sábado, 6 de junho de 2015

A colega


Para quem trabalha na Administração Pública em Macau deve ter mais ou menos a mesma impressão que eu tenho em relação à mudança do elenco do Executivo realizada há seis meses: foi um laxativo. O quê, a imagem é demasiado "suja e feia"? Ok, e que tal um anestésico? Mas opiáceo, e dos mais fortes, daqueles de caixão à cova. Eu diria que se fez um "reset", o que por um lado foi bom, pois "apagou" alguns ficheiros que andavam repletos de "bugs" e outro "malware", e mesmo sem tudo estar completamente operacional e sem falhas, sempre se vai desenrascando. Por outro lado, bem, já dizia o poeta, "e do bem, se algum houve, as saudades". Os tempos mudaram, inevitavelmente, mas as "vontades", bom, algumas só mesmo à força de muito "tem que ser", quiçá com um ou outro "senão vais de carrinho" à mistura, e há ainda as que persistem - são os tais egos, que saíram maiores que a encomenda, os danados. De um modo geral sinto que pelo menos com a mudança de "peças" operada no tabuleiro, muitos levaram com eles os "sapatinhos de gala", e ainda não os deixaram cá fora à espera de quem os engraxe, e o próprio sindicato dos engraxadores aqui do burgo decidiu-se pelo que chamaram de "pausa sabática" - toda a gente sabe que é medo de gastar a pomada no couro errado, isso sim. É caso para dizer que "enquanto o pau vai e vem, folgam as costas", e até se vai trabalhando um pouco melhor sem precisar de atender certos caprichos, ou olhar a sensibilidades, mas pelo meio...bem, pelo meio houve quem tivesse caído em combate. Nadou, nadou, nadou, e quando chegou à praia usou o último para tocar os grãos humedecidos mas quentes da margem, e ali jazeu, ficando a fazer de "patê" às gaivotas. Foi pena. Afinal podiam ter esperado "alguns meses", que em tempo de funcionário público é o mesmo que "um dia ou dois" em tempo normal.

Estou de falar de alguém com quem trabalho. Ou trabalhei. Ou trabalhava, não sei bem o estatuto, pois sobre as intenções da pessoa em causa sei o que sei, e que toda a gente sabe: nada. Mas já lá vamos, que este caso particular é apenas o pretexto, e não a razão deste texto. Em finais do ano passado, mais precisamente entre Outubro e Dezembro, assinei uma série de artigos no Hoje Macau onde tentei passar para o papel algumas ideias daquilo que penso ter aprendido sobre os chineses, e a sua (em alguns casos impenetrável) cultura - e falo da "cultura" de fundo, da matriz, do "ser chinês" e dos mais de cinco mil anos de História que isso representa. Que presunção a nossa, a dos portugueses  - e dos ocidentais em geral, note-se - ao exibir com altivez o orgulho pelo nosso passado, pelas conquistas, os impérios, as marcas que fomos deixando e tudo isso...aos chineses. Porque os chineses, enfim, mais do que o sr. Fong ou a menina Lei, ou da "ché ché" que lava as escadas ou ainda o "ah-sôk" da portaria são muito mais do que aquele figurão de chinelos  de plástico, que dá a impressão que usa os mesmos trapos a semana inteira, e usa as funções expectorantes e olfactivas, assim como o equipamento reservado à degustação para emitir sonoridades que devia guardar para momentos e locais mais recatados. Chegamos mesmo a ousar chamá-los de "bárbaros", dizemos que "não têm modos" ou que "não são civilizados". Eu acho que são isso tudo, ou então não são nada disso. Ou já foram, deixaram de ser, vice-versa, e isto tantas vezes que já nem ligam. Lembram-se quando ainda acreditávamos nas ideologias, políticos, boa vontade, generosidade humana, etcetera? Pois é, eles já mandaram isso tudo à fava ainda antes Viriato ter sido tramado por uns tipos que seriam com toda a certeza "uns gajos de Macau", existisse Macau por essa altura - e existia, mas não era "Macau, Macau", se entendem onde quero chegar.

Se calhar já estão um bocado baralhados com esta conversa toda. O que tem o segundo parágrafo a ver com o primeiro, ou com os funcionários, o Executivo e tudo mais? Pois bem, esta minha colega, que existe e provavelmente alguns de vocês sabem de quem se trata ou pelo menos ouviram falar do caso, fartou-se e deu de frosques. Assim, sem mais nem menos, nem ai, nem ui - e olha eu aqui a dar pistas sobre a identidade da pessoa, quando não devia sequer fazer referência ao caso em particular. E não o farei, de facto, pois como já referi, sei pouco ou quase nada sobre este caso, as motivações, as incidências, e nem assisti sequer a qualquer tipo de desentendimento, altercação, discussão acalorada, desaguisado, "bons dias" não correspondidos, esgares furtivos, nada, nadica de nada. Nem eu nem mais ninguém, acho. Para entender este enredo, faltam as legendas, e já agora com um pianito catita, ficava um clássico da era do cinema mudo mesmo à maneira. Sei que a minha colega, pessoa mais alcalina, neutral e passiva que se possa imaginar, deixou de comparecer ao serviço. Estou a falar aqui de alguém tão discreto que se passaram uns bons dois meses até eu dar por falta dela e inquirir a seu respeito. Foi ao receber uma daquelas respostas "codificadas" em tom muito, mas mesmo muito vago, que me apercebi que o caso era "sério", que o é sempre, quando em vez de se dar uma resposta simples a uma simples pergunta se entra pelos becos e vielas do "isso agora" ou do "ai você não sabe?". Na prática, naquilo que interessa e se traduz em algo de material, a minha colega deixou de vir trabalhar faz alguns meses, não justificou as faltas ou respondeu a qualquer convocatória para esclarecimentos ou qualquer outra missiva. Sei que não morreu nem está para morrer (isso saber-se-ia antes de mais nada), nem que lhe aconteceu alguma desgraça, ou infortúnio na família directa ou por afinidade (idem, ibidem), foi só assim, mais nada, foi um ar que lhe deu.

Desconheço os motivos, mas entendo as razões, que não são para ser entendidas - já disse: cinco mil anos. Impérios? Pfff...eles já viram tantos. Civilizações? Algumas eles nem imaginam ter existido, apagadas que foram para sempre dos anais da História simplesmente porque um primo dormiu com a prima, ou o eunuco se deitou com a mulher do Imperador e ensinou-lhe o verdadeiro sentido de "dar com a língua". Quando acontece connosco algo deste tipo, de desaparecer sem dar ar, é porque existe algum tipo de conflito insanável, irresolúvel, irremediável. Certamente que o funcionário andou à chapada com o chefe, ou lhe chamou nomes feios à mãe, ou algo pior, foi apanhado a roubar, a ter relações sexuais mutuamente adúlteras com um colega, ou por negligência causou danos de monta com efeitos para o bom nome ou a imagem da instituição em causa. Na, nada disso. Todas estas razões não são motivo para "desaparecer", pura e simplesmente. A meio de acabar de enunciar a primeira, já se tinha dado pelo menos um suicídio! Ou dois, ou três! Esta é uma cultura em que tudo e mais alguma coisa pode ser dita sem que se abra a boca. Basta um gesto, um olhar, o "timing" com que se desliga o telefone durante uma chamada, a constância da respiração, o par de sapatos que se usa nesse dia, qualquer coisa de "diferente" já é suficiente para causar um efeito de pânico nas vidinhas que de outra forma são tão cheias de nadinha, coitadinhas. Diz-se mesmo que cada vez que Mao Zedong se preparava para proferir um discurso, só os dez segundos que demorava a limpar a garganta antes de falar davam origem a 2000 suicídios em Xangai (isto tanto pode ser verdade, como dramatização da minha parte). Isto é gente capaz de aceitar desaforo acima de qualquer medida e das duas, uma: ou espera pela oportunidade certa para se vingar, e enquanto esta não chega tenta agradar o mais possível ao seu "ofensor" - às vezes a tal oportunidade nunca chega.

Nada é o que é, ou tão simples quanto parece. Aquilo que para nós pode parecer um simples mal-entendido, uma descarga biliar ou ainda menos do que tudo isso, um mero "desabafo", para eles é uma declaração de intenções e um tratado de princípios escrito com sangue em papel de osso. Se teve uma troca de palavras mais agreste com um deles, mas decide enterrar o machado de guerra ao ponto de humildemente pedir desculpa, e ele ou ela lhe dizem que "já esqueceram o assunto", fique alerta: não esqueceram NADA, e estão meticulosamente a preparar uma tórrida a amarga vingança, que pode muito bem chegar quando você muito menos espera, em forma de uma elaborada e mefistofélica cilada  - ou então uma tarde qualquer liga para o "Vong Kei" mais próximo e paga "chu pa baos" para todos os colegas, menos você. Perde-se uma costeleta frita no pão, e mais importante do que isso, a face. No caso da minha colega, pode-se perder o emprego, ou na pior das hipóteses pode nem ter direito à aposentação compulsiva, direito esse adquirido pelos mais de 22 anos de descontos para o Fundo de Previdência. As verdadeiras razões jazem no segredo dos âmagos de ambas as partes, do alegado ofendido que acusa o ofensor que se recusa a aceitar que ofendeu, eu sei lá. Está tudo mais sereno na Administração, pelo menos é isto que eu sinto. Resta saber se é para durar, ou se estamos perante a acalmia que precede as grandes tormentas.


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