domingo, 5 de abril de 2015

Judas


Este Domingo de Páscoa, e para variar, gostaria de prestar homenagem ao homem sem o qual esta celebração cristã do rito da passagem nunca seria possível: Judas Iscariotes, discípulo, braço-direito e confidente de Jesus Cristo, de quem era amigo íntimo, e que viria mais tarde a trair, em circunstâncias sempre muito mal interpretadas pela maioria dos fiéis. Dos fiéis e não só, pois o próprio nome de "Judas" ganhou uma conotação que nem sempre remete à sua pessoa. Dizer de alguém falso, fingido, traidor e sem escrúpulos, que se vende, muda de ideias, troca de partidos e prostitui as convicções e todo o resto em que acredita conforme aquilo que lhe convém que é um "judas", não traz à memória o próprio Judas Iscariotes. Só que nem esse desprendimento entre o adjectivo e a pessoa redimem o pobre Judas, a quem ficou reservado um papel ingrato na paixão do seu amigo e mestre, e outro ainda pior na forma como se reconta esse episódio cuja veracidade é suportada apenas pelos cânones. A interpretação correcta da traição de Judas só pode ser feita num contexto mais alargado, e é revestida de uma complexidade tal que fica mais fácil aceitar o dogma vigente: a Judas o papel do lobo e a Jesus o de cordeiro. No entanto este capítulo das escrituras, tão fascinante quanto apaixonante, convidam-nos a uma reflexão mais profunda, que nos leva a saber mais sobre nós próprios, sobre a humanidade em geral, e tudo graças a interacção não de dois, mas sim três personagens que compõem este intrigante enredo.

Possivelmente há quem já esteja de crucifixo em punho a lamentar-se da ausência de um Santo Ofício, cujo número tivesse no "auto-dial" do telemóvel prontinho para denunciar este herege que se atreve a encontrar na pessoa de Judas valências que sugerem que se tratava de um soldado ao serviço das forças do bem. Sem dúvida que a Igreja fez mais uma vez um belíssimo serviço de lavagem cerebral, que só me deixa ainda mais confuso quanto às suas verdadeiras intenções: porque carga de água se dão a tanto trabalho para demonizar um personagem quando ficava mais fácil (e era "family friendly", também) contar A VERDADE, que no fim não nos deixa com sentimentos de ódio por ninguém. Antes de passar à minha exposição sobre o que considero uma tremenda injustiça feita a Judas Iscariotes, vou deixar de forma avulsa algumas perguntas às quais talvez muita gente nunca tenha tido a curiosidade de ver respondidas, ou que já lhes ocorreu mas temeram que duvidando estivessem a questionar a força e a validade de fé - estratagema típico da Igreja, tal e qual, sem tirar nem pôr. Aqui estão:

- Se Cristo "morreu na cruz, sacrificando-se pelos pecados do mundo em nome de seu pai, Deus, que o enviou à terra como Seu cordeiro", e tudo isto só foi possível devido à traição de Judas, seria bom ou mau se Judas não tivesse cometido essa traição e Jesus não tivesse morrido "pelos pecados do mundo?".

- Mesma pergunta, mas de uma outra perspectiva. Se Judas NÃO tivesse traído Jesus, pelo contrário, o ajudasse a escapar aos Fariseus e aos romanos e a todas as pessoas que o odiavam e que nem seu sacrifício nos livrou delas, poderia ser CULPADO por Jesus não ter morrido pelos pecados do mundo, como estava destinado a fazer e como era o desejo de seu pai?

- Terceira pergunta, última da trilogia da culpa de Judas. Estaria destinado a Judas, independentemente do papel que tivesse ou das decisões que tomasse, o papel de "mau da fita"? Porquê ele, o mais próximo dos seguidores de Jesus, e em quem este mais confiava? Deve existir uma boa razão...e existe, já lá vamos.

- Porque é Judas condenado e objecto da ira dos fiéis, que vêem nele o "carrasco" do seu Salvador, mas a Pedro, que negou Jesus três vezes, como o último tinha previsto, traindo-o assim, também, mas a este cabe o papel de "porteiro dos Céus", segundo a versão mais tradicional e popular dos muitos prismas por onde se podem olhar os mistérios do divino. É uma espécie de nº 2 da hierarquia dos Céus, encabeçada por Jesus, um "CEO", com Deus a ficar no papel de "owner". Como se vilifica tanto uma traição, enquanto se premeia a outra, que mesmo sendo muito menos grave, não deixa de ser condenável?

- E finalmente, como que em jeito de revelação, acham que Judas QUIS ter este papel de vilão,esta maldição que perdura até hoje, passada de geração em geração? E o próprio Cristo, quereria ele acabar assim? Claro que não, pois estamos aqui a falar de duas pessoas como nós, e não do fantasma Gasparzinho e o seu amigo Brazinha, o capetinha. Quem teve a ideia de nos implicar neste vil enredo, alegando que tudo foi feito com o fim de nos salvar? Quem é o autor deste guião, que nem o mais perverso autor do género do "film noir" se lembraria? Quem pode ser assim tão cruel, afinal?

Começando por responder a esta última pergunta: Deus é quem elaborou esta comédia dos erros, esta tragédia de faca-e-alguidar. Não satisfeita com a crueldade que representa alguém - ou alguma divindade, que é mais grave - mandar o próprio filho ao mundo para se sacrificar seja lá pelo que for, a Igreja resolveu fazer "upgrade" do sofrimento do Messias e da crueldade a que foi sujeito durante o tal Calvário, e para a trama ficar completa arranjou ainda um culpado, como nos clássicos policiais, onde era o normalmente o mordomo, o caseiro, o "chaffeur" ou a servente. Pensando bem, até ficava melhor se tivesse vestido Judas de mordomo ou de "chaffeur", e em vez de Judas podia ser "Jarbas", ou "Alfredo", para quando Jesus dissesse o seu nome ele respondesse: "Sua excelência chamou, milord?". Mistério um bocadinho mal escrito, diga-se de passagem. Eu chamaria-lhe antes de "literatura de cordel", e da mais reles. O que seria uma discussão sobre esse dramático desenvolvimento?

- Então afinal quem é que tramou Jesus? Não tive tempo de acabar de ler o livro todo...
- Foi Judas Iscariotes, que revelou o paradeiro de Jesus em troca de dinheiro.
- De dinheiro? Inédito! Mas olha lá, Judas não é aquele que era como um assessor de Jesus, seu melhor amigo, confidente, e que não tinha qualquer interesse em que ele fosse apanhado e morto, que assim ficava...bem, "desempregado"?
- Esse mesmo, e vê lá tu que Jesus disse-lhe que ele ia fazer isso mesmo, e ele fez!
- Ohh...a ironia....
- Podes crer. E depois de receber o ouro das mãos dos carrascos, Judas...
- ...foi gastá-lo, certo?
- Não, enforcou-se, por não aguentar viver com os remorsos.
- Ah, pronto, era a minha segunda resposta. Um bocado tarde para sentir remorsos, não? Achas que devemos dar-lhe o epíteto de "traidor" e amaldiçoá-lo para toda a eternidade?
- Sim, e eu acrescentaria "pelo menos até o sol morrer e com ele todas as formas de vida na Terra", mas nem sei porque estou a dizer isto, quando toda a gente sabe que a Terra é o centro do universo e foi Deus que criou e o sol é o candeeiro da mesinha-de-cabeceira Dele.
- É mesmo. Então olha, fica assim, Judas maldito, pulha, traidor, cobarde. Ah, sabe bem ter um bode expiatório onde descarregar a raiva e a frustração de viver num tempo onde ninguém se lava, não há televisão e contraem-se doenças horríveis, em que a carne apodrece e cai do corpo.
- Epá nem quero imaginar o que seria se não fosse termos uma crucificação ou uma lapidação de quando em vez, para desviar a atenção das pessoas a defecar no meio da rua, que são todas.
E pronto, agora antes de me atirarem essas pedras que têm na mão ou essa cruz que levam aí para me crucificar, gostaria de recordar que sou agnóstico, e não penso que tenha faltado ao respeito a qualquer figura, ou parodiado qualquer situação descrita no evangelho. Como agnóstico e não pessoa de fé, olho para esta sucessão de eventos do ponto de vista de uma pessoa que regista os comportamentos de outras pessoas, nada mais. Com o meu agnosticismo como "joker" que não me deixa cair na casa negra e assim ser expulso do jogo, gostaria de recordar aos leitores e leitoras que não sendo eu uma pessoa de fé não posso afirmar como verdade absoluta os factos que V.Exas. têm por garantidos, o que se explica com a vossa crença, que eu respeito quer indivual, quer colectivamente. Por outro lado não posso também concordar com os atuns ateus, pois não existem provas que desmintam para lá de qualquer dúvida que os pressupostos tidos como verdade pelos crentes são falsos. Há dogmas que facilmente se desmontam, mas o maior de todos, infelizmente, carece de fundamentos que o desmintam: e existência deste Deus.


Se Deus existe, ou qualquer outra força de onde tudo deriva e continua a derivar, penso que não será nada como a humanidade imagina que seja, e cuja personificação mais consensual é da autoria de Miguel Ângelo - não o vocalista da extinta banda Delfins, mas o pintor italiano, que deixou no tecto da Capela Sistina uma obra a que deu o título de "A Criacção de Adão", onde se vê Deus (em cima) a criar o primeiro homem - um dos dogmas que a ciência conseguiu desmentir, mas que teimosamente muita gente ainda acredita. Mas não é para discutir se o Homem é feito de barro e as mulheres de costelas de novilho que deixei aqui acima este retrato-robô de Deus pintado por Miguel Ângelo de Florença (e não de Cascais, repito). Achei interessante a escolha do artista para representar uma entidade que nas escrituras só chega a ser vista por Moisés, e "pelas costas", numa demonstração de ultra-mega-humildade: "criei o Universo, mas prefiro manter-me no anonimato...mas se gostares de costas, pois olhar para as minhas, que eu deixo". Mas se Deus fosse mesmo assim, como Miguel Ângelo (de Florença, não Cascais) o retratou naquela forma primitiva de graffiti, as possibilidades são inúmeras. Senão, quem é que "Deus" vos faz lembrar?


Assim de repente lembrei-me de outros personagens ficcionais...oops, eu disse "outros"? Queria dizer "mais realistas". Assim temos o avô da Heidi, o Capitão Iglo, o velhinho da marca de iogurtes da Longa Vida e last but not least, o Pai Natal da Coca-Cola (não o S. Nicolau da Lapónia, nem o Miguel Ângelo de Cascais). Agora digam lá se em vez de uma história onde o filho de Deus e Salvador da humanidade é brutalmente assassinado após uma tortura angustiante depois de ter sido traído pelo melhor amigo, que roído de remorsos suicida-se de seguida, era mais interessante (e menos violenta, sádica e doentia) uma onde se descobria que o Pai Natal da Coca-Cola era na verdade...DEUS?!?! Sim, o maior rival de Jesus na quadra natalícia era afinal seu pai, e podiam revelar o segredo durante uma confrontação entre ambos, e onde a certo ponto o Pai Natal da Coca-Cola confessa numa voz abafada e áspera: "Jesus...eu sou o teu pai". Aposto que isto nunca foi pensado na história do cinema para filmes cuja acção decorre no planeta Terra (ah! pensavam que me apanhavam, não era?). Isto tudo para dizer que basta ter uma barba branca e uma cara de poucos amigos para se assemelhar ao Deus do pintor italiano cujo nome me cansei de repetir, e destes quatro penso que o avô da Heidi ganha o primeiro pré mio -  e isto são apenas personagens fictícias, pois do lote de velhinhos com barba branca de carne e osso, o registo é pouco ou nada abonatório.


Sendo a barba a característica física mais evidente em Deus de...sabem quem, pode-se ainda dizer que qualquer um dos sete anões menos o Dunga (que penso tratar-se de uma referência pioneira aos hermafroditas) podia muito bem representar esse papel. E eu até sei qual deles o faria melhor: o Zangado, razões óbvias. Mas se o anão estava sempre "zangado", isso devia-se a alguma condição que o indispunha - uma unha encravada, uma dor de dentes, cólicas, pedras nos rins, ou então era apenas um palerma. No entanto não consta que no seu estado crónico de "zangado" se lembrasse um dia de envenenar a papinha dos restantes seis anões, ou de os decapitar durante o sono, ou ainda quiçá estrangular a Branca de Neve e de seguida violá-la, mal ela desse o último suspiro, concretizando a sua modalidade preferida, a necrofilia com vítimas acabadinhas de soltar a derradeira mijoca. Mas não, guardou o rancor apenas para si, enquanto que o "Deus zangado" da Bíblia tem na sua contabilidade uma respeitável dose de assassinatos em massa, e sempre recorrendo a métodos bastante originais, qual deles o mais criativo: desde destruir cidades inteiras com recurso a fogo, brasas e labaredas que manda "do Céu" (estranho, sempre pensei que as labaredas fossem departamento do outro...deixem para lá), transformar pessoas em sal, ou matar todos os primogénitos de uma nação inteira com febre hemorrágica, tudo porque andava chateado com o faraó, que é apenas 1 (um). E será que ele castigou o tipo com um ataque de diarreia e vómitos em simultâneo (acreditem, é HORRIVEL)? Na, isso não tinha piada nenhuma, o melhor e causar uma morte horrível e dolorosa a milhares de crianças, e assim o tal 1 (um) faraó fica a saber como elas mordem. Justo, este Deus. Ah sim, e "ama-nos", também. "Ama" mas gosta de necrofilia, paciência, e gostos são gostos.


De tão zangado que o tal Deus anda, dou comigo a pensar para quê se ter dado a tanto incómodo, de "criar" só para depois ter que deitar tudo abaixo outra vez. Se calhar é essa a ideia, não sei, mas para fazer aquela cara de enjoado com que aparece na "chapa" do Miguel-coiso quando criou o primeiro homem, mais valia não se ter incomodado - ninguém lhe pediu nada, até porque quem tinha a capacidade de "pedir" alguma coisa ainda não tinha sido criado. Reparem neste ciclo vicioso de sado-masoquismo: não tinha ninguém nem nada que o aborrecesse, e vivia lá nas nuvens rodeado de querubins - cenário para lá de idílico - e não contente com isso, resolveu criar o Homem, essa criatura "feita à sua imagem". E acredito, mas só quando comete barbaridades contra outros homens, outros seres vivos, o meio ambiente, e especialmente coisas que não se conseguem defender. Como criancinhas do Egipto, por exemplo, ou aqueles milhões sapos que fez cair do "Céu" (ali há de tudo: labaredas, sapos...) para se estatelarem no chão com as tripas de fora, e apenas porque...isso mesmo: queria chatear o faraó. Ah, valente.

Esta diatribe contra o Deus-papão que a Igreja inventou para intimidar e domesticar os crentes (que entretanto se foram tornando mais "vivos") serve para entender melhor o móbil da traição de Judas e do sacrifício de Cristo. Em termos leigos, tudo se resume desta forma: Deus mandou o seu filho à Terra, o que na altura foi considerado um sinal de...bem, era uma coisa boa, ou pelo menos convencionou-se que seria. O Seu filho entretanto cresceu, e transmitiu ideias que nada, mas nada tinham a ver com a conduta do seu suposto Pai, pois não passavam por arrasar com fogo, lava e pestes toda a gente que não fizesse o que Ele queria, e quem estivesse por perto levava também, "por via das dúvidas". Posto isto, e com uma espécie de intriga política pelo meio, chegava a altura de Jesus morrer, porque Ele queria assim. Agora peço-vos um pouco de atenção, e que me sigam neste raciocínio: um pai que mata o próprio filho, ou cria ele próprio um cenário do qual resulta a morte desse filho, é alguém que nós queremos ver pagar por essa monstruosidade, certo? Pouco ou nada adianta tentarem convencer-nos de que foi um acidente (se foi mesmo prova-se facilmente), ou que, como neste caso, tudo fazia parte de um "plano". Este plano passa por Deus, o modelo de virtudes e de perfeição que nos querem fazer passar, o único que é perfeito e ao qual devemos a mais incondicional das obediências, e a que devemos prestar a mais reverente das devoções, matar o seu próprio filho. E irónico como de um pai que mata um filho haja tanta gente que diga "que Deus o perdoe". Perdoar do quê? Só se for por não O ter convidado para participar da carnificina.


"What's my point"? Simples: um Deus misericordioso, e mais importante do que isso, omnipotente - que tudo pode - podia do alto da sua infinita misericórdia, e fazendo uso da sua omnipotência encontrar outra forma de demonstrar que gosta muito de nós, e que nos ama, e tal, tudo bem. Algo assim mais "light", como uma Aurora Boreal, por exemplo. Ou um arco-íris. Atendendo à beleza destes espectros de luz com que natureza nos prendou, se as medirmos à escala da dialéctica do bem e do mal, então só posso concluir que devem ser obra do Diabo. Não me levem a mal, mas cada vez que Deus se "manifesta", há sapos que caem do Céu e ficam com as tripas de fora, mulheres de patriarcas Seus transformadas em estátuas de sal, e como se não bastasse ter feito cabidela com os orgãos internos dos pequenotes no Egipto, ainda manda o seu próprio filho para morrer "pelos nossos pecados". Perdoem-me que eu corrija essa última parte: pelos VOSSOS pecados. Eu não fiz que justifique a sangria desatada que foi o calvário de Cristo, e mesmo quando tenho fome e me apetece um frango, recuso-me a aceitar que andem a fazer gato-sapato da ave antes de a matarem e cozinharem - e isso porque não existe uma forma de eu comer frango vivo e que depois de comê-lo permaneça ainda vivo. Isto é impossível, e até parece uma daquelas coisas que "só Deus consegue". Será mesmo assim, quando a única forma que encontra para nos passar uma mensagem é submetendo o Seu próprio a uma morte lenta, dolorosa, horrível e com contornos perfeitamente escusados. Ah, sim, e já me esquecia: para o efeito implica ainda um outro inocente, amigo próximo desse seu filho, e que em vez de o acarinhar, como qualquer pai faz com os amigos mais chegados dos filhos, obriga-o a cometer uma traição à qual ficará indelevelmente associado para a eternidade. Gostava já agora de garantir aos pais de todos os amigos do meu filho que não me passa pela cabeça fazer um infinitésimo daquilo que Deus fez a Judas: "- Com que então amigo do meu filho, ah? Espera só até eu arranjar um jeito que o teu nome fique associado à mais vil e reles das traições, e tornar-te na pessoa mais odiada de que há registo, e sem uma centelha de perdão que te redima. Mas só depois de veres como eu sou um pai daqueles 'à antiga', que não amolece os filhos com mimos e outras mariquices".


Agora falando mesmo a sério. É claro que Deus, a existir, e sendo mesmo o engenheiro desse milagre que é a vida, o maior de todos os pequenos milagres da natureza, NUNCA poderia ser o Deus que a Bíblia descreve e que a Igreja vem corroborando desde há séculos, numa cumplicidade que posso adjectivar de coerciva. Tudo o que escrevi ali em cima num tom que muitos podem considerar "leviano" é exactamente isso, "leviano". Só que a leviandade, o deboche ou a vulgaridade são "peanuts" se os compararmos com as manifestações próprias de um psicopata que o Deus que nos impingiram revela, ao esfolar o próprio filho como mandou os seus patriarcas fazer com os pobres cordeirinhos no Antigo Testamento, prática à qual até há não muito tempo os judeus rendiam homenagem, besuntando as paredes das suas com sangue de um cordeiro acabado de matar, porque foi esse o sinal de devoção que o "Deus zangado" pediu deles, caso não quisessem provar do arsenal de fogo e restantes armas de destruição maciça celestiais. Enigmático, este Deus que todos ama, mas que no caso desse amor não ser retribuído através de práticas macabras, Ele esmaga os não seguidores, e sempre com uma nova maneira, ainda mais cruel que a anterior. Nunca é demais recordar não é este Deus que existe no caso de existir mesmo um Deus - foi o que VOS (não "nos") impingiram. Eu não impinjo nada nem vos ameaço com infernos e outras patetices com o propósito de vos meter medo e roubar o vosso dinheiro com o pretexto que "foi Deus que mandou". O que vos quero mostrar um dos raros momentos nas escrituras em que através do que poderá ser muito bem uma metáfora de um lado muito singular da natureza humana. Outra vez, podem acreditar que foi tudo exactamente como está lá escrito, e como podem muito bem constatar do texto, não afirmo uma única vez que estou certo, ou que alguém está errado. É a minha opinião, apenas.


O capítulo 22 do livro de Lucas, do Novo Testamento, contém os elementos que estão na base da celebração da morte e da ressurreição de Cristo que os cristãos hoje assinalam: a última Ceia, o monólogo do Jardim das Oliveiras, a detenção de Jesus e a negação de Pedro, terminando na apresentação de Cristo ao Tribunal Judaico, e a partir daí segue-se o episódio da Paixão, que me vou abster de analisar - ficará para outra altura. Este capítulo inicia-se com a traição de facto, com o momento em que Judas revela o paradeiro de Jesus nessa sexta-feira onde ceia com os discípulos para comemorar a Páscoa. Sim, Jesus não está na origem da Páscoa, pois esta já era comemorada desde tempos imemoriais como um "ritual de passagem". Remonta aos tempos pagãos e assinalava, lá está, a passagem de um ciclo que marcava o fim do Inverno e o início da Primavera, da renovação, da transformação da terra fria, árida e estéril para uma fértil e frutífera, sempre com a esperança renovada de que os frutos que dela brotarem trarão vida à própria vida. É um milagre que antes do próprio ideal do Deus único era já celebrado pelas religiões politeístas, desde os celtas aos germanos, e mesmo alguns povos bárbaros, e pasme-se: os chineses. O Ano Lunar representa para os chineses tudo o que as celebrações cristãs do Natal ou da Páscoa representam para nós. É ingenuidade pensar, como muita gente está convencida e ainda bate com o pé se lhes disserem o contrário, que a vinda de Jesus ao mundo inaugurou todas estas celebrações e festivais. A única coisa que Jesus trouxe de novo ao mundo - e já foi muito - foi a sua filosofia, que ficaria conhecida por "cristianismo". Nunca, mas nunca em instância nenhuma confundam "cristianismo" e "catolicismo" -  o segundo é a corrupção do primeiro.


Logo no início lê-se que Judas foi trair Cristo porque ficou temporariamente "possuído por Satanás". Ora bem, é realmente muito útil encontrar mais um bode expiatório, quando tanto a traição de Judas como a própria morte de Cristo têm apenas um arquitecto, que planeou ambas com uma antecedência tal que nem no caso de Satanás realmente insistir se lembraria de tal coisa. A palavra hebraica "satan" (שטן) era inicialmente (e ainda é) um verbo que significa "discordar, obstar", ou seja, ir contra a norma previamente estabelecida, optando por assumir uma posição de rebeldia, contradição. Como devem saber existem inúmeras traduções das escrituras, e muito ficou perdido na tradução, e em alguns casos mal interpretado. A figura de "satanás" que nos incutiram, de uma criatura vermelha, chifruda, com cauda, e que ostenta uma indumentária semelhante ao do conde Drácula, e completa com um tridente não é tão antiga quanto isso, e se querem que vos diga, fica muito bem nos rótulos colados nos frascos das marcas de piri-piri, mas fica por aí. A mim transmite-me uma sensação de calor e de língua a arder, e por associação, cervejinha, que vem servir para apagar aquele "fogo infernal" - e aqui está, "infernal" no bom sentido, que é o que importa porque não existe um "mau sentido". Pode-se apontar o dedo à Tora judaica por ter lançado esta pequena confusão, pois tratando-se de um compêndio de textos com uma elevada carga de misticismo e difíceis de interpretar (os tipos andavam eram todos a dar na "nargila" mais do que deviam), onde era comum atribuir características humanas a conceitos abstractos, tal como pensamentos, gestos e lá está, sentimentos, como este de conflito interior, que é nada mais que uma característica perfeitamente normal da natureza humana, que se pode racionalizar perfeitamente: não concordamos com algo, ficamos chateados, e fazemos barulho, partimos a loiça, fazemos queixinhas, etc. Não foi Satanás que levou Judas a dizer onde podiam os oficiais de justiça encontrar Jesus naquela noite; foi lá por vontade própria. Ou será mesmo assim? 


A última ceia, de todos sabem do que se trata, pelo menos no seu essencial, é o momento em que Jesus deixa a sua última mensagem aos homens que o seguiram durante aquele período que, e variando conforme as traduções, teria sido de dois ou três anos. Outra vez, há uma ideia feita de que Jesus ostentava o  estatuto de milagreiro e filho de Deus, e quando não andava pelas ruas a curar leprosos ou a fazer magia, deitava-se num cadeirão onde era abanado por eunucos que agitavam uma folha de palmeira enquanto odaliscas lhe levavam uvas à boca. Antes da sua missão, Jesus era carpinteiro, e mais nada. Fazia mesas, cadeiras, e outras peças de mobília, a trabalhava no duro, aliás como judeu que era, nem se importava de trabalhar, e muito menos de ganhar umas massas, que seriam mais caso ele trabalhasse também mais - é uma das lições que ele nos ensinou, e esta foi um "brinde". Os discípulos, os doze homens que se fizeram acompanhar de Jesus, eram não mais do que rebeldes, que se opunham à ocupação romana do seu território, e que viram nele alguém capaz de atrair multidões com os seus dotes de oratória. A ideia não era fundar uma religião, evangelizar, abrir uma clínica de leprosos ou um espectáculo itinerante de ilusionismo, mas sim juntar um batalhão para fazer frente ao invasor.  Jesus não era tanto visto como um "general", mas mais como um líder espiritual, um "guru", se quiserem, e não há nada que nos diga que Pedro, Simão, Tomé e todos os outros estavam mesmo convencidos que ali estava o filho de Deus. Se tivessem essa percepção, penso que iam redefinir as prioridades: 

- "Epá já viste? Afinal o nosso "mister" é filho de Deus, criador de tudo o que há nos céus e na Terra, todo poderoso e infinitamente misericordioso, omnipotente e omnipresente!- "E depois? Ouve lá...importas-te de te concentrar na resistência aos invasores romanos? Não é a adorar filhos de Deus que vamos formar um exército. Querem lá ver este...
É possível que este diálogo nunca tenha tido lugar. O que teve lugar foi a discussão que se seguiu à denúncia de Jesus, de que um dos seus doze seguidores ia trai-lo, e outro o negaria três vezes, e aqui existe outra confusão que envolve o canto de um galo. Não vou desenvolver essa questão, mas posso ir adiantando que ali era Jerusalém, e não o Sítio do Picapau Amarelo. Perante a revelação de Jesus que sabia da traição que lhe tinha feito, Judas confrontou-o, e esse momento de conflito entre os dois homens, e ao mesmo tempo resignação à tarefa que tinha sido atribuída a cada um deles define toda a razão de ser e explica a motivação por detrás da traição de Judas, da paixão de Cristo, e da sua ressurreição. Na mesma noite, enquanto todos dormiam Jesus foi até Gethsemane, um jardim também conhecido por "Jardim das Oliveiras", por ficar situado no sopé do monte com o mesmo nome. Aí as traduções das escrituras dividem-se quanto às intenções de Jesus em isolar-se naquele local onde ia frequentemente com os discípulos; umas falam em oração em tom de introspecção, outras em monólogo (de despedida, em algumas versões) e outras das quais eu me inclino mais em acreditar, uma acesa discussão com o seu Pai. Sim, esse mesmo. Jesus deixa transparecer aqui as suas fragilidades como homem, confessa os seus receios, e o maior de todos seria aquele se preparava para acontecer. 


Esta passagem, onde a um certo ponto se dá a entender que Jesus pondera virar as costas ao sacrifício que lhe tinha sido destinado, foi a inspiração para o escritor grego Nikos Kazantzakis   idealizar a sua obra "A última tentação de Cristo", que aborda os últimos dias do cordeiro de Deus da sua perspectiva pessoal, e onde o autor faz um exercício de especulação sobre o que sentia Cristo perante a proximidade da hora em que lhe ia acontecer o que nós, deste prisma, consideramos abominável (vocês por devoção, eu por oposição) e ele sabia de antemão exactamente quão horrível ia ser. Pensem bem nisto. Num acesso de ira, Jesus chega a desafiar o Pai, questionando as suas intenções, e dizendo-se "incapaz" de terminar o tal "plano" que incluía um doloroso martírio - o seu. Acaba por aceitar o seu fado, depois de ser visitado por um anjo que lhe garantiu a validade do sofrimento pelo qual viria depois a passar. Até aqui a solenidade do momento ou a relevância dos anseios de Jesus não foram motivo para o que o seu Pai e idealista do sacrifício viesse pessoalmente transmitir-lhe confiança, e em vez disso preferiu mandar um emissário. Não me surpreende, pois até na concepção do próprio filho delegou poderes através de uma procuração passada a um tal de Espírito Santo. Ui, hoje nem Ele assinaria nada que contivesse esse nome. Na novela de Kazantzakis parte-se de um cenário alternativo, onde Jesus escapa ao sacrifício e vai viver a vida de um homem, como tinha feito até lhe ser anunciada a razão da sua vinda. Isto foi um escândalo, e pouco importa que tudo o que o autor grego tenha escrito fosse rigorosamente fiel aos evangelhos, pois as pessoas não lêem os evangelhos: acreditam no tal Jesus Cristo Superstar. Ah sim, essa denominação também não é aceite. Claro que eles não admitem, mas quem se identifica com a ideia de que uma morte lenta e cruel foi feita como sacrifício em sua prol preferia talvez Jesus Tábua de Tiro ao Alvo, ou quiçá Jesus Folha de Rascunho. Que tal, uma vez que assim como esses dois objectos inanimados que referi, Jesus não pode ter tentações ou ser "Superstar". 


Mas prosseguindo na tentativa de entender Judas e as razões que o levaram a cometer o crime imperdoável, e de que ainda hoje é tido como culpado. Mas não é, de todo. Inocente e vítima, isso sim, apanhado no lugar errado e no momento errado, não foi senão mais um dos muitos cordeiros dados ao holocausto pelo Deus caprichoso e ditador a que a religião se encarregou de atribuir outras qualidades que o tornam ainda menos recomendável. Judas era o homem de confiança de Jesus, pois ao contrário dos restantes 11 discípulos, era um homem culto, inteligente e dotado de uma humanidade que o seu mestre rapidamente identificou nele, chamando-o para junto de si e fazendo dele o seu favorito. A abnegação de Judas à causa dos pobres foi ironicamente a razão encontrada para que se deixasse seduzir pela oferta dos Fariseus, que lhe sugeriram que fizesse algo pelos pobres com o dinheiro que recebeu por ter denunciado Jesus. Judas tinha por Jesus uma estima que o levou a confrontá-lo em várias situações onde temia que a projecção que o mestre começava a ter fizesse dele o centro das atenções e o levassem a ser considerado "inimigo público", e que com isso ganhasse inimigos poderosos - e foi o que acabou por acontecer. Há quem tenha interpretado a traição de Judas como um acto de "inveja". Nada mais errado. Tanto Jesus como Judas sabiam do papel que lhes estava destinado, e a Judas coube a parte mais ingrata, que cumpriu despedindo-se do mestre com um beijo na face. Jesus exultou, exclamando "trais-me assim, com um beijo?". Interpreto a reacção de Jesus como de surpresa, mas não de indignação, pois afinal o homem que foi obrigado a trai-lo concluiu a sua missão com um gesto muito mais subtil do que aquilo que o seu Pai tinha programado para ele.


Judas não aceitou o peso da traição que Deus lhe encarregou de levar consigo até ao fim dos dias, e pôs termo a esses mesmos dias, não deixando que os remorsos levassem a melhor - esta é uma interpretação diferente da conceptual, que defende que o suicídio se deveu a esses mesmos remorsos. Pensem bem, acham mesmo que sim? Quem é afinal o responsável por toda esta decepção, sofrimento, dor a arrependimento, que destes dois homens resultou na morte, um em definitivo, e outro para mais tarde ressuscitar e "ir para o lado do seu Pai, no reino dos  Céus". Penso que não é necessário dizer que esta ladainha é feita à medida para as Catequeses e outras academias onde se molda a crença no divino com queda para o sobrenatural e o fantástico. A ascensão vem descrita no final do capítulo 24 do livro de Lucas, e existem várias versões, a maior parte delas falando do encontro de Jesus no Domingo em que o sepulcro onde jazia estava vazio, o que causou (naturalmente) grande agitação entre os seus seguidores. Diz-se depois que toma uma refeição com eles, abençoa-os, e depois "estando ainda a abençoá-los, deixou-os, a caminho dos céus". Muito vago, para que se interpreto isto como uma ascensão, se bem que noutras versões (se estão a pensar "brasileiras?", acertaram) lê-se "....e foi elevado para os céus". Relativo e irrelevante, e agora em jeito de conclusão falo apenas por mim. Pode ser que aceitem essa responsabilidade de ter o sangue de Cristo nas mãos, e que renovem a paixão todos os anos por esta data, trazendo de volta o sofrimento e a morte de Cristo, e tirando da traição de Judas uma lição que não está lá. A verdadeira responsabilidade da natureza do mal cabe apenas ao seu arquitecto. Judas não merece perdão? Também não precisa dele. Já agora...


Ontem, no Quénia, um massacre causou a morte a dezenas de estudantes. Pouco importa a autoria deste crime horrendo, ou a sua motivação, mas fica no ar a pergunta: Deus sacrificou o Seu filho para nos salvar do quê, exactamente? Penso que só Ele tem a perversidade para imaginar algo pior do que os males de que nem o sacrifício do seu único filho nos valeu.


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