quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Rua da Amargura 苦味街 Bitterness Rd.



Aí está uma notícia que me aborrece, mas que não me consegue provocar surpresa ou espanto: Libo Yan, académico da Universidade de Ciência e Tecnologia (MUST na sigla inglesa, o que explica muito do que vem a seguir) defende que em Macau as vias públicas deviam ter denominação em inglês, de forma a "estimular o interesse dos visitantes". Ah! Boa, é que cansados de confundir a Duck Street (Rua do Pato) com o Chicken Alley (Beco das Galinhas), acabando assim perdidos, andando por portas e travessas sem encontrar a Happiness Street (Rua da Felicidade) - talvez fosse melhor passar primeiro pelo Spectacles Alley (Beco dos Óculos) antes de bater de frente com a Wall Lane (Travessa do Muro). A reportagem do Ponto Final terá certamente como pretexto um estudo publicado no início do mês passado intitulado "Tourist Perceptions of the Multi-Linguistic Landscape in Macau" (旅遊者對澳門多語種景觀的感知, no título original) e subordinado a um tema que me é muito querido: a toponímia de Macau. Uma das (poucas) coisas em que concordo com o tal dr. Libo Yan é nisto: é um tema complexo, riquíssimo, com uma temática diversa, e passível de diversas interpretações. Sendo assim, não entendo como é que se vai chegar a um consenso complicando-o mais ainda, ou seja, introduzindo um terceiro idioma onde se tem procedido a um trabalho incessante na procura de onde dois (português e chinês) têm pontos em comum, ou na busca das razões das suas divergências, procurando entender os porquês. Quando se fala de toponímia de Macau, reduzo-me a um "karma" da humildade muito especial: quanto mais procuro saber, menos sei, e quanto mais aprendo, mais tenho para aprender. Posto isto não posso senão começar a sentir fortes dores no cabelo quando vejo um turista (licenciado em Turismo, neste caso) qualquer vir com as maiores e mais ridiculas presunções que se possam imaginar sobre o tema. Sacrilégio!

Sim, é verdade que até 1869 a toponímia de Macau vivia debaixo de um sistema separatista, com alguns dos arruamentos a ter apenas um nome, ora em português, ora em chinês, com prevalência para os últimos, em especial na zona antiga da cidade, a do bazar chinês, pouco frequentada pela comunidade portuguesa e macaense - esta na altura ainda uma novidade, não existindo sequer o conceito de "macaense" como o conhecemos hoje. Foi o governador António Sérgio de Sousa, na sequência da política reformista do seu antecessor José Maria da Ponte e Horta que deu início ao registo cadastral das ruas, edifícios e terrenos, tendo a própria Conservatória do Registo Predial sido inaugurada precisamente nesse ano: 1869. Como é normal acontecer em situações desta natureza, alguns dos nomes foram dados "à pressa", ora seguindo uma tradução literal do nome em chinês da via publica, ora atribuindo-lhe nomes de figuras da época, algumas obscuras para a actualidade. No entanto fez-se o melhor que se podia para atender ao peso das tradições, superstições e restantes sensibilidades, o os nomes que não se traduziram ficaram na sua forma original, provocando assim as discrepâncias que temos hoje, e que se observam com facilidade: nomes de arruamentos que em português e chinês querem dizer coisas que nada têm a ver uma com a outra. Bom exemplo disso é a própria rua onde vivo, a Rua do Padre António, que em chinês se chama "gou lau kai" (高樓街), ou "rua das casas altas".

O exemplo que Libo Yan usa (e isto fazendo inteiramente fé na tradução do Ponto Final, que faço sempre) do Pátio dos Cules (e não "Beco do Cule", que não existe) é absurdo - o nome português é de facto esse, e na sua versão cantonense "Fu Lek Vai" (苦力圍), mas o nome "Choi Long Lei" (聚龍里) está lá também. Sim, isto significa "encontro de dragões", e tem um sentido positivo, de prosperidade, e talvez por isso mesmo seja fácil encontrar esse mesmo nome em restaurantes e lojas. De facto os cules eram trabalhadores braçais, pouco educados e facilmente ludibriáveis, que muitas vezes eram enganados por quem os contratava e que mais nada tinham para garantir a sobrevivência do que o seu esforço, e muitos deles eram negociados como escravos comuns. A palavra "cule" não é apenas mais do que uma tradução do original inglês "coolie", e chegando à fonte fica fácil de entender de onde é originária esta modalidade tão "porreira" de vínculo laboral, mas pondo essa questão de lado, gostaria de saber como foi Libo Yan chegar às conclusões que o levam a falar de "esperança num futuro melhor" - terá viajado século e meio no tempo, até àquela data, e perguntado a quem morava naquele pátio? É que não eram só os cules que eram conhecidos por dragões, mas sim todo o povo chinês: os chineses são "filhos do dragão", metaforicamente falando. Os cules, esses, eram chamados também de "leitões", pela forma ingénua como se deixavam enganar e ser tratados como mercadoria. Não penso que exista qualquer referência a leitões ou qualquer outro suíno na denominação original daquele arruamento, mas se a prosperidade é o problema, talvez o espertalhão do Libo Yan se tenha "esquecido" de mencionar que "Choi Long Lei" é uma designação que consta quer do cadastro de ruas de Macau, quer da placa toponímica. Mais difícil é de explicar porque é que a Rua dos Cules se chama em chinês "Tin Tong Kai" (天通街), qualquer coisa como "caminho do céu". Isso é que era interessante estudar, em vez de arrotar insinuações provocatórias.

Os restantes exemplos também pecam pela pobreza dos argumentos que os sustentam; "Fonte da Inveja" é o nome em português de "Yi Long Hau" (二龍喉) ou seja, "Fonte dos dois dragões". E depois? Alguem proibiu que se chamasse algum destes nomes, que são os que constam da placa toponímica? O Pátio da Ilusão (não "das ilusões" que não existe) é "Van Kok Vai" (幻覺圍), sendo que "van kok" significa exactamente "ilusão", e por acaso como fica aqui perto de casa, é também conhecido por "Kou Lau Lei" (高樓里) - "Beco das casas altas". Aqui perto existiam casas altas, pelos vistos. Uhhh...que místico. A Travessa do Garfo é "Ch'a Hong", e este "ch'a" (叉) quer dizer exactamente isso mesmo: garfo. Pátio da Adivinhação? "Pok Vai" (卜圍), tendo este "pok" o sentido de "adivinhação", nem mais nem menos. Pátio da Eterna União? "Veng Lun Toi" (永聯台): "veng" = eterna; "lun" = união; "toi" = pátio. Mas Rua da Barca, uh? Que tal? Agora é que me apanharam! Qual quê: "Tou Sun Kai" (渡船街), precisamente "rua da barca" - ou "balsa", se forem esquisitos. Nem Rua da Barca da Lenha, ou "Ch'ai Sun Mei Kai" (柴船尾街) engana seja quem for, pois quer dizer e-xa-cta-men-te isso: uma barca que carrega pequenos pedaços de madeira normalmente usados para atiçar ou alimentar o fogo, ou seja, "lenha". Já agora uma curiosidade: a célebre "Travessa da Chupa", à qual tanta gente acha imensa piada ao nome, é em chinês "Ma Kok Tai Sam Hong" (馬閣第三巷), ou seja, "terceira travessa a contar do templo da Barra", ou "templo de A-Ma". Desconheço o que seja esta "chupa", mas duvido que tenha a ver com alguma sauna de tailandesas ali existente, e deve ser algum objecto especial que os chineses usavam, tal como a "pinga", ou "tam kon" (擔桿), que deu nome a um beco algures na zona do Tarrafeiro.

Recordo que estou a falar sem ter tido acesso ao estudo completo, mas se é mais disto ou pior, também não vale a pena ler. Certamente que na altura em que foram atribuídos nomes em português às ruas que só tinham nome chinês e vice-versa, não seria humanamente possível reunir uma espécie de conselho de notáveis, composto por adivinhos, sinólogos e elites de ambas as partes para que não se perdesse pitada do significado dos arruamentos ou que se ferissem sensibilidades. Uma rua tem um nome, e o nome vale o que vale, e se há por detrás desse nome uma origem que nos remeta para a história, para a simbologia ou que tenha um significado especial, é só ir investigar - que parece ser algo que o dr. Libo Yan não fez, ou fez em cima do joelho. E se com ele foi assim, não seria muito diferente com um turista que olhasse para o nome traduzido de uma via pública em Macau. Fosse um estrangeiro ver o nome da Escada do Quebra-Costas traduzido em inglês para "Brokeback Staircase" e julgava ser alguma referência a um certo filme sobre dois "cowboys" larilas,muito popular há alguns anos. Desconheço as intenções do dr. Libo Yan, e não ouso especular, e muito menos estou aqui a fazer um exercício de vaidade, ou a mostrar que sei muito. É que mesmo eu, sabendo o que sei e vivendo em Macau há 21 anos, em permanente contacto com esta realidade da toponímia, só ousei arrotar postas de pescada sobre o assunto quando já tinha muitos calos - e ainda tenho muito que aprender. Não vai ser alguém que só porque é investigador ou jornalista que cai com o cu redondo em cima do assunto e pensa que vai saber tudo em dois dias. Humildade, meus amigos. Humildade, olhinho bem aberto (o de cima) e ouvidos bem atentos, é o que é preciso.

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