sábado, 20 de maio de 2017

O tufão abanou, mas não arrasou


Miguel Senna Fernandes, o irredutível encenador dos Dóçi Papiaçam di Macau.


Os Doçi Papiaçam di Macau levaram ontem e hoje ao palco do Centro Cultural de Macau a sua nova peça, "Sórti na téra di tufám" - "Sorte em terra de tufão", em português, ou ainda "Stormy luck", na tradução inglesa, o que faz lembrar o título de uma canção de "blues". Antes de passar à peça propriamente dita, gostava de deixar um reparo à organização do Festival de Artes de Macau, onde mais uma vez o espectáculo ficou integrado. Cheguei perto da hora, ainda esperei dois ou três minutos pela minha última parceira (fomos cinco, este ano), e sentá-mo-nos nos lugares ainda antes das 20 horas, e não tive tempo de fazer uma última "mudança de óleo", nos lavabos. Inicialmente isto não parecia constituir um problema, mas vinte minutos depois do início do espectáculo não deu mesmo para aguentar, e precisei de me ausentar da sala. Muito expeditos em me indicarem a saída, foram os seguranças do CC, mas inexplicavelmente fizeram-me esperar à porta cinco minutos (!) quando regressei, já aliviado. Perguntei-lhes o motivo, e explicaram-me que "são as regras". Isto só tem uma explicação: é castigo para quem tem chichi. Coisas de Macau. Adiante.

Sobre o espectáculo dos Dóçi deste ano, mais uma vez gostei, e agora que mais uma vez escrevo esta (modesta) crítica, nunca é demais repetir-me: é quiçá a única manifestação teatral manifestamente genuína "made in Macau". É mesmo possível que se trate até da única coisa que se faz em matéria de teatro propriamente dita, ponto final. Se no ano passado o encenador Miguel Senna Fernandes ousou aventurar-se -e com um surpreendente sucesso - pela área do "music-hall" com "Unga Chá di Sonho", este ano não nos deu música, mas contou-nos antes uma história que terá ficado um pouco aquém das expectativas. Não por culpa do Miguel, que é um amador no sentido do termo - "ama" o que faz - ou do seu elenco, mas notou-se que desta feita foram muitos os obstáculos que os Dóçi encontraram para cumprir com a sua missão anual de preservar o teatro maquista, como vem fazendo há quase um quarto de século (pasme-se).

O enredo era já por si razão para nos deixar a sorrir. Bernardo (José Basto da Silva) é um macaense que nunca teve muita sorte na vida, até ao dia em que ganhou o "Mark-Six", a versão local do Euromilhões. Quem vive deste lado e sabe do que se trata, sabe também que no caso do prémio ser uma avultada quantia, vale a pena ir buscar o prémio a Hong Kong, enquanto no caso de se acertar em três em quatro números, o prémio não chega para cobrir o preço da viagem. A sorte grande saiu a Bernardo, mas azar dos azares, o território encontrava-se sobre a influência de uma tempestade tropical severa, vulgo tufão, e todas as viagens de turbo-jet para o outro lado do Rio das Pérolas foram suspensas. Outra particularidade prende-se com o facto de qualquer pessoa que leve consigo o bilhete com os seis números sorteados possa levantar o prémio, pelo que convém exercer alguma discrição, não vão os "amigos do alheio" querer chamar a si a boa sorte, recorrendo para isso a meios menos, digamos, "lúdicos". Essa foi a mola que impulsionou o enredo central; Bernardo, um homem simples, longe de ser considerado pelos seus e pela comunidade em geral, vê-se subitamente rodeado de gente bem intencionada, que procurava apenas uma oportunidade para deitar a mão ao bilhete.

Agradou-me a ideia, bem como a escolha para o papel principal. José Basto da Silva tem "crescido e amadurecido" como actor, e desta vez foi segundado por outros que na maioria têm já uma enorme experiência nestas andanças. Desde Sónia Palmer a Rita Cabral, verdadeiros "dinossauros" (no bom sentido) dos Doçi, passando pelas habituais presenças de Alfredo Ritchie e José Carion Jr., sem esquecer os regressos, que se saúdam, das experientes Paula Carion e Fátima Gomes, e da jovem promessa Vítor Morais Lau. Não faltaram ainda Aleixo Siqueira, Sharoz Pernencar e Armando Ritchie, bem como Mariana Pereira e Chloé Faulon, que foram estreantes no ano passado, enquanto Ângela Ramos foi uma estreia absoluta. O actor Leon Lou Pui Leong, outro "resistente", voltou a desempenhar o papel de representante da comunidade chinesa de Macau. Era também o único que não tinha qualquer fala no dialecto maquista.

Com todo este material em palco, o que faltou para "Sórti na téra di tufám" levantar voo e se tornar num momento de teatro memorável? Em primeiro lugar, não se pode exigir nem dos Dóçi nem de ninguém que apresentem um trabalho melhor a cada ano que passa. Isso nem os Beatles conseguiram. Este ano a peça não foi má, mas esteve longe de ser uma das mais memoráveis, e vou ficar à espera de ver melhor no próximo ano. Notou-se este ano que houve quem sabe menos tempo de preparação, e é preciso mais uma vez ter em conta que nenhum dos actores em palco é profissional, e que em Macau não existe uma escola de teatro digna desse nome - é daquelas coisas em que "não vale a pena" investir, aparentemente. Fizeram o melhor que puderam, e a mais não são obrigados, e nós só temos que estar agradecidos. Outro factor que não ajudou nada a que "Sórti na téra di tufám" fosse um capítulo memorável na longa história do grupo foi o da legendagem. Ora não batia certo com as falas, ora em outros momentos foi simplesmente inexistente. Eu sei que me vão chamar de "maluco", mas os Dóçi mereciam que alguém investisse neles de modo a poderem trabalhar independentemente, sem depender do Festival de Artes. É uma utopia, eu sei, mas ainda se pode sonhar, ou não?

A habitual crítica social esteve presente, e em alguns casos provocou a gargalhada dos espectadores que encheram a sala do CC. Quando as legendas não falharam, enfim. Algumas das piadas eram algo datadas, correspondentes a acontecimentos locais e mundiais desde o ano passado, como o caso da eleição de Donald Trump, ou o próprio tema principal, os tufões (este ano ainda não tivemos nenhum). Gostei especialmente dos blocos especiais de informação que costumam dar na TV quando é içado o sinal nº 8 de tufão, e aqui parabéns ao Miguel por ter conseguido explorar bem aquela estranhíssima nota de rodapé que costuma passar no ecrã nessas alturas, onde se lê "breaking news" - quais "breaking news"?! O que faltou? Pode ser apenas a minha opinião, mas Sharoz Pernencar, por exemplo, tem um potencial que foi muito bem explorado no ano passado, mas este ano viu-se pouco. Esperava também mais de Vítor Morais Lau, que deixou saudades, mas a quem faltou um papel à altura. Notou-se a ausência (inesperada) de Carlos Anok Cabral, e que saudades de Marina Senna Fernandes, Deus meu. Já nem falo de Germano "Bibi" Guilherme ou José Luís Achiam, outros nomes que fizeram história no grupo.

Outra ausência, mas esta já no departamento da sétima-arte, foi a de Sérgio Pérez, que nos últimos anos havia sido o realizador de serviço nos vídeos do grupo, alguns deles memoráveis, e que podem ser encontrados no YouTube. Mas esta foi uma ausência que passou praticamente despercebida, uma vez que os filmes que os Dóçi costumam apresentar após o intervalo e no fim da peça foram excelentes, um melhor que o outro. No primeiro, destaque para Manuel Silvério, que este ano assumiu as despesas na representação, depois de já ter aparecido em alguns "cameos" em anos anteriores. O segundo foi arrebatador, e chegou quase a provocar ataques de riso na plateia. A ideia foi brilhante, a de fazer uma versão local dos vídeos "America first, outro-país-qualquer second", que foram moda durante algum tempo depois da eleição de Donald Trump para a Casa Branca. Este foi de longe o melhor de todos, uma vez que nenhum deles foi feito para ser levado a sério.

O público fiel ao Patuá, e que vem seguindo os Doçi há alguns anos não faltou, e tenho a certeza que continuará a marcar presença. Este ano não tive a oportunidade de falar com ninguém que tenha ido pela primeira vez, mas aí está, a primeira vez nunca se esquece, e com certeza que quem não conhecia gostou, e ficou cliente. Para o ano há mais, espero, e mau seria se não fosse. Mais uma vez os Dóçi estão de parabéns, ao desempenhar o seu papel de oásis neste deserto cultural, onde em vez de areia temos boas intenções - ou nem isso...


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