Temos um costume muito piroso de chamar aos aniversariantes “bebés”. Eu ouvia quando era jovem os mais velhos dizer a quem comemorava mais uma Primavera que “tinha nascido hoje” – nesse dia, portanto. Era uma forma carinhosa de dar atenção a quem vivia um dia diferente dos restantes 364 do ano, um dia especial. Dar atenção redobrada a alguém uma vez por ano não custa nada. Afinal não é todos os dias. O nosso aniversariante de hoje comemora a bela idade de 64 anos: é a República Popular da China, fundada neste dia em 1949 pelo revolucionário Mao Zedong.
As últimas décadas, marcadas pelo início das reformas económicas que se seguiram aos delírios ideológicos do maoismo, podem ser consideradas um dos períodos de paz mais longos da China. É certamente o período mais longo de estabilidade, progresso e harmonia desdes 64 anos, ou dos últimos dois séculos, olhando mais para trás. Mas que sabor terá o bolo que o aniversariante corta depois de soprar as velas? Já que falamos da China, e aproveitando a criatividade e a singularidade da gastronomia oriental, eu diria que terá um aroma agridoce. Delicioso mas picante, com um pouco de sal e outro tanto açúcar. Umas vezes deliciado com o suave trago do mel, outras fazendo uma cara feia ao saborear uma fatia com um travo a vinagre. As amendôas estão lá também, tanto as doces como as amargas. Mas quem é este cozinheiro muito louco que nos leva a este carrossel de paladares?
Chegar aos 64 é ter a consciência de que não se goza do vigor e da energia do passado. Redobram-se os cuidados, previnem-se as maleitas sasonais, acrescentam-se agasalhos quando faz mais frios, reduzem-se as gorduras e é tempo de dizer adeus a certos prazeres que sabem tão bem, mas vêm com uma conta cada vez mais difícil de pagar. Não vale a pena pensar na morte, atrair as forças negativas, pois ainda temos muito para dar. Nos tempos que correm alguém com 64 anos é um “jovem”, e que lugar no mundo melhor para envelhecer que o oriente, onde a velhice é associada à sabedoria, e os decanos são tratados com veneração e respeito? Quem não gostava de chegar a velho e ser ouvido, ter os seus conselhos escutados, sem que apareça logo alguém mais novo a chamar-nos de gágás? Envelhecer na casa dos 60 requer alguma cautela, mas não necessariamente implica deixar de viver, ser produtivo e contribuir para a sociedade de qualquer jeito, fazendo o que ainda vai dando para fazer.
A geração de líderes que hoje cumpre o ritual iniciado por Mao e pelos “oito imortais” há 64 anos tem sobre os seus ombros o peso da responsabilidade de cuidar deste idoso, do pai e avô do país que hoje governam, e que apesar de nem sempre ter tomado as decisões mais acertadas, e que isso tenha custado a vida a muitos dos seus filhos, nunca estariam aqui hoje sem ele. São eles que têm a responsabilidade de cuidar dele, garante que viva uma vida longa e próspera, e que dêm atenção aos seus problemas, às viroses que o ameaçam, ao cálcio que vai perdendo e o tornando mais vulnerável às quedas. O bolo de aniversário que hoje se corta tem o sabor dos anos, das vitórias e das derrotas, das conquistas e dos fracassos, e é servido com uma taça de sangue, suor e lágrimas. Pode não agradar a todos os gostos, mas foi o possível com os ingredientes à disposição. E que nunca faltem esses ingredientes, e cabe a quem cuida deste “jovem” sexagenário escolher os melhores da prateleira do supermercado. Parabéns, China, minha velha. E morde as velas para dar sorte.
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