sábado, 8 de novembro de 2014

Horror ao erro



Mais um fim-de-semana, mais um capítulo no complexo processo que nos leva a tentar entender a mentalidade de uma cultura tão díspar na nossa, em mais um artigo do jornal Hoje Macau. Aproveitem o que puderem deste fim-de-semana de chuva (uma autêntica merda, diga-se de passagem).

Continuando esta semana pelos trilhos do desconhecido, na tentativa de compreender melhor certos aspectos culturais que fazem desse encontro entre Ocidente e Oriente uma mistura, senão explosiva, pelo menos efervescente e picante. Na semana passada dei o exemplo de um caso que testemunhei na juventude, talvez demasiado obscuro, mas hoje farei o mesmo exercício comparativo usando um outro mais recente, e muito mais mediático. Aconteceu há cerca de dois meses com um conhecido actor e apresentador da RTP, durante uma emissão em directo de um daqueles programas de Verão que primam pela banalidade. Cabia ao indivíduo em questão anunciar um sorteio que contemplaria um telespectador com um prémio de mil euros em dinheiro, que segundo ele “dá para comprar muita coisa; droga, por exemplo”, deixando isto bem claro, dizendo-o alto e bom som, enquanto se dirigia às câmaras. A ousadia teve algum impacto, tratando-se de um programa “familiar”, com uma audiência considerável e transmitido para todo o mundo lusófono. Bastou ao actor explicar que se tratou de uma brincadeira (o que não é difícil) e demonstrar algum arrependimento, e assim o incidente passou à história.

Mais uma vez apliquemos a medida local para este episódio – como seria se um actor fizesse uma “gracinha” destas em Macau? Aqui devíamos antes usar Hong Kong como exemplo, onde existe uma indústria do entretenimento, e neste caso tudo ia depender da popularidade do sujeito. Se fosse um iniciante bem podia dar por terminada aí a carreira, e se já tivesse um nome que as audiências reconhecessem, ficaria naquilo que chamam de “congelador” – afastado uns tempos, regressando gradualmente enquanto se sujeitava a tudo o que lhe pedissem para fazer. Mesmo um artista de topo teria que fazer um esforço suplementar para limpar a imagem, não se podendo dar ao luxo de esperar que um simples pedido de desculpas resolvesse o problema.

Num âmbito mais alargado, tanto de um lado como do outro do Rio das Pérolas a forma como se encara o erro é a mesma: pânico, desespero, terror. Ao contrário do Ocidente, onde é encarado como parte do processo de aprendizagem, aqui é o prenúncio de mais erros, ou erros mais graves. Os chineses também aplicam a velha máxima do “só não erra quem não faz”, mas com um “twist”: se quanto mais se faz maior é a possibilidade de errar, então tenta-se fazer o menos possível. Com isto não quero dizer que não se trabalha, ou que existe preguiça endémica, mas é tudo uma questão de assumir responsabilidades, algo que é da competência dos que ocupam os lugares de topo na pirâmide hierárquica. Mas nem isto é um dado adquirido, pois quem tem muitos degraus abaixo do seu pode delegar competências a um subordinado, e caso este esteja colocado no patamar imediatamente inferior, isto pode ser entendido como um sinal de confiança, o que é de louvar e acontece com relativa frequência – nunca foi a minha ideia pintar um “quadro negro” seja do que for. Mas quando não acontece, e a melhor opção é “fugir com o rabo a seringa”, opta-se por alguém dois ou mais degraus abaixo, com menos argumentos para recusar ou protestar.

É possível que um ou mais leitores tenham deparado com uma situação que se verifica habitualmente nos balcões de atendimento; levanta-se uma dúvida, pede-se ajuda ao colega do lado, que esclarece essa dúvida, e responde-se ao utente começando a frase com “ele disse” ou “o meu colega disse”. Isto no Ocidente pode ser entendido como incompetência ou falta de carácter, mas aqui é considerado a coisa mais normal do mundo, e chego a pensar que o outro ficaria ofendido se a afirmação não lhe fosse atribuída. É uma combinação interessante entre “passar a batata quente” com a lei dos direitos de autor. Outra curiosidade com que muitos já devem ter deparado é o zelo a toda a prova demonstrado por certos funcionários quando detectam algum lapso num requerimento, declaração ou formulário, e nos pedem para rubricar junto da parte emendada. Seja uma rasura mais evidente – o que nesse caso se justifica – ou uma simples perninha num “erre”, rubrica-se sempre. A impressão com que ficamos é que eles temem que a vida nos corra mal e os acusemos de ter posto uma pinta a mais em cima de algum “i”.

Onde se nota mais esta “errofobia” é nos serviços onde o trabalho é sobretudo de pendor burocrático e não requer especialização ou habilitações acima das mínimas, ou seja, praticamente qualquer pessoa o pode fazer. Por essa mesma razão aqui deveria existir menos a pressão de errar, mas na falta de critérios de diferenciação variados, o erro reveste-se de uma importância extrema: tem mais mérito quem menos erra. Isto leva muitos vezes à lógica do “tiro ao boneco”, ou seja, entre aquele que dispara um tiro e deita abaixo um boneco, e outro que dispara dez e acerta em nove, ganha o primeiro, pois teve uma eficácia de 100%, enquanto o outro errou, e assim fica associado ao erro, condenado ao fracasso. Nos casos em que a distribuição de tarefas é igualitária, a regra é “cada macaco no seu galho”. Inicialmente arranja-se dois ou três colegas com quem se possa para esclarecer dúvidas, seguem-se as directivas à risca obedecendo cegamente aos superiores, faz-se o necessário e não mais do que isso, e sempre de olho no parceiro do lado, pois onde a meta é não errar, é mais que possível que os velhacos dos colegas montem armadilhas.

Neste meio é possível encontrar um tipo de funcionário que encara todo o serviço, mesmo o mais simples, como se de neurocirurgia se tratasse. Correm para a máquina do fax, como se cinco segundos fizessem toda a diferença, falam em voz bem alta, não vá o receptor alegar que não ouviu, e assim ficam terceiros como testemunhas, e entram em “tilt” quando lhes surge um obstáculo mais difícil pela frente – se forem mulheres (e normalmente são) choram. Estas são pessoas que não tendo outro talento, passatempo ou apoio afectivo, vêem o trabalho como a única coisa que têm na vida, e errar torna-se quase tão sério como a morte de um familiar. Quer estes, quer todos os outros, fazem o que podem para errar o mínimo possível, e em caso de sucesso, podem no fim do dia concluir as orações com um “…e livrai-nos do erro, amén”.


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