domingo, 8 de maio de 2016

Um chá (en)cantado


Quando a personagem de Camila se apercebeu que havia sido transportada para um outro tempo e espaço, faltava-lhe ter um cãozinho ao lado, de preferência chamado "Toto" - "Toto, parece que já não estamos mais em Macau". E assim é, de facto. A nova peça dos Doçi Papiaçam de Macau, levada à cena no Grande Auditório do Centro Cultural este fim-de-semana no contexto do XXVII Festival de Artes de Macau é - mesmo que involuntariamente - inspirado no Feiticeiro de Oz. E em West Side Story. Ah sim, e é um musical, também, e confesso que temi o pior no momento em que o elenco dirigido (como habitualmente) por Miguel Senna Fernandes desatou a cantar, mas sabem o que mais? Não cantam mal, de todo. Nada disso, e alguns deles surpreenderam mesmo pela positiva. Em "Unga Chá di Sonho" os Doçi arriscam algo de diferente, e não foi mau, não senhora. Safaram-se, mesmo à custa de quem esperava outra coisa, ou pelo menos o costume. Digamos que foi menos do costume e mais qualquer coisa. Vamos lá então à habitual crítica amadora, que vou fazendo já lá vão oito anos, e humildemente peço que não se esqueçam que por ser isso mesmo, amadora, é apenas a minha opinião. E às vezes sou um pateta, ó pois.

Começando pelo título, que deve ter deixado o seu autor a "coçar o piolho" - pelo menos a mim deixou. "Um chá de sonho", na tradução para português, dá a entender que se trata de um chá fabuloso, ou aqui na região "chá" pode ser entendido como um banquete, ou "chá gordo". Já em inglês o título ficou muito mais esclarecedor: "A Tea for a Dream". Confesso que também eu, por muitas voltas que dê, não consigo pensar em nada melhor que "Um chá que faz sonhar" para dar mais sentido à coisa, mas isso, temos que admitir, ficava mal. Coisa de somenos importância. O argumento leva-nos ao Macau antigo, tema recorrente nos trabalhos dos Doçi, mesmo que abordado algo timidamente (como neste vídeo, por exemplo), e que desta vez Miguel Senna Fernandes decide tornar "centerpiece" da peça deste ano, mesmo que para isso fosse necessário recorrer a um expediente um tanto...bem, digamos que não podíamos pedir ao esforçado autor, que é também conhecido no território como advogado e presidente da ADM (Associação dos Macaenses) que renovasse o reportório da ficção científica. Digamos que "foi o que se pôde arranjar".

Assim temos uma jornalista que depois de "vários dias em Macau" viu tudo, desde os casinos aos hotéis de luxo "et all", mas faltou-lhe entender a essência do território, ou seja, "viu tudo mas não viu nada". Dando com um consultório onde ouviu o médico falar português, resolve entrar e entrevistá-lo, na esperança que este lhe pudesse elucidar sobre a história de Macau, ou que pelo menos lhe desse "umas luzes" sobre o que torna  este pequeno território tão especial. O médico oferece-lhe um chá "que lhe deu um bonzo do Cheok Chai Un (Bairro da Mitra)", e que aparentemente continha substâncias alucinogénicas, que fizeram a jovem adormecer e sonhar, e logo por sorte, o sono profundo que lhe induziu o chá "marado" oferecido pelo médico maquista transportou-a a uma época que lhe deixaria mais esclarecida sobre o que é afinal Macau. Aqui entra-se pela novel dialéctica da "identidade macaense". Isto tem muito que se lhe diga; não sou ninguém para avaliar a descrição do "Macau antigo" feita pelo autor, que provavelmente remonta a um tempo ainda anterior ao nascimento de muitos dos actores que encararam personagens tão castiços - e como se devem ter divertido. Não me resta senão confiar no relato de Miguel Senna Fernandes, mesmo que muitos detalhes ainda sejam reminiscentes do tempo em que aqui cheguei, em 1993, o que diz muito de quanto Macau mudou. Cresceu em tamanho mas não é grande coisa, de facto.

Quanto ao conteúdo, ou seja, o enredo propriamente dito, não há nada de mau a apontar, e como já referi, fez-me lembrar um bocado o trama de "Feiticeiro de Oz", ou quem sabe "Peggy Sue Got Married", onde a personagem de Peggy Sue, interpretada por Kathleen Turner, faz uma "viagem" semelhante, ainda que neste caso tenha sido ao seu próprio passado. A incursão pelo estilo do "music-hall" foi sem dúvida inspirada em "West Side Story", onde há uma trama amorosa semelhante, e ao aventurarem-se por estas veredas, os Doçi arriscaram um desastre. Nunca é demais repetir: safaram-se de boa. Para explicar o sucesso, ou pelo menos o não-fracasso desta ventura, estão algumas das opções em termos de "casting", nomeadamente a dupla Armando e Arnaldo Ritchie (o primeiro chegou a fazer parte do conjunto "The Thunders"), e especialmente Mané Crestejo, que é "músico profissional" (as aspas devem-se à estranheza que esta designação me causa, como se falássemos de um dentista). Crestejo, que se estreou no ano passado, será a força motriz da nova vertente musical dos Doçi - Ouso adivinhar sem que ninguém me tivesse dito. A acção situava-se algures entre 1963 e 1965, e as únicas pistas que me levam a esta conclusão são: 1) ainda não existia ponte entre Macau e Taipa e 2) o tema "It's My Party", de Leslie Gore, que se escutava na festa de aniversário que foi o clímax do enredo.

Quanto às interpretações, há muito a dizer, uma vez que tivemos várias estreias. A personagem principal foi exactamente uma delas, e de Cristiana Soares, no papel de "Camila", pode-se resumir o seu desempenho da seguinte forma: "primeiro estranha-se, depois entranha-se". Confesso que não me deu uma boa primeira impressão, mas esse é problema com as primeiras impressões: só se pode fazer uma. O que se notava logo sem sequer prestar muita atenção era o sotaque "yankee", que o guia distribuído pelos espectadores explica com o facto de Cristiana ser luso-americana. E pelos vistos tem muito jeito para línguas, também, uma vez que apesar da tal musiquinha americanóide fala fluentemente português, deu-se bem com o patuá, e segundo me disseram os faladores de cantonês como língua materna que me acompanharam, parece dominar também esse idioma. A interpretação propriamente dita foi melhorando, talvez à medida que o "friozinho na barriga" próprio destas ocasiões ia passando. Foi bom, em suma.

Quanto aos restantes, tivemos Chloé Faulon no papel de "Dora", e apesar de ter nascido na Inglaterra, não se nota nenhum sotaque. Esteve bem, visto que não lhe foi dado nenhum papel "pesado", e até  fica bem aquele registo de criatura simples, inofensiva e angelical - parecia talhada para a sua parte. O mesmo se pode dizer de Mariana Pereira, que fez o papel de "Mariana", a menina mimada filha de uma matriarca macaense, aqui desempenhada por Paula Carion (aparentemente ela não se zanga com os papéis que MSF lhe arranja, sempre de "madrasta da Branca de Neve") . Mariana Pereira foi também uma estreia auspiciosa, e quem me dera poder dizer o mesmo de Adriano Jorge, que deu vida ao personagem de "Jofre", que me pareceu um tanto ou quanto "preso" de movimentos, e sem muita substância. Acho que o problema deve ser meu, pois embirro um bocado com aqueles papéis de "toyboy", que no passado já me fizeram torcer o nariz aos desempenhos de actores que se viriam a revelar muito mais dotados, casos de José Luís Pedruco Achiam e Jorge Basto da Silva. E quanto a este último falemos agora dos "repetentes".

O já mencionado Jorge Basto da Silva, que em anos anteriores foi cabeça-de-cartaz, esteve este ano encarregado da difícil tarefa de...cantar! E cantou bem, pode-se dizer até que encantou. Do seu lado tinha os dois Ritchie, e só faltou ali mais um para termos um "Barbershop Quartet". Assim tivemos um "Maquista Trio", o que também não é mau. Carlos Alberto Anok Cabral ficou com o papel de carteiro, e mais uma vez demonstrou uma naturalidade que lhe parece inata, enquanto que a Alfredo Ritchie, um dos veteranos da "troupe", coube a tarefa de fazer de médico - isso é que deve ter requerido um esforço de representação tremendo, ah? (Para quem não entendeu o tom sarcástico, Alfredo Ritchie É médico). Aleixo Siqueira e Sharoz Pernencar ficaram com a parte cómica do enredo, e mais uma vez estiveram impecáveis. Suponho que o personagem de Simplício, interpretada por Siqueira, deve ser inspirada em alguém que o autor conhecia, ou um personagem da vida social macaense dos anos 60, algo do género. Sharoz teve um desempenho memorável no papel de Baji, um "Pak Tau" que parecia ter sonhos premonitórios, onde em plenos anos 60 visionava "a Taipa e Coloane ligadas numa só", ou seja, o Cotai, que aqui humoristicamente ficou "Tailoane" (ah, ah!), ou ainda "um gigante no mar do Porto Exterior...um pato amarelo!". Esta foi uma das piadas acrescentadas à última da hora pelo autor, juntamente com a "carta do Panamá", que convinha não abrir. Apesar da nova roupagem dada ao trabalho dos Doçi não ser propriamente dada a muita sátira social, não faltaram os habituais remoques inspirados em acontecimentos recentes. Foi na medida certa, tudo bem.

Falemos agora do contingente chinês, ou seja, os actores de língua materna chinesa que têm acompanhado os Doçi nos últimos anos, e que nesta história deram um toque especial à descrição do Macau passado. Eram tempos difíceis, aqueles, quando a prosperidade trazida pela proliferação dos casinos e a "bolha" da especulação imobiliária eram apenas uma miragem, e quem não queria emigrar tinha que fazer pela vida, desdobrando-se por vezes me expedientes diversos para poder sobreviver, enfim. É aqui que entram as antigas profissões a que MSF rendeu homenagem a certo ponto, num já habitual momento de interactividade com o público, e que os meus acompanhantes chineses consideraram "um momento comovente". Bem, se há algo que funcionou bem ali foi sem dúvida a escolha da luz e do som, muito bem colocados. Já o mesmo não se pode dizer do "momentum", pois pareceu-me ter sido "metido" no meio da linha da acção, meio "à pressa". Desculpem-me o preciosismo, mas estávamos a meio da festa de aniversário da tal Mariana, que suponho ter sido pelo fim da tarde, início da noite, e de repente entram os vendilhões e afins, alguns com horários completamente díspares dos restantes, e depois voltamos à festa? Se foi apenas um parêntesis, então ignorem este reparo. Fátima Gomes, ausente no ano passado, regressou encabeçando o elenco "sínico", acompanhada do já veterano Lou Pui Leong, e de um tal Raymond Cheang, a quem gostava de dar nota de destaque. Esteve muitíssimo bem, e não me importava nada de o ver ali novamente, e com mais tempo de palco. Uma surpresa agradável, esta.

Antes de passar ao vídeo, gostaria de falar das ausências em relação aos últimos anos, e que se fizeram notar: Nair Cardoso, Judite Nunes, Herman Comandante e principalmente Marina Senna Ferrnandes, que considero a mais dotada da "entourage" dos Doçi. Não sei se foi por falta de disponibilidade dela, mas se foi por não ter um personagem onde a encaixar, deixe-me dizer-lhe meu caro Miguel Senna Fernandes, isso é o mesmo que ter o Cristiano Ronaldo em grande forma e deixá-lo de fora de um jogo decisivo. Só uma opinião, claro, e se calhar nem foi por aí que o gato foi às filhós, entenda-se. O vídeo, aí sim, parecia que o gato tinha abocanhado as sobremesas da noite de Consoada antes da propriamente dita se realizar. Cheguei a pensar que o sistema de VT do Centro Cultural tinha voltado a falhar, e lá iam os pobres espectadores que insistem em assistir à estreia ficar outra vez a "chuchar no dedo". Mas parece que não, e este ano o único vídeo foi apresentado no fim, e volta a ter o dedo mágico de Sérgio Pérez, que se excedeu em tudo: realização, montagem, edição, tudo. Nem era necessário um nível de representação por aí além, mas já agora diga-se de passagem que tanto Jorge Basto da Silva como Armando Ritchie estiveram em grande plano. O vídeo fez-me rir bastante, e pode-se dizer que a crítica apensa estava muito bem feita. Depois disso cai-se um pouco no "good feeling" e uma conclusão à medida com o tema "Macau Champurado" - julgo que já ouvi aquilo em qualquer parte, não foi?

Este ano, ao contrário dos anteriores, não posso dizer se foi melhor ou pior: foi diferente, pronto. Os Doçi Papiaçam tomam uma nova direcção, e só espero que corra tudo bem, e mesmo que optem por esta faceta musicada, que nunca se alienem da sua matriz, da sátira, daquilo que chamam de "chiste", que afinal é o que tem levado o público ao Centro Cultural, e que no fundo marca um momento sempre alto no moribundo panorama da cultura e das artes em Macau. Obrigado, parabéns, e mais uma vez podem ter a garantia que vou lá estar outra vez no ano que vem. É isso que nos faz correr, ainda, no fundo...

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