Passaram 27 anos no último Sábado que o Exército de Libertação Popular esmagou violentamente os protestos dos estudantes que se vinham realizando durante mais de dois meses na Praça Tiananmen, no centro de Pequim. O mundo acordou em choque no dia 4 de Junho de 1989, quando pela madrugada os militares vieram a mando do regime dispersar os protestantes, e do pouco que se sabe do nada que Pequim deixou saber, é que se registou um número desconhecido de mortos, que pode ter ido das centenas aos milhares. O mundo inteiro censurou a medida extrema adoptada pelo regime chinês na altura, ainda mais atendendo aos ventos de mudança que soprava de leste, que culminaram com a desagregação da União Soviética e o fim da Guerra Fria. Mas a China não é a União Soviética, nem o mundo entendeu ainda as motivações do regime chinês para levar a cabo tamanha investida contra um grupo de jovens que pediam nada mais que abertura e reformas democráticas. De facto não parece que tenham pedido muito, mas transposto à realidade do que é a China, pediam demasiado, isso sim.
Antes que se comecem a tirar conclusões daquilo que escrevi no parágrafo anterior, gostaria de deixar bem claro reprovo e condeno o massacre, lamento as vítimas e considero fundamental que se assinale o aniversário e se faça homenagem à memória dos que perderam a vida. Nem era preciso dizer isto, uma vez que já deixei esta posição bem vincada em várias ocasiões durante os mais de dez anos que mantenho este blogue e o anterior, o "Leocardo", entretanto extinto. O que mudou, e vai mudando cada vez mais é a percepção do que seria a China caso o regime desse lugar ao que muitos julgam ser "uma democracia de matriz ocidental", alguns ingenuamente, outros com segundas intenções. Por outro lado o regime teima em não levar a cabo as tão necessárias reformas que urgem numa era em que a Globalização é uma realidade cada vez mais visível, e o isolamento nunca pode ser uma opção. Assim pessoas vão tomando cada vez mais consciência da realidade, vai sendo difícil ocultar a verdade, e é chegado o ponto em que nem os lustrosos números do crescimento económico chegam para deixar a população satisfeita - querem mais. É apenas normal, uma vez que a ambição, para o bem e para o mal, é uma característica do ser humano. É sim, os chineses são humanos também, digam o que disserem.
Recordo-me de quando numa destas ocasiões, num 4 de Junho qualquer há algum tempo (1999 ou 2000, um destes) ter sido apanhado de surpresa pela reacção intempestiva de um colega meu, um senhor consideravelmente mais velho que eu, chinês de Macau, que se exaltou quando lhe sugeri que era "indecente para as vítimas e suas famílias ignorar a data". Não ficou ressentido ou sequer incomodado com o meu comentário, e na altura foi isso que me deixou intrigado: nem a carapuça lhe serviu, nem retirou das minhas palavras quaisquer segundas intenções. Para ele eu estava a ser simplesmente "ingénuo", mais um estrangeiro que fala de boca cheia daquilo de que sabe pouco, ou do que só procura saber de forma superficial. Logo aqui já dá para começar a entender melhor o porquê dos chineses evitarem o tema. Mas porquê, se parece tudo tão transparente, e não há desculpa para que qualquer pessoa de bem não se indigne perante tão dantesco cenário? E se fosse com eles, com os seus irmãos ou filhos, permaneceriam assim também, aparentemente despreocupados e remetidos ao silêncio? Claro que não, e mesmo se fosse com outros não ficariam indiferentes de todo; indignavam-se, ficavam chocados e quiçá até revoltados. O problema aqui não é passar a porta do bar, que até se apresenta convidativa, dando a entender um ambiente acolhedor. O problema é o consumo mínimo obrigatório, que eles sabem que lhes pode sair caro. Não é "medo" propriamente dito, e o comodismo não explica tudo, é mais receio de "apostar no cavalo errado". Viu-se durante a altura dos incidentes em 1989 a quantidade de "patriotas" de Macau que de um momento para o outro afirmaram o seu apoio ao movimento estudantil, julgando que a queda do regime era apenas uma questão de tempo. Mais tarde precisam de se retratar perante Pequim, mas o mais interessante é que caso tivessem acertado, não era garantido que ficassem bem vistos aos olhos do novo regime. É assim mesmo, complicado, mas vamos lá então tentar perceber um pouco melhor, já que entender tudo é impossível.
O que mudou no regime nestes 27 anos desde os incidentes que culminaram com o banho de sangue em Tiananmen. Muita coisa, mas no essencial pouco, e nem tudo o que mudou foi para melhor. Há poucos anos tivemos académicos estrangeiros a defender que o massacre "atrasou as reformas económicas e políticas que se vinham operando na China", e só pode ser verdade. Desde o eclipse do Maoísmo e com a entrada em cena de Deng Xiaoping, o país transformou-se, com progressos significativos no sentido de alcançar aquilo que ficou designado por "socialismo de mercado", ou seja, um meio-termo entre o marxismo-leninismo e o capitalismo, que favorecesse a produção de riqueza, permitisse mesmo que timidamente o direito à propriedade privada e à posse de bens materiais, mas que mantivesse o estado no controlo das operações, e sobretudo sempre com a última palavra na resolução de eventuais contendas - daí que ainda seja tabu falar-se da separação de poderes, nomeadamente o executivo e o judicial. E o regime sabia disto muito bem, e não foi de ânimo leve que tomou a decisão de avançar sobre os estudantes, mesmo que o então primeiro-ministro Li Ping tenha ficado mal no retrato por ter dado a ordem e nunca ponderado sequer recuar. Durante as semanas que antecederam o massacre, Deng esteve num périplo pela China, reunindo-se com as patentes militares de cada província e outros órgãos do poder local, medindo o apoio que lhe dariam na eventualidade de resolver o problema pela força. No rescaldo do 4 de Junho foi o que se sabe: receios da parte de toda a gente, com maior incidência nas regiões de Macau e Hong Kong, e seria necessário levar a cabo uma longa operação de charme para colocar o país nas boas graças da comunidade internacional. Depois foi o que se viu, com o pragmatismo a falar mais alto e o perfume do dinheiro a encantar os capitalistas ocidentais, bem patente na quantidade de países que cortaram relações com Taiwan nos últimos 20 anos, aceitando o princípio de "uma só China" protelado por Pequim.
O que o Ocidente, ou pelo menos o comum dos ocidentais tirou do massacre de Tiananmen foi apenas isso, nem mais: um regime autoritário e inflexível que não olhou a meios para atingir os fins, que seriam neste caso segurar-se ao poder. Muitos analistas políticos viram no incidente uma pequena vitória da ala conservadora do PC chinês, menos receptiva quanto a reformas, e que aqui terá pintado um quadro negro, contando para isso com a conjuntura mundial, que dava sinais de que a queda do regime de partido único era inevitável. Foi isso também, mas não só. O poder na China é agora, e sempre foi desde tempos imemoriais, disputada por duas forças, que podem ter mudado de capa, de ideologia, de estratégia, mas são sempre duas, e só duas: quem está no poder, e quem o quer obter, destronar o ocupante do trono, e ao mesmo tempo eliminar eventuais rivais e prever um contra-golpe. Toda a história da China, e são cinco mil anos, é feita do exercício totalitário do poder, sem lugar a uma oposição com voz, e muito menos na disposição de dialogar com ela. É na base do "quem não está connosco, está contra nós". Cinco mil anos. Como é que se vai implantar um regime democrático de matriz ocidental, parlamentar, e com eleições livres e sufrágio universal? Já perguntaram a um chinês da China se concorda com a ideia de "uma pessoa, um voto"? Ai sim? Então perguntem a dois, a dez, a cem, que por muitos que encontrem que concordem com essa distribuição democrática do poder eleitoral, existirão outros tantos ou mais que achem que é uma má ideia. Aliás, é bem possível que quanto mais pobre seja um cidadão chinês, mais lhe agrade ter esse poder, o que só pode levar a uma coisa: o aparecimento de candidatos populistas que prometam mundos e fundos aos mais pobres, o Céu, se necessário, e tudo apenas para ter o poder nas mãos. Depois é que são elas.
Antes que me acusem de estar aqui a passar um atestado de incompetência eleitoral ao povo chinês - e nem é necessário que o faça, que ele próprio trata disso - deixem-me perguntar: acreditam MESMO que no caso dos actuais opositores ao regime chegarem ao poder, realizam eleições? Depois daquilo por que passaram, vão abrir assim a mão de tudo, deixando uma decisão dessa importância nas mãos de mil milhões de eleitores, num país mais heterogéneo do que se possa pensar, e que em 5 mil anos nunca tiveram que fazer uma escolha desta natureza? Pode ser que no início digam que sim senhor, é para a loucura, mas com o tempo vão dizendo que "ainda não estão reunidas condições", e ao fim de alguns anos, já não os distinguem dos actuais, a não ser pela retórica, ou pelo simbolismo - mais foice, menos foice, foi-se a fome e veio a vontade de comer. E se antes já estava apreensivo, mais ainda fiquei depois dos últimos episódios de "activismo para a democracia" exibidos sobretudo aqui ao lado em Hong Kong. Guarda-chuvas amarelos, interpretações delirantes de figuras como a desobediência civil, greves de fome que duram apenas até chegar a larica, e muita, mas muita confusão, mesmo entre os próprios promotores das iniciativas que alegadamente diziam "pró-democracia", chegando mesmo ao ponto de ficarem de costas voltadas em pleno "Occupy Central". E mesmo entre a própria população, é de louvar a boa vontade, mas entre os que foram sem saber exactamente ao que iam, e outros que confundem direito à manifestação com autorização para a algazarra, poucos seriam os que tinham consciência plena do que é, ou de como funciona uma democracia.
O regime propriamente dito não ajuda nada, é verdade. Já o disse aqui antes e reitero: preocupa-se cada vez mais com a perpetuação no poder no que nas reformas que precisa de levar a cabo sob pena de ele próprio implodir, e que já eram para ontem. Há dois anos tivemos uma crise que poderia ter tido consequências mais sérias, e na génese da mesma estiveram lutas internas que fracturaram o PC por dentro, e que se podem explicar pelo senão da ideia peregrina de Deng em limitar o exercício do poder a 10 anos. Não só esta medida impede que um governante cessante perca o seu poder e influência na totalidade - olhe-se para o caso de Jiang Zemin e a sua força junto da Comissão Militar Central - como ainda se torna uma espécie de "deadline" para que...bem já se sabe, e para grandes males, grandes medidas, e aí está Xing Jingping e a sua já célebre "limpeza" dos elementos mais corruptos da cúpula do partido, com o pretexto de devolver a confiança à população. Está difícil, e além de começar a ficar farta com as muitas medidas de controlo que lhes limitam a liberdade individual, com a "Grande Muralha" da censura dos conteúdos de internet à cabeça, há este aniversário que se assinalou no Sábado, que é um sol que tentam tapar com uma peneira cada vez mais esburacada. Seria assim tão "perigoso" rever a sua posição, ou mesmo pedir desculpa, sem que isso fosse necessariamente um sinal de fraqueza? A seu favor o regime tem isto que ninguém pode negar: desde que chegou ao poder em 1950, nunca a China teve um período de paz civil na sua História contemporânea. Paz forçada, mas paz, dê por onde der. Dizer que "podia ser pior" não é um argumento despiciendo.
Qual é a minha posição afinal, sentado no muro que divide estes dois pólos tão distintos? Sim, se me permitem, que é tão confortável, apesar da exiguidade do espaço. E já agora, quem disse que é obrigatório tomar um partido apenas "porque sim", mesmo estando completamente alheio à realidade, e logo neste caso, tratando-se desse gigante que é a China? Assinalar o aniversário do massacre de Tiananmen para mim é render um tributo às vítimas, partilhar do pesar das famílias (dentro do possível, pois nunca poderia ser a mesma coisa), e sobretudo não deixar cair a data em esquecimento, para que algo semelhante não se volte a repetir. É isso no fundo aquilo que a História nos ensina, e mesmo não sendo possível garantir que não acontece, esse deve ser o nosso papel - é o mínimo que se exige. Quanto à leitura política e sobretudo o aproveitamento que se faz da data, o caso muda completamente de figura. E penso que já expliquei porquê, agora cada um tira as conclusões que quiser.
"Toda a história da China, e são cinco mil anos, é feita do exercício totalitário do poder, sem lugar a uma oposição com voz, e muito menos na disposição de dialogar com ela. É na base do "quem não está connosco, está contra nós". Cinco mil anos. Como é que se vai implantar um regime democrático de matriz ocidental, parlamentar, e com eleições livres e sufrágio universal? "
ResponderEliminarAi sim?? Então e os Chineses de Taiwan? Não fizeram também parte desses tais cinco mil anos de história?? E não tiveram mesmo assim coragem de avançar com as primeiras eleições directas em 1996?? E não foram também capazes de ultrapassar as grandes convulsões e polémicas dos primeiros actos eleitorais (com seitas secretas, compras de votos e tudo o mais à mistura)?? E não conseguiram passo a passo, lentamente amadurecer e tornar-se no caso de sucesso que temos hoje??
Já sei, vai dizer que são escalas completamente diferentes e que a China é um país bastante mais heterogéneo. Mas também o são países como a India ou a Indonésia (segundo e quarto mais populosos do mundo)! E não conseguem funcionar também com o seu modelo de democracia?
Esta lógica de que os chineses não estão preparados para a eleger livremente os seus líderes é como uma pescadinha de rabo na boca, um ciclo vicioso que acaba por ser um contrasenso.
Não estão preparados e portanto não é ainda altura de iniciar um processo democrático. E como não se inicia o processo, eles continuam a não estar preparados, e por aí adiante...
A verdade é que em pleno século XXI, a China é a única potência mundial que ainda mantem um regime autoritário. Ora, isto é como uma panela de pressão, onde as eleições de 4 em 4 anos são como a válvula de escape das frustações da sociedade. Na China não existe essa válvula... Com o abrandamento da economia, vamos ver quanto tempo isso vai durar.
A-do-rei. Tem tudo a ver (ou haver) com as ideias expressas no post e os exemplos são de primeira água. Salta um provedor mais tarde.
ResponderEliminar