sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Chamar a um cavalo de veado


Esta semana para o artigo do Hoje Macau escolhi um dos episódios mais deliciosos da riquíssima e antiquíssima história da China, e estabeleci um paralelo com a actualidade. É engraçado ver como muitas das diferenças que existem em termos de mentalidade entre o país do meio e a nossa civilização se devem a uma "adesão incondicional" à tradição por parte dos nossos simpáticos hospedeiros. Fiquem então com as aventuras de um eunuco de outros tempos, e tenham um excelente fim-de-semana.

Zhao Gou (趙高) foi um eunuco chinês que viveu no final do sec. III AC, servical da corte durante a dinastia Qin, a quarta e a mais curta das dinastias imperiais chinesas – e muito por culpa sua, também. Ambicioso, intriguista, corrupto e sedento de poder, Zhao era próximo do rei Qin Shi Huang (秦始皇), general que derrubou a já moribunda dinastia Zhou e subjugou os sete reinos combatentes, tornando-se o primeiro monarca a reinar sobre a totalidade do território chinês. Consciente da dificuldade que seria manter o seu reino unificado, procedeu a eliminação de tudo o que pudesse representar uma ameaça ao seu exercício absoluto do poder: retirou as terras aos grandes proprietários e regalias à alta burguesia, mandou queimar livros considerados subversivos e assassinar intelectuais, introduziu novas medidas de peso, volume e superfície, alterando outras já existentes, e fez uma reforma profunda no sistema judicial, aplicando penas mais duras e mais severas, e dando carta branca aos militares para executar as leis.

E era por essa razão que o monarca depositava a sua confiança em Zhao, entendido em leis e especialmente em castigos, sendo capaz de imaginar os mais cruéis e dolorosos, que fazia questão de aplicar a quem considerasse ser um obstáculo na sua escalada da hierarquia palaciana. Os imperadores da antiga China confiavam nos eunucos para desempenhar cargos oficiais de grande responsabilidade, uma vez que não havia o risco de usurparem o trono e fundarem eles próprios uma dinastia. Contudo alguns académicos defendem que Zhao podia não ser realmente um eunuco, apesar dos seus irmãos terem sido castrados como castigo pelos crimes de seu pai, pena comummente aplicada naquele tempo. Pode-se mesmo dizer que Zhao “tinha eles no sítio” no sentido figurado, ao ponto de se fazer crer que o mesmo se podia dizer no sentido literal. Apesar do empenho do primeiro rei Qin, a morte levava-o de surpresa após dez anos de reinado, apenas, e quem o devia suceder era o seu filho mais velho, Fuisi, que não morria de amores por Zhao. Temendo a retaliação dos que o odiavam e eram ao mesmo tempo próximos do herdeiro do trono, o eunuco encontrou forma de falsificar o testamento de Qin Shi Huang de modo a fazer o sucessor legítimo entrar em desespero e cometer suicídio.

Consciente de que apenas com o apoio incondicional dos militares poderia alargar a sua área de influência e eventualmente chegar ao trono, Zhao quis consolidar a sua posição dentro do exército, mas para tal necessitava de lealdade a toda a prova. Desta forma elaborou um plano genial: levou um veado até ao rei, que era então Qin Er Shi (秦二世) filho mais novo do primeiro, e que olhava para Zhao como um “mestre”, e apresentou o animal com sendo “um cavalo”. O rei duvidou de imediato, questionando a percepção do seu lacaio, dizendo-lhe que “estaria a ver mal, e que de facto aquele animal era um cavalo”. Zhao permaneceu firme, e sugeriu que se consultassem os oficiais presentes naquele momento na sala do trono, os mais influentes do reino. Alguns, ora por despeito, ora por ingenuidade, afirmaram que de facto o animal era um veado e não um cavalo. No entanto a maioria, ora por medo, ora porque entenderam o plano do maquiavélico eunuco, confirmaram ser de facto um cavalo. Perante isto o próprio ficou na dúvida, e no fim os que contrariaram Zhao foram eliminados, enquanto os restantes passaram no teste de lealdade. Daqui nasceu a expressão “Chamar cavalo a um veado” (指鹿為馬), que ilustra a interpretação errada de um facto com um propósito sinistro, ou uma finalidade oculta.

Transportando este conceito para os nossos dias, não nos custa muito aceitar que por vezes mais vale concordar com algo que nos levanta dúvidas do que iniciar uma discussão fútil e contraproducente. Mas tratando-se de um líder, teria que ser alguém bastante carismático para que obtivesse o apoio unânime dos seus subordinados, mesmo quando estivesse errado. Mas há erros e há erros, assim como existem mentiras que se podem contar ao serviço de uma causa maior e justa, e pequenas intrigas que podem tornar um pequeno mal-entendido numa grande tragédia. Penso que em Macau o personagem desta história, o pérfido eunuco Zhao, não teria que sujar tanto as mãos de sangue, tal é a quantidade de lacaios do rei que vê um cavalo quando olha para um veado, e nem é preciso submetê-los a qualquer prova. A sociedade harmoniosa que os nossos dirigentes tanto apregoam passa pelo estrito cumprimento das hierarquias ,que conforme se vai desenrolando o enredo desta intriga palaciana, deixará eventualmente o rei absoluto na soleira enquanto o resto fica com água pelo pescoço – até ao dia em que podem também eles ser o rei, é lógico. A dinastia Qin durou apenas quinze anos, tantos quantos esta que governa actualmente a RAEM. Será que algum dos oficiais ou eunucos do reino tem a consciência disso?


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