domingo, 2 de novembro de 2014
O traque final
Jantei um Cozido à Portuguesa que me deixou nocauteado, o fui obrigado a fazer a digestão em coma induzido (mesmo assim a sede ainda me fez levantar feito um "zombie" duas vezes). Agora com a espertina, hora de actualizar esta choça, e se o Cozido me deixou fora de combate umas horas, nada como esta sobremesa que deixei preparada pela hora de almoço, e tinha guardada no frigorífico até agora. Oba, oba, ainda mexe.
Passam agora seis anos que o ex-embaixador João Hall Themido lançou um livro de memórias a que deu (inteligentemente) o título "Uma autobiografia disfarçada", e onde "vomita" tudo o que lhe foi dado a saber durante os (muitos) anos em que chafurdou na lama da diplomacia portuguesa. Epá peço desculpa se a linguagem vos ofende, mas eu quando for grande quero ser como este gimbras, e antes de quinar e ir servir de repasto aos vermes, quero ser uma puta coscuvilheira e deixar também um livro destes, onde possa contar tudo o que de outra forma me ia meter numa carga de trabalhos: revelar segredos de estado e factos que na altura poderiam ter relevância mas agora já não têm interesse, falar mal deste e daquele, ajustar contas, desmontar mitos, solucionar enigmas de que já ninguém se lembra, enfim, tudo o que me andaram a pagar para não dizer mas quando estiver quase a morrer solto cá para fora, e toma lá que já almoçaste. Com sorte ainda não estarei gágá e assim levam-me a sério. Ou não. O que importa, de qualquer jeito soltam-se uns traques que já se encontravam em avançado estado de fermentação, bem para lá de azedos, e vai-se para a cova com a consciência menos pesada, e assim pode ser que Lúcifer tenha misericórdia e escolha um tronco com menos lascas para me enfiar pelo rêgo acima e lá ficar para toda a eternidade.
Assim este livro conta episódio "fantabulásticos" testemunhados por Hall Tremido, perdão Themido (a mim não mete medo nenhum, e pelos vistos nem mim, nem a ninguém), e vem provar aquilo que há muito se suspeitava, ou melhor vem reforçar essa ideia: Kissinger era um filho da puta de um porco-judeu - e os judeus que não se intimidem, que o gajo era um judeu que era porco, e não um porco que era judeu, portanto nada contra V.Exas. e um grande shalom de beleza da minha parte. Devia dizer "Kissinger é um filho da puta de um porco-judeu", pois ainda vive (a maldade preserva), mas o senhor agora não faz mal a uma mosca. O mesmo não se podia dizer nos anos 70, quando foi o "spin doctor" dos presidentes Nixon e Gerald Ford, ocupando os cargo de secretário de estado entre 73 e 77, mas desde 1969 andou a fazer o trabalho sujo do imperialismo "yankee", e com o pretexto de esfriar ainda mais a Guerra Fria, punha e dispunha de governos inteiros um pouco por todo o mundo, trocava líderes, ordenava golpes de estado, enfim, todas essas coisas que deixam milhões de pessoas na miséria, ou pior, no cemitério, mas que para ele era uma brincadeira. Era como beber um copo de água.
Ah pois, que injustiça, Leocardo, o homem foi responsável pelo cessar fogo que culminou na retirada das tropas americanas do Vietname, assinando o tratado de Paris, o que lhe valeu o prémio Nobel da Paz (isto é prova do que vale essa merda), reatou as relações com a China de Mao, atribui-se a ele o conceito de "realpolitik" (grande coisa), em suma, é um génio. Claro, acreditem no que quiserem, e já agora agradeçam-lhe a invasão de Timor-Leste pelo exército indonésio em 1975, e acendam uma velinha à Nossa Senhora dos Desenrascados por não termos tido os espanhóis a fazerem-nos o mesmo, quando no mesmo ano o Verão foi tão quente que ali o Kissinger queria ligar uma ventoinha para refrescar a "troika" encabeçada pelo lãzudo do Cunhal, o Otelo de cinco estrelas e mais o camarada Vasco da muralha d'aço - e isto só para mencionar a parte que nos toca, e já que falei da China de Mao, mais à frente vou abordar Macau no contexto da época. Mas de volta ao livro do outro velhote.
Entre a peixeirada da grossa que Hall Themido vende na sua lavandaria em forma de livro de memórias, contam-se algumas curiosidades que são de uma importância que ai Jesus! se a gente não soubesse que a princesa Diana afinal não era grande e não sabia dançar, ou que Sá Carneiro fazia "birrinha" porque o departamento de estado norte-americano gostava mais do Marocas do que dele. Contudo a maior polémica tinha a ver com a revelação de que Aristides de Sousa Mendes era "uma fraude", que "nem era embaixador, mas apenas um cônsul" (?), e que os próprios judeus criaram o mito de que Sousa Mendes salvou resmas deles de serem transformados em sabão - porque carga de água não sei. Esta predisposição contra os judeus leva-me a deduzir que o senhor estava realmente gágá, pois um dos sinais de que demência tomou conta da loja é a embirração com essas coisinhas de nada, tipo as crianças, as mulheres de saia, a música alta, os judeus...além disso o tipo era um "facho", e esses andam a implicar com tudo desde o 25 de Abril. Não pude deixar de sorrir quando ele diz que Kissinger - que não gostava mesmo nadinha dos portugueses - dizia que Mário Soares era "um tonto". Só tenho pena que na minha épica tarefa de remar contra a maré da idolatria do suposto "pai da democracia" portuguesa esteja em tão má companhia. Mas pronto, Kissinger apenas disse o que toda a gente sabe mas muitos preferem guardar para si, ou fingem que não sabem.
Hall Themido já tinha "ameaçado" em 1995 com a publicação do livro "Dez anos em Washington, 1971-1981: As verdades e os mitos nas relações luso-americanas", este num tom mais "cordial", mas é nas memórias publicadas passam agora seis anos que revela o deboche total que foram meio século de diplomacia lusa, falando de tudo, desde a tomada das províncias da India Portuguesa a Timor-Leste, a descolonização em África, com destaque para a forma bestia como f...os Angola, e lá está Macau, a Revolução Cultural e os incidentes do "1,2,3". A respeito disto que nos diz bastante traça um cenário negro da posição portuguesa após os incidentes, diz que Macau "lhe ficou a dever muito" e lamenta não ter recebido um convite para as cerimónias do "handover". Não sei o que lhe ficámos a dever, e porquê, mas a verdade é que o período de dez anos entre o "1,2,3" e o fim da Revolução Cultural, com o 25 de Abril e a descolonização pelo meio tiveram influência decisiva na forma como decorreu a própria transição, e deixa-nos a pensar como teria sido se, para variar, tivessemos feito bem as coisas - se podia ter sido pior, nem quero imaginar. Já hoje fiz duas referências ao tema, mas enquanto pesquisava na net de modo a encontrar mais algumas pistas, deparei com este documento que me deixou saber um pouco mais. Ao contrário do ex-embaixador Hall Themido, não nasci há 500 anos, e não me resta senão pesquisar. Quanto ao "handover", olhe, se não esteve cá (podia ter vindo a título individual, porque não o fez?) não perdeu grande coisa, mas se diz que lhe devemos assim tanto, deixe-me dizer-lhe que nem em rua, estátua, ou mera menção na porta de uma retrete pública o seu nome consta.
Aparentemente os incidentes do "1,2,3" foram apenas o desfecho inevitável de um século XX de muito pouca vontade de parte a parte em manter Macau como colónia portuguesa. A situação na China continental deteriou-se desde o início do século, e a própria república "nasceu torta", com os nacionalistas a nunca se assumirem como um Governo que afirmasse a independência e soberania do país, deixando-o nas mãos dos chamados "warlords", ou "senhores da guerra", valendo por dizer que as leis eram ditadas pela forças das armas. Em Macau o administração colonial era feita de uma forma tosca e embrutecida, e os seus intérpretes insistiam em passar legislação que ia no sentido oposto dos costumes chineses. Algumas eram de louvar, como a proibição da venda de ópio ou do jogo ilegal, mas o "caldo" ficou entornado em Maio de 1922, quando após a humilhação de uma mulher chinesa por parte de um soldado africano, um grupo de operários chineses resolve fazer justiça pelas próprias mãos, enchendo de porrada o atrevido, e disto resultaria a detenção de alguns dos agressores. Posto isto vários companheiros seus juntaram-se junto das instalações da polícia na Rua da Caldeira, exigindo a sua libertação, e a situação descambou no dia seguinte, quando já se encontravam dez mil (!) residentes à porta do posto, o que levou as autoridades a disparar, resultando na morte de 70 operários chineses. O incidente ficou lamentavelmente conhecido por "Massacre de chineses por soldados portugueses" - mau prenúncio, e depois disso seguiram-se greves, e o ambiente demorou a arrefecer.
A administração ganhou alguns pontos durante a II Guerra Mundial, com o estatuto de neutralidade de que Portugal usufruia a tornar Macau num oásis perante a ocupação japonesa da China e de Hong Kong. Um oásis salvo seja, pois a presença de qualquer coisa como cem mil soldados nipónicos do outro lado das Portas do Cerco impediam a chegada de mantimentos, a fome era uma realidade que se ia acentuando com a chegada de cada vez mais refugiados do continente, e era comum encontrar cadáveres espalhados pelo chão das ruas. A existência de "traidores" (chineses que apoiavam o exército invasor) infiltrados provocava ocasionalmente o terror entre a população, e o diminuto exército português encontrava-se um pouco sem saber o que fazer, temendo que a qualquer momento os japoneses entrassem pelo território e tomassem o seu controlo. A guerra terminou com a derrota das tropas imperiais de Hirohito, e Macau voltou à normalidade, mesmo que logo após a Guerra Civil de onde sairam vencedores os comunistas de Mao Zedong se tivesse começado a falar do regresso do território à soberania chinesa. Os argumentos para evitar que tal acontecesse eram poucos, pois em inícios da década de cinquenta a população de Macau era de cerca de cem mil habitantes, e pouco mais de mil destes eram portugueses e macaenses. Valeu então na circunstância a desastrosa gestão de Mao, que resultou na grande fome de 1959/61, e as lutas internas dentro do PC chinês que culminaram com a Grande Revolução Cultural, poucos anos depois.
Os planos de Mao, que visavam consolidar o poder e proceder a uma "limpeza" interna começaram finalmente e merecer a atenção de Lisboa sobre Macau, e amiúde chegavam relatórios sobre as actividades dos guardas vermelhos no território, e do crescente ambiente de insatisfação com a administração portuguesa. Os incidentes do "1,2,3" foram o clímax dessa insatisfação, e peço desde já desculpa com quem discorda desta ideia, muita da culpa de tudo o que se passou se deve à falta de tacto do tenente-coronel Carlos Armando da Mota Cerveira e do seu superior tenente-coronel Octávio Galvão de Figueiredo, que perante o ambiente de agitação que se vivia no continente, mantiveram uma posição desafiante e inflexível perante a fúria dos "patriotas" de Macau. As obras de ampliação da escola chinesa na Taipa serviram no fundo de pretexto para um fim maior, primeiro o de parar com as actividades de espiões nacionalistas no território, uma das exigências que constaria de muitas das listas que seriam entregues ao Governo nos meses seguintes, quiçá a maior (única?) preocupação de Mao, empenhado em "sacudir" a ameaça de uma contra-revolução, e passar a administração "de facto" dos destinos de Macau para as mãos da Associação Comercial. Uma das condições, mesmo que tendo apenas um carácter simbólico, era a retirada da estátua do antigo governador Ferreira do Amaral de frente do Hotel Lisboa, que era vista como um "insulto" à comunidade chinesa; Ferreira do Amaral foi como se sabe um dos mais destemidos e firmes executores da soberania portuguesa sobre Macau.
A única referência a Hall Themido surge no contexto da visita de uma delegação do Ministério do Ultramar composta por 4 elementos, no dia 23 de Janeiro de 1967, que segundo o próprio tinha um carácter "de averiguação", pois em Lisboa temia-se que o Governo de Nobre de Carvalho não estaria a cumprir com as directivas de Salazar que eram "de firmeza" (assim foi em Goa quatro anos antes, e depois foi o que viu). Themido participou numa reunião no Palácio da Praia Grande, onde "se vivia um ambiente de guerra", descreve o diplomata, "como se estivessem cercados". Nessa reunião estavam Mesquita Borges, Carlos Assumpção e Adolfo Jorge, além do Governador. Regressado a Lisboa dois dias depois, Themido elaborou um relatório onde dava conta das cedências feitas pelo Governo de Macau, que leu a Salazar, e este laconicamente dava por perdida a autoridade de Portugal sobre a província, e que "uma vez perdida, dificilmente seria recuperada", mas tacitamente o ditador nada decidiu. Sorte nossa, digo eu, que outro relatório, este "secreto", elaborado por Ribeiro da Cunha foi apresentado ao presidente do Conselho no dia seguinte, e este decidiu-se pela manutenção simbólica da adminstração portuguesa em Macau: bandeira, moeda e pouco mais - "seria como administrar um condomínio, e não um exercício de soberania", nas palavras de Salazar.
E os incidentes iam cessando a pouco e pouco, e a retirada da estátua de Ferreira do Amaral em frente ao Hotel Lisboa, uma das exigências dos "patriotas", bem como a entrega dos espiões de Taiwan e a cessação das actividades dos nacionalistas esfriou os ânimos, numa altura em que os portugueses eram constantemente humilhados pela comunidade chinesa, com esta a recusar-se vender-lhe um grão de arroz que fosse. Passada a tempestade, Macau gozaria a partir dos anos 70 de um período de grande prosperidade económica, com as regras a serem ditadas pela Associação Comercial, com os nomes de Ho Yin (pai de Edmundo Ho), Chui Tak Kei (pai de Chui Sai On) e Ma Man Kei (avô de...deixem para lá) à cabeça. Nobre de Carvalho ficou lembrado pela sua tremenda abnegação e capacidade de sofrimento, e depois dele a administração portuguesa passou basicamente a ter um papel paralelo, mais burocrático. Apesar dos sobressaltos (descolonização e consulado de Almeida e Costa, para citar dois exemplos) foi-se fazendo calmamente até à passagem de testemunho em Dezembro de 1999. Perante os factos, é possível que alguém pense que os chineses foram fazendo jus à sua famosa paciência, ou têm memória curta pelo facto de não terem corrido connosco mais cedo, mas trata-se de uma questão de "manter a contabilidade", e no fim todos ficam a ganhar. Quem não entra nessas contas é o ex-embaixador Hall Themido, que (sal)azarentos são os gatos pretos, e dos fracos não reza a história.
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