sexta-feira, 20 de março de 2015

Filmes com actores já todos falecidos: O Leão da Estrela



A TDM transmitiu esta noite o filme português "O Leão da Estrela", que é tão antigo, mas tão antigo mesmo, que naquele tempo o Sporting era o clube português com mais títulos! O elenco está recheado de pessoas que já há muito que foram fazer tijolo, exemplos de António Silva, Óscar Acúrsio, Curado Ribeiro, D. Afonso Henriques, entre outros, e é considerado "uma das melhores comédias da história do cinema português". Engraçado, e eu que sempre pensei que a "história" tinha continuidade, mas desconfio que algures entre 1947 e os dias de hoje deu-se um holocausto nuclear no cinema português - e o António Pedro Vasconcelos é o líder da brigada de mortos-vivos mutantes que sobreviveram a esse holocausto.

O enredo tem muita piada, pá. O tal António Silva faz um papel de um tipo que não-sei-quê, e não-sei-que-mais e pouca importa o quê, porque o detalhe que este filme português da chamada "idade dourada" do cinema lusitano tem de diferente dos outros é o facto de incluir cenas realizadas num jogo entre o FC Porto e o Sporting, no antigo Estádio do Lima, uma das muitas "casas" do Dragão antes da inauguração do Estádio das Antas em 1952. Vi uma vez um documentário sobre este filme, onde fiquei saber que o guião "dependia do resultado do jogo". Já nesse tempo eram uns grandes aldrabões, estes gajos. O Sporting ganhava SEMPRE quando jogava com o Porto, e ir ganhar "à província", como se chamava naquele tempo qualquer lugar ficasse a mais de meia-hora de carroça de Lisboa, era uma "honra"! Era um favor que faziam, os heróicos atletas da capital do império, ir exibir ao seu talento aos grunhos do norte, enquanto lhes davam um "coça" para aprenderem como se joga à bola. Tirando isto, o filme é igual aos outros: toda a gente muito bem vestida e arranjada, com um ar saudável, de dentinho branco, nunca hesitando em revelar sinais de que se vivia bem, e se comia bem, e toda a gente tinha um descapotável, as mulheres não trabalhavam e eram felizes com o que faziam: costurar, ficar calada quando o marido fala, e ocasionalmente cantar. O contrário disto é que seria altamente irregular.

Curiosamente o actor António Silva é tido, mesmo pelas gerações que nasceram depois dele ter morrido, "um grande actor". Claro que sim, se o situarmos na época, seria um dos melhores da Europa, até porque os restantes estavam demasiado ocupados a reconstruir os seus países depois da destruição causada pela guerra - onde Portugal não entrou - para pensar em fazer filmes. Não posso contudo deixar de observar a forma como o senhor representava, sempre tão...hmmm...expressivo, a falar tão alto que dá a entender que ou era toda a gente surda, ou era ele duro de ouvido, e a gesticular, afirmando coisas atrás de coisas, sempre de dedo em riste. Aliás os ditadores e os déspotas eram o equivalente das actuais "boys band": idolatrados pelas mulheres e invejados pelos homens. O filme "O Pai Tirano", por exemplo, tem um título que pelo nosso criterio actual atribui ao personagem uma característica negativa, odiosa até. Em 1941, ano em que o filme se estreou nos cinemas, "tirano" era um dos maiores elogios que se podia fazer a um chefe da família! Era do oposto que as mulheres se queixavam, se apanhavam um marido que não tivesse o seu charme de Neanderthal - "Que raio de marido és tu, que não me bate nem me manda calar, não me humilha em público ou em frente aos meus pais...buh uh uh". só NãO acabavam este discurso com "quero o divórcio" porque nem imaginavam que tal coisa existia. Não se punha sequer a hipótese de mandar uma boca do género "a minha mãezinha bem me tinha avisado", porque o que o único conselho que as mães davam às filhas casadeiras era "faz o que teu marido te diz". E nem pensassem em aparecer pela casa dos pais um dia de malas na mão dizendo que deixaram o marido. O que iam os vizinhos pensar? Que vergonha...

Quando eu era ainda um chavalito reparava que muita malta da minha idade, ou pouco mais velha, ria-se quando via filmes como "O Leão da Estrela" ou "A Menina da Rádio". Isto deixava-me intrigado, tal era o paradoxo entre aquela realidade e a outra onde eu já vivia - imaginem o que seria para um adolescente nos dias de hoje ver estes filmes. Se estivessem a ver o filme com os avós ou outro qualquer octagenário, entendia essa reacção como de "respeito" pelos mais velhos, como que a validação daquele conceito de "comédia" tão arcaico de que provavelmente nem eles achavam graça. E não era para achar, pois o que existia era "gente séria", que falava num tom coloquial, pronunciando as sílabas todas das palavras, sem sair do personagem ou tropeçar no texto. Posso até achar a maior parte destes filmes digeríveis, pelo menos muito mais que os actuais que se fazem em Portugal, e até interessantes do ponto de vista histórico-cultural, mas nunca seria capaz de achar graça e rir de coisas como "Ó Evaristo, tens cá disto" e "Chapéus há muitos, seu palerma" - porque carga de água? E já que falo de "palerma", é interessante como naquele tempo chamar "malcriadão" a alguém era considerado um insulto gravíssimo. Penso que se alguém dissesse qualquer coisa como "baza daqui para fora" ou "dá de frosques" era imediatamente preso. Ou chamavam o pároco mais próximo, para lhe efectuar um exorcismo com urgência. Mas se há uma coisa a que acho piada é a hipocrisia das pessoas que afirmam que "sim senhor, o António Silva era um actor como deve ser, e já não se fazem como ele", e depois são os mesmos que se põem a milhas quando se aproxima alguma múmia idêntica aos personagens que ele encarnava. Sabem como é, aqueles velhos que falam pelos cotovelos e não podem ser contrariados?

Mas pronto, este é o filme que o seu avô foi ver às escondidas (naquele tempo as crianças não podiam fazer ou dizer NADA; porque sim, era assim e pronto) comprando o bilhete com o dinheiro que a mãe - a bisavó do estimado leitor - lhe tinha dado para comprar rebuçados do Dr. Bayard, na altura considerado o único medicamento eficaz no tratamento e prevenção da tuberculose. Chegado a casa sem os rebuçados e mais de duas horas atrasado (não existiam telemóveis nem se procurava nos hospitais e morgues quando não se sabia do paradeiro do pequenote; se morresse faziam outro) levava uma valente tareia com o cinto, ou era agredido com outro objecto "vintage" que só se encontram nos museus do sapateiro ou da costureira. Mesmo que fosse pontual e tivesse aviado o recado levava porrada na mesma; encher os putos de porrada era a segunda actividade lúdica praticada na era precedeu o aparecimento da televisão. O primeiro era a razão de ser do segundo, enfim. Mas alto lá, que pelo menos havia respeito (e tuberculose, e febre-amarela, e sífilis), ao contrário de agora, que é tudo uma rebaldaria que ninguém se entende ai valha-me Deus minha santinha que os santos nos acudam blá blá blá vá para dentro minha senhora que vem aí o dilúvio. De facto existia respeito, sim senhor, respeito daquele verdadeiro, genuíno, certificado com o carimbo da escoriação e do hematoma. Portanto como este filme nos diz muito, carregado que está de todo este significado, todo este passado, deixei-o aqui na íntegra, para quem não viu na TDM, ou 250 vezes no leitor VHS da casa dos pais ou dos avós.

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