sábado, 7 de março de 2015
A morte dói só um bocadinho (e depois passa)
Morte. E sono. É preciso não esquecer o sono, que ainda é primo afastado da morte. É o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Espero que esteja ao gosto de V.Exas. Senão, paciência...
A MORTE NÃO É NADA. EU SOMENTE PASSEI PARA O OUTRO LADO DO CAMINHO.
Santo Agostinho
Tive há dias uma morte na família, o que é sempre de lamentar, mesmo sendo, helas, uma das coisas mais naturais da vida. Uma banalidade daquelas de ir ao bocejo, se me permitem, de tão comummente banal e banalmente comum que é. Foi na família da minha esposa, para ser mais preciso, portanto para mim era um parente apenas por afinidade. Foi aquilo que os chineses chamam uma “morte alegre”, em tradução livre, pois a senhora agora defunta caminhava para o centenário, assistiu à vinda da sua quarta geração, e sobreviveu mesmo a alguns dos seus filhos. Nada mais deprimente, perdoem-me o desabafo. Seja como for, lamenta-se menos assim, quando se morre “de barriga cheia”, depois de já ter visto e revisto tudo, mesmo o que não se queria ver. Se eu chegar a velho, e quando morrer tiver direito a pedra tumular, quero nela escrito o seguinte epitáfio: “Já vi tudo. Ciao”.
Há velhos que passam a vida a lamentar-se, dizendo que “vão morrer”, e que “de amanhã não passam”, deprimindo familiares à mesa da ceia do Natal, dizendo que “é o último que vão ver”, ou assustando os netos no dia do aniversário deles, prognosticando que “para o ano já não vão à festa” – “Sopra as velas, netinha querida. Deixa o avô olhar para o brilho dos teus olhos uma última vez”. Tétrico. Muitas vezes fazem isto para chamar a atenção e mostrar que ainda estão vivos, e certas situações que são interpretadas por nós como uma manifestação de senilidade são nada mais que uma tentativa de provar que ainda estão lúcidos – só que acabam por exagerar e estragam tudo. Mas como os compreendo, pois tenha a percepção que o valor que damos à nossa vida é proporcional à forma como a aproveitamos, e tentamos tirar dela o maior prazer. Se temos vontade de viver, de nos levantarmos todos os dias da cama e encarar o mundo, é porque ainda vemos tendo capacidade de fazer o que mais gostamos, em suma, enquanto temos aspirações, ambição, metas a alcançar ou planos para concretizar. E o que pensa um velho com mais de 80 anos quando escuta os mais novos falar de planos a longo prazo, do que vão fazer daqui a dois anos, ou cinco, ou dez? Que são uns sacaninhas, isso sim. E depois deseja-lhes “saudinha”, mas não com grande entusiasmo.
Não tememos tanto a morte quanto desconfiamos dela, e tudo porque nada sabemos a seu respeito. Ela não nos deixa ir e depois regressar, como fizeram as agências aeroespaciais semi-falidas com os milionários que quiseram ir ao espaço. Mas coisa boa não pode ser, pois se é mesmo verdade que voltamos ao ponto de partida, ou seja, ao que éramos antes de nascer, dá vontade de perguntar do que serviu este intervalo entre os dois pontos: o inato e o “terminato”. A questão do pós-vida vem deixando a humanidade intrigada desde que esta tomou consciência daquilo que ninguém precisa que lhe expliquem: tudo o que vive acaba eventualmente por morrer, passar do tempo, expirar, caducar, chegar ao fim, tal como no fim de cada dia caem as trevas, e tudo se renova – e tudo sem nos dar uma explicação, por mais pífia ou descabida que seja. Encarar a morte requer coragem, e por isso agarramo-nos a eufemismos que não são mais do que mecanismos de defesa: “foi desta para melhor”, “repousa eternamente”, ou “foi para o Céu”. Ai foi? Mas esqueceu-se de levar consigo a cápsula, agora cadáver que jaz aqui inerte. Não podia dizer antes qualquer coisa para nos deixar mais descansados? E a religião é só um dos paliativos a que recorremos para fazer com a ideia dos que agora estão “em paz” nos deixem em paz. Há quem opte por bater à “outra porta”: a adivinhação, a cartomância, o espiritismo, e um sem número de outras charlatanismos. A morte é um negócio, também, e que vai para além das agências funerárias.
Morrer ganha contornos de seriedade sérios quando acontece com alguém jovem, passando de “uma coisa normal” a “tragédia”, como se a própria condição de ser jovem fosse dirimente da morte. Dei comigo a pensar nos pais daquele bebé de cinco meses que faleceu após ser atendido no hospital na semana passada, que apesar de toda esta prosa é sempre algo a lamentar. Mais para eles, os que ficam vivos a suportar a dor da perda daquela dádiva de esperança, e quase dava para sentir a angústia na voz do pai, que vimos na televisão a exigir que se apurassem responsabilidades, e que se ficasse saber exactamente a causa da morte. No lugar dele faria o mesmo, ou pior; é difícil dizer ou pensar o que quer que seja estando do lado de fora do drama que não desejaríamos ao nosso pior inimigo. Mas depois do que adianta se a culpa não morrer solteira, quando já nada nos pode trazer de volta aquilo que a morte nos levou? Se aconteceu por erro humano, claro que queremos que se tomem medidas, nem que seja para que não se volte a repetir, ou se passe a exercer um maior cuidado, pois afinal são vidas que estão ali em jogo. Mas ficar revoltado? Contra a morte? Não vale a pena. Nenhum castigo, nem mil autos-de-fé vão aliviar os vivos da dor da partida dos que supostamente não sentem mais dor. Nem mais dor, nem mais nada. E isto é que nos chateia a sério.
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