer com o chuveiro”, enquanto segurava o objecto como se fosse uma criança palestiniana morta nos seus braços. Dava mesmo a entender que ia desatar a chorar. Expliquei-lhe que não andei a partir nozes com aquilo, e que a única explicação plausível era o chuveiro ser uma bela bosta. Disse-me então que “na casa dele tinha um chuveiro daqueles há anos”. Pudera, topa-se à distância que não toma banho, como podia estar estragado o chuveiro, se nunca era usado? Limitei-me a dizer que me estava nas tintas para a casa dele, e saí dali com um chuveiro novo. Até ver.

Ao contrário do que seria de esperar, o sr. Cheong é casado, e tem filhos já adultos. Sei isto porque sim, não interessa como. A sra. Cheong, que nunca vi, deve ser igualmente atroz, pelo menos em termos de personalidade. Mesmo que seja uma senhora apresentável, conservada para a idade e até, e agora preparo-me para atravessar a última fronteira, jeitosa, é preciso recordar que estes casamentos não têm nada a ver com amor, atração física ou sexo. É tudo “strictly business”, e saúde conjugal oscila de acordo com a conta bancária conjunta. Os filhos do sr. Cheong, que terão vinte e poucos anos, devem ser janotas, e não porcos, sovinas e marrecos como o pai. Atrevo-me a dizer que se o sr. Cheong tiver uma filha, existe uma possibilidade desta ser bonita, sexy, ou no mínimo com hábitos de higiene…hábitos de higiene, pronto. É comum vermos nos casamentos chineses noivas lindíssimas com pais dignos de figurar no album da família Adams, e nem o fato e gravata do senhor e a maquilhagem da senhora os redimem. É de pessoas como o sr. Cheong que o mundo aguarda pacientemente para se livrar. Mas não lhe desejo mal nenhum, longe disso. Tudo que lhe desejo é muita saudinha. O tacão do sapato encarrega-se do resto.

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