domingo, 1 de março de 2015

Quando a bola perde a tola


Tivemos cá a semana passada o respeitável dr. António Barão, presidente do Sporting Clube Farense, nobre emblema algarvio já centenário, e cuja equipa de futebol principal disputa actualmente a Liga de Honra, o segundo escalão do futebol português. Além de abordar outros assuntos, aquele dirigente desportivo mencionou de passagem a actual situação do clube a que preside, recordando que ainda não há muito tempo se encontrava a disputar os escalões regionais da AF Algarve - e falamos de um clube que nos anos 90 participou nas competições europeias. E de facto assim é, pois com a excepção dos três grandes, Benfica, Porto e Sporting, as restantes colectividades que fazem do futebol a sua "jóia da coroa" dependem de uma gestão cuidadosa, quase a conta gotas. Vamos recordar alguns desses clubes que um dia foram de topo, e depois bateram no fundo. Uns acabariam por renascer, outros ainda se encontram no meio do processo de reconstrução, e outros simplesmente evaporaram-se no fumo da vã glória desportiva.


E porque não começar exactamente pelo Farense? Muitos estarão recordados dos tempos gloriosos de Paco Fortes, treinador catalão que orientou os leões do Algarve durante praticamente toda a década de 90. Ex-jogador da equipa principal, Fortes assumiu as funções de técnico com carácter provisório no final da época 1988/89, em que o clube acabou por descer à II Divisão. No ano seguinte conseguiu não só o regresso ao escalão principal, como ainda chegou surpreendentemente à final da Taça de Portugal, vindo a perder na final do Jamor com o Estrela da Amadora, com direito a "replay" depois do empate na primeira final. Outro momento alto foi o 5º lugar em 1994/95, que valeu uma participação na Taça UEFA da época seguinte, ficando pela primeira eliminatória, após duas derrotas com os franceses do Lyon pela margem mínima. Os problemas financeiros surgiram já em meados da década de ouro dos algarvios, mas acentuaram-se com a descida de divisão em 2001/2002. Depois disso participaram na Liga de Honra, ficando a meio da tabela, mas por falta de liquidez seriam despromovidos à antiga II "B", e voltariam a descer, desta vez no campo, depois de um 17º lugar na Zona Sul. Em 2004/2005 disputaram a Série F da III Divisão e obtiveram um 15º lugar entre 18 equipas, que lhes valeu nova despromoção e a queda nos distritais. Aí o clube cessou o futebol profissional por uma época, sendo obrigado a recomeçar em 2006/2007 da II divisão distrital algarvia, e daí até chegar onde está hoje ainda teve alguns precalços, como a descida da II "B" em 2010/2011. Depois disso o Farense parece ter encontrado o rumo certo, com duas subidas que lhe permitiram "estacionar" na Liga de Honra desde a época passada, e agora segundo o seu presidente, anseiam voltar a rugir entre os grandes.


Quem já despertou do seu pesadelo, se bem que apenas muito recentemente foi o Boavista Futebol Clube, o mais ilustre da lista que aqui presento. O clube do Bessa conta no seu currículo com cinco Taças de Portugal, três supertaças e um título de campeão nacional, tendo sido o primeiro campeão português do milénio - isso ninguém lhes tira, pelo menos. Subitamente os axadrezados passaram de equipa de topo a mero clube de bairro, e em menos de meia dúzia depois de andarem a dar cartas na Europa (três presenças na Champions e uma meia-final da Taça UEFA) viram-se rebaixados ao segundo escalão em virtude do processo "apito dourado", terminada a época 2007/2008. No ano seguinte, com nítidas dificuldades em contratar jogadores e formar equipa, terminaram a Liga de Honra em 15º lugar entree 16 equipas, sendo rebaixados para a II "B" juntamente com os vizinhos do Gondomar. Aí os axadrezados fizeram uma travessia do deserto, e por pouco não desciam ao escalão imediatamente inferior logo nesse mesmo ano, mantendo-se firmes até à época, onde voltariam à liga principal da mesma forma que saíram: pela secretaria. Ainda são visíveis as marcas do "calvário" boavisteiro, que tem um plantel de jogadores medíocre para os parâmetros da competição, mas parecem bem encaminhados para conseguir pelo menos a manutenção. Depois é só ir passo a passo, e quem sabe se um dia temos novamente um "Boavistão".


E aqui está o primeiro caso de "renascimento" de um clube que conheceu dias gloriosos, depois de azedume, e após recomeçar vem subindo degrau a degrau, tentando recuperar um lugar que já foi seu. Falo do velho Sport Comércio e Salgueiros, fundado em 1911, e do novo Salgueiros 08, renascido das cinzas do último, como oportunamente demonstra a insígnia da fénix no emblema do novel clube. Ao contrário dos seus vizinhos do Bessa, o clube de Paranhos não conseguiu aguentar a "crise", chegando mesmo a submeter-se a uma triste humilhação. Na condição de terceiro clube da invicta, o "histórico" Salgueiros foi durante quase toda a sua existência uma equipa "yo-yo", e até aos anos 80 nunca se manteve no escalão principal mais de dois anos seguidos. Conseguiu ficar seis anos entre 1982 e 1988, desceu novamente, e quando regressou dois anos depois veio para impôr respeito, ficando isso bem patente no quinto lugar obtido logo nesse regresso, que lhe valeu uma surpreendente presença numa prova europeia, não passando da primeira eliminatória. Curiosamente o adversário foi o AS Cannes, de França, e onde alinhava na altura um jovem de 19 anos chamado Zinedine Zidane. Os salgueiristas saíram de cabeça erguida, eliminados apenas nas grandes penalidades. Vieram outros anos positivos, mesmo sem Europa, e quem cá estava em 1998 deve-se recordar da participação do clube, na altura treinado por Carlos Manuel, no "Torneio de amizade Macau-Cidade do Porto", com os salgueiristas a derrotarem na final os italianos do Bolonha por 2-1, em partida realizada no no Estádio da Taipa.

Em 2001/2002 deu-se a descida de divisão depois de 13 anos no topo, e aí "fizeram-se as contas", por assim dizer. Depois de dois anos na Liga de Honra, tiveram uma descida administrativa à II "B" e ficaram interditados de inscrever jogadores. Em vez de "fechar a porta" e assim manter alguma dignidade, participaram no campeonato com os juniores e mesmo alguns juvenis, terminando em último lugar da Zona Norte com 1 vitória, dois empates e 35 derrotas nos 38 jogos disputados, marcando 19 golos e sofrendo...126! As derrotas por 0-10 em casa com o Vizela e 0-11 fora com o Freamunde foram os momentos em que a equipa chegou mesmo a bater no fundo. Entre os jovens mártires que foram "saco de pancada" encontrava-se um tal Bébé, então com apenas 17 anos, e que hoje joga nos espanhóis do Córdoba, da primeira liga espanhola, por empréstimo do Benfica, tendo passado ainda pelo Manchester United e os turcos do Besiktas. O clube ficou então "adormecido", regressando em 2008 com o novo nome e emblema, partindo da II Divisão distrital da AF Porto. Em apenas quatro anos conseguiram o regresso aos campeonatos nacionais, e actualmente disputam o "play-off" de subida do Campeonato Nacional de Seniores, podendo assim em caso de sucesso juntar-se ao Farense na Liga de Honra, e reeditar um confronto que já foi entre "grandes".


Agora outro caso de "renascimento", mas noutra "nuance". Quem tiver memória e recuar vinte anos, recorda-se da única participação do Futebol Clube de Felgueiras no escalão principal, na época de 1995/96. O clube nortenho era então treinado por Jorge Jesus - sim, o mesmo - que contava com um plantel onde se incluía entre outros Sérgio Conceição, na altura com apenas 21 anos. A época até nem corria assim tão mal, e a dez jornadas do fim o Felgueiras ocupava um tranquilo 11º lugar, longe de se pensar que poderia descer. Mas depois foi só perder, e a descida seria apenas confirmada na última ronda, com um "empurrão" do Sporting, que empatou em Leça da Palmeira, quando em Felgueiras todos faziam fé que os leões fossem ali vencer e relegar os leceiros - é o que acontece quando se fica a depender de terceiros. Depois veio a Liga de Honra, onde o Felgueiras se manteve durante nove longos anos, os últimos dos quais a muito custo, até se dar a liquidação que relegou o clube para o amadorismo, estávamos no ano de 2005. O velho Felgueiras começou do zero dois anos depois, na II Divisão regional da AF Porto, mas não conseguiu subir de imediato e resolveu voltar a "hibernar". Ao mesmo tempo era criado um "clone", que dava pelo nome de Felgueiras 1932, o que é de estranhar, uma vez que o clube original havia sido fundado em 1934. Estes andavam pelos regionais, até que há dois anos subiram à III Divisão, e mesmo a tempo desta ser extinta, conseguindo contudo a subida ao actual Campeonato Nacional de Seniores, onde se mantêm, lutando agora pelos lugares de acesso à Liga de Honra. Menos "maduros" que Salgueiros e Farense, por enquanto.


Este nunca chegou a acabar, mas andou lá perto. O Futebol Clube Tirsense, outra colectividade nortenha, foi até meados dos anos 90 um clube modesto, e até 1994 tinha seis presenças no escalão principal, quando se deu um autêntico terramoto lá para as bandas de Santo Tirso. A época de 1994/1995 foi a melhor de sempre do Tirsense, mas o preço da "ousadia" foi demasiado elevado. Com Eurico Gomes no banco, o plantel contava com nomes do calibre de Marcelo e Paredão, respectivamente avançado e defesa-central brasileiros que depois passariam pelo Benfica e mais tarde pelo futebol inglês, ou ainda Giovanella, outro brasileiro que foi colega de equipa de Pauleta nos espanhóis do Salamanca - todos jogadores agenciados pelo célebre empresário Manuel Barbosa, mais tarde caído em desgraça. O início do campeonato dos jesuítas foi brilhante, e à nona ronda encontravam-se em quarto lugar a um ponto do Benfica, a três do FC Porto e a cinco do então líder, o Sporting, e no fim conseguiram o 8º lugar, a melhor classificação das oito presenças na divisão maior do futebol português. Na época seguinte o Tirsense desceu à Liga de Honra, e na seguinte à II "B", e depois à III divisão, e de seguida aos distritais, sempre sem parar. Não foi declarada falência nem houve pontos perdidos na secretaria: foi "limpinho", entre 1996 e 2000 passaram da I divisão nacional à I divisão da AF Porto. Regressariam aos nacionais logo no ano seguinte, mas tem sido um caminho penoso; depois de sete anos na III Divisão subiram finalmente à II "B", onde se mantêm há oito, agora com a designação de Campeonato Nacional de Seniores. Pelo menos em 15 anos nunca mais voltaram a descer - levaram com a "dose" toda de uma só vez, se calhar.


Agora um clube que foi um "tubo de ensaio" para algo de maior - coitado. O Futebol Clube de Alverca, emblema da vila com o mesmo nome, localidade do concelho de Vila Franca de Xira, foi sempre um clube humilde desde a sua fundação em 1935, e em 86 disputava ainda os campeonatos distritais, sem nenhum feito digno de destaque para lá de dez participações consecutivas no campeonato da III divisão durante os anos 70. Em 1987 regressam aos nacionais, e num "pulo" passam da terceira à II Divisão, onde se foram mantendo muito graças a uma pequena parceria com o Sporting, de quem serviam de clube satélite, a par de outros idênticos, como o Lourinhanense, por exemplo. Em 1994/95 sobem à Liga de Honra, feito astronómico para um clube daquela dimensão, e ninguém imaginaria que dois anos depois subiriam ao topo da pirâmide dos campeonatos de futebol em Portugal: a I Liga. O presidente do Alverca era então um tal Luís Filipe Vieira, que fez ali o que se pode considerar de "estágio" para voos mais altos. Depois de quatro anos na I Liga, o Alverca desceu em 2002, mas regressou no ano seguinte, que foi também o último de Vieira na presidência, que passou a presidir o Benfica em 2003. Coincidência ou não, o Alverca "acabou" literalmente dois anos depois, após duas descidas de divisão consecutivas. Recomeçando do fundo dos distritais em 2006/2007, ainda se mantêm nos campeonatos da AF Lisboa, agora na Divisão Pró-Nacional, mas sem perspectivas de regresso aos dias "gloriosos".


Eis a triste história de uma cidade com quase 200 mil habitantes e sem um único clube de futebol: a Amadora. O Clube de Futebol Estrela da Amadora foi, assim como o Alverca, uma colectividade humilde ao longo da sua história, aparecendo pela primeira vez na II Divisão nacional no início da década de 80. Mas ao contrário da vila ribatejana, a Amadora cresceu exponencialmente, e assim o clube cresceu também, chegando pela mão de João Alves à I Divisão em 1988, que a juntar a isso venceu a Taça de Portugal dois anos mais tarde, juntando a respectiva participação na Taça das Taças, chegando mesmo à 2ª eliminatória, onde foi eliminado pelos suíços do Neuchatel-Xamax. No ano da (única) participação em provas da UEFA o clube desceu à Liga de Honra, o que já demonstrava que o Estrela não tinha o arcaboiço para ser um V. Guimarães ou um Boavista. Regressariam ao convívio dos grandes em 1993, e ali foram ficando longos períodos, com mais duas descidas seguidas de regressos imediatos, somando um total de 16 presenças no escalão principal entre 1989 e 2009. Foi nesse ano de 2009 que o clube faliu, ficando os atletas sem receber um único vencimento durante toda a época, terminando mesmo assim num honroso 11º lugar. De nada valeu o sacrifício, pois devido à insolvência o clube baixou à II "B", onde disputou uma temporada antes de encerrar definitivamente, em 2010. No ano seguinte apareceu o Clube Estrela de Futebol, supostamente seu herdeiro, mas a ambição ainda não passou dos escalões de formação, onde diga-se de passagem os resultados estão longe de ser impressionantes.


E estes são apenas os casos mais mediáticos, mas outros há que, tendo feito menos "estrondo", não se deixa de lamentar a queda. Recentemente tivemos o União de Leiria, relegado para a II "B" devido a insolvência, ou a Naval 1º de Maio, da Figueira da Foz, que depois de algumas épocas entre os grandes, ocupa actualmente o último lugar da Série E do Campeonato Nacional de Seniores. Houve ainda clubes modestos que tiveram uma ambição desmedida, que a juntar a uma má gestão levou a que encerrassem ou que se arrastem actualmente por divisões inferiores, casos do Futebol Clube do Marco, o Gondomar Sport Clube ou o Imortal de Albufeira, para citar alguns. Não esquecer ainda outros que em tempos tiveram ombro a ombro com os melhores, mas que paulatinamente foram caindo de escalão em escalão, não mais recuperando o fulgor de outros tempos. Exemplos de "O Elvas", já extinto, ou dos seus "compadres" alentejanos do Campomaiorense, cuja direcção teve a sensatez de descontinuar um projecto que nunca daria nada para além de prejuízo, ou ainda o Clube Desportivo do Montijo, que deu lugar ao Clube Olímpico do Montijo, mas sem sucesso, e o Seixal Futebol Clube, já extinto, ambos emblemas que já foram primodivisionários e hoje andam pelas ruas da amargura. Curioso o caso do Estrela Futebol Clube, da localidade alentejana de Vendas Novas, que já terminou e reatou o departamento de futebol sénior vezes sem conta.

Todos eles são a prova em tempos viva e agora em muitos casos longe disso, de que a máxima "não há dinheiro, não há palhaços" assenta que nem uma luva no mundo do futebol. Só que neste particular os "palhaços", estejam eles a correr atrás da bola no relvado ou sentados na bancada a agenciar os primeiros, cobram um cachê muito elevado.

Sem comentários:

Enviar um comentário