sábado, 5 de março de 2016

À torrêra da solêra - o magano do Raposo


Como é que os alentejanos chamam aos caracóis? Aquele animal irrequieto. Esta é uma das muitas anedotas de alentejanos, povo da região sul de Portugal, e cuja definição em termos geográficos entende os habitantes ou naturais dos distritos de Portalegre, Évora, Beja, e parte do distrito de Setúbal, nomeadamente os concelhos de Grândola, Alcácer do Sal, Santiago do Cacém e Sines. É discutível, esta definição de alentejano, e no que me toca a mim, e reitero que esta é apenas a minha percepção das coisas, os alentejanos das anedotas remetem para o Alentejo profundo, do distrito de Beja. Valendo isso o que vale, e sendo Portugal um país pequeno demais para exultações regionalistas, considero-me um orgulhoso "sulista". Nasci em Lisboa por razões de logística, mas passei toda a parte da minha vida antes de vir para Macau no Montijo, na outra margem, onde começa esse imenso chaparral que se estende até ao Algarve, província britânica sob administração portuguesa. E antes que os Algarvios me venham colocar a cabeça a prémio - e já vamos perceber porque digo isto - proponho para quem estiver para aí virado que leia esta singela homenagem que fiz ao Alentejo, em Dezembro de 2012.


Agora a polémica que vem carregada de ironia - ou pelo menos pensava eu, antes de ficar a conhecer mais detalhadamente os seus contornos. O jornalista Henrique Raposo, do Expresso, vai lançar na próxima semana um livro intitulado "Alentejo Prometido", onde segundo o próprio "faz um regresso às origens". O jornalista, que já não é nenhum estreante no que toca a posições controversas, nasceu em Lisboa numa família oriunda do concelho de Santiago do Cacém, e é um daqueles exemplos de sucesso perante todas as contrariedades que implicam crescer e estudar num ambiente onde a marginalidade e a exclusão imperam. Só é pena que não se tenha dotado de mecanismos que a sua condição provavelmente lhe providenciariam, mas pelos vistos não "apanhou". Ou ignorou, quem sabe. É verdade que o livro, escrito ao estilo de um "road movie", é uma perspectiva pessoa do seu autor, e mais um daqueles casos em que se aplica a velha regra do "quem não gosta coma menos". Só que a aqui a sopa de cação transborda da panela, pois de um ponto de vista pessoal, obtido de uma experiência e de um conhecimento igualmente pessoais, Raposo generaliza de uma forma que eu não teria qualquer pudor em considerar "indecente". Infeliz, no mínimo. E só me apercebi disso depois de ter ouvido do próprio as considerações que teceu e que tanta animosidade causaram.


Foi no programa "Irritações", do canal SIC radical (podem ver o vídeo aqui, no Facebook) que Henrique Raposo mete os pés pelas mãos. E quem me conhece ou vem seguindo o blogue sabem muito bem que raramente considero que alguém passa das marcas naquilo que entendo como direito à liberdade de expressão, mas aqui apesar de não infringir essa liberdade que lhe assiste, o jornalista comporta-se como um verdadeiro imbecil. Sim, essa é a palavra que me ocorreu depois de ver a forma leviana, e até diria debochada, como trata temas que se calhar nem deveria abordar, tal é a complexidade dos mesmos para que se possa tratar num simples livro, como ainda generaliza. Como é que alguém que vai passar uns tempos a Santiago de Cacém, pode presumir que em todo o Alentejo o suicídio é relativizado com um indiferente "olha, matou-se". Ou ainda que os alentejanos "não tinham uma palavra para violação", e as mulheres descreviam-na simplesmente como "ele chegou-se perto de mim, e prontos", ou ainda que os pais "não demonstram afecto pelos filhos". E não está a falar dele, ou da sua família, ou de Santiago do Cacém, o que já seria ir um pouco longe demais, mas de TODO o Alentejo. Eu conheço parte do Alentejo, e das localidades onde fui mais que uma vez, ou passei alguns dias, ou mesmo semanas, só tenho maravilhas a dizer, quer do local, quer das pessoas, tudo. A comida é óptima, as paisagens lindas de morrer, e um dos prazeres da minha juventude de que me recordo com saudade era quando passava férias no Algarve, perto de Estói, terra natal da família da minha madrasta, e atravessávamos o imenso Alentejo de carro. É um tesouro natural que ali temos, e com as devidas distâncias, é para nós aquilo que a Amazónia seria para os brasileiros. E depois temos ainda aquilo que parece que só Henrique Raposo viu, e fico sem perceber como, dado o pouco tempo que se demorou para chegar a certas conclusões sobre o Alentejo.


Este é um dos aspectos abordados no livro de Raposo, o banditismo, retratado nesta série de 1990, "Alentejo sem lei", que conta as desventuras de um grupo de malteses, marginais que aterrorizavam o Alentejo até inícios do século XX. À luz da indignação com a obra do jornalista, esta série seria igualmente um "insulto", mas é tão mal produzida e representada que nem como comédia pode ser encarada. Safaram-se de boa, vendo bem as coisas. O que me custou mais a entender, deixando de parte a ligeireza com que o suicídio e os abusos sexuais são tratados, foi como Raposo chegou à conclusão que os alentejanos são "desconfiados", dando a entender que isto terá alguma coisa a ver com esse passado marginal, chegando a fazer até uma comparação com as pessoas do norte. Tudo isto junto deu uma açorda de coentros completamente intragável.


A intenção parece boa, mas o mal estava feito, e parecia irremediável. A apresentação do livro vai ser na terça-feira na livraria Bertrand, mas originalmente o lugar escolhido foi a Galeria Tintas & Tintos, mas o proprietário deste espaço quis desmarcar-se da polémica. E que polémica, já que além da legítima mas insípida petição online no sentido de afastar o jornalista da sua função do cronista do Expresso, houve ainda ameaças de morte, imaginem! Nestas coisas, e eu falo por experiência própria, mesmo que nunca tivesse tido razões para me preocupar, as vozes são mais que as nozes, mas pelo sim pelo não, a polícia vai estar na Bertrand. Nem as papas e bolos mais o Moscatel do costume vão serenar os ânimos. Mas aqui entra novamente a "paixão" excessiva que os portugueses demonstram neste tipo de situações, que acaba por estragar tudo. É pena.


Este grupo no Facebook, "Henrique Raposo - o inimigo nº 1 do Algarve e do Alentejo" é o somatório dos equívocos do jornalista, que em 2014 se tinha "atirado" aos algarvios assinando um artigo onde faz outro exercício de verborreia, e sinceramente não o entendo, e nem que a motivação fosse denegrir as regiões "por encomenda" de alguém se percebia como é que chega a conclusões daquelas, e generalizando como faz, sem qualquer reserva, qual catraio que atravessa a estrada cheia de trânsito a correr, indiferente aos avisos de toda a gente em seu redor. Só que aqui o protesto peca por exagero, quer na forma, quer no objecto, ou seja, mesmo quem não se devia sentir directamente atingido salta na carroça daqueles que teriam razões para se sentirem ofendidos. Alguém acredita que todos os mais de 11 mil membros deste grupo têm alguma ligação ao Alentejo? Ou mesmo a maior parte deles? Quem for lá espreitar vai deparar mais uma vez com o fenómeno que se tem verificado nas redes sociais: o seguidismo de quem pensa que não ter opinião formada sobre um qualquer assunto o torna "invisível", ou que o deixa "excluído" seja do que for. Ah sim, a veia poética popular é também exercitada em quadras atrozes, repletas de obscenidades e referências ao homicídio. Outra vez, a música até podia entrar no ouvido, mas está demasiado alta, e assim torna-se poluição sonora. Dispensa-se.


Esta imagem ilustra bem como certas posições deviam ser diluídas num pouco mais de água, pois estão demasiado "concentradas" para se poderem considerar próprias para consumo humano. A censura e a inquisição é que queimavam livros. Isso é feio, e deixar a obra intacta nas prateleiras das livrarias seria mais que conclusivo, ou se quiserem provava que não servia nem como substituto do papel higiénico. Este senhor na fotografia pode muito bem ser um alentejano, ou não, tanto faz, pois aquela ideia absurda de que o suicídio no Alentejo é natural não se torna numa razão para o homicídio - aí está a ironia que referi no início deste artigo. Em suma, os disparates que Henrique Raposo escreve têm mais razão de ser que estes disparates. Pelo menos o jornalista está a exercer o seu direito à imbecilidade, e nenhum de nós tem o direito de o impedir, ainda mais recorrendo a métodos ilegais, e até criminosos. E não ficamos por aqui, pois até a defesa de Raposo peca por cair num certo ridículo ao enveredar pelo extremo oposto da indignação. Li colegas seus defendendo o direito de Raposo para escrever o que escreveu, e aqui nada a apontar, mas que necessidade havia em tentar provar que aquilo que ele diz "não fica longe da verdade", ou em concordar com certas asserções que de tão patéticas mais valia simplesmente ignorá-las - isto em defesa do direito à liberdade de expressão que assiste ao autor, entenda-se.



A propósito de toda esta polémica, encontrei este vídeo do programa "Sem Moderação" do Canal Q, onde se debate o caso do livro de Henrique Raposo da perspectiva da censura. Gostava de destacar as palavras de Francisco Mendes da Silva, que parecem resumir aquilo que se passa de uma forma directa: os portugueses ainda não estão habituados a lidar com a liberdade de expressão. Não quero dizer com isto que devia-mos voltar à censura, ou estabelecer outros limites à liberdade que não aqueles que já estão bem delineados no Código Penal e na Constituição, mas é preciso educar. Não se pode simplesmente dizer o que nos apetece "à tripa-forra" e acenar com a liberdade de expressão se alguém se mostrar incomodado com o que dizemos, nem "juntar o rancho" e ir pedir satisfações a quem exerceu o mesmo direito que nós. E convém saber o limite entre este valor e aquilo que a lei estipula como sendo um crime, nomeadamente a tendência que se tem notado cada vez mais para embarcar nos discursos de ódio, imbuídos de preconceito, e escudando-se no que chamam "ditadura do politicamente correcto". Não, não e não. O politicamente correcto pode ser bom ou mau, consoante o "politicamente" de cada um, mas o "correcto" é para todos, e o "incorrecto" pode muito bem estar a transgredir a lei. Isto depois "passa", mas fica sempre um amargo de boca. Podem mandar estas bochechas de porco preto para trás, fazem favor, que eu não as quero.


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