segunda-feira, 27 de outubro de 2014
Patriolítico
Quando ouvimos falar de "educação patriótica", vem-nos de imediato a cabeça a imagem de um passado recente que preferimos tentar esquecer: o Estado Novo, o Salazarismo, e a sua trindade "Deus, Pátria e Família", e se no caso dos outros dois é dificil encontrar um substituto à altura, os rigores da ditadura de índole corporativista deixou-nos divorciados da palavra "pátria", tal como de outras, casos de "nação", "luso" e até do próprio nome do nosso país, "Portugal", inserido em certos contextos. O que a ladaínha do rústico santacombadense pretendia alcançar era um sentimento de pertença a um todo que ele idealizara como "mundo português" (que foi tambem o nome de uma exposição temática realizada em Lisboa em 1940) e em nome dessa vontade recusou abrir mão das colónias ultramarinas, que chamava de "províncias", equiparando o Minho e o Alentejo a Timor ou Angola, deixando o pais no isolamento, o que também foi desvalorizado com recurso ao eufemismo "orgulhosamente sós" - pelo menos havia quem se orgulhasse de tal. Os mais velhos que eu pelo menos uma dezena de anos devem certamente recordar-se da retórica com que foram "vacinados" logo no ensino primário, e dos conceitos de família como o elemento nuclear da sociedade, o Estado como entidade gestora desse conjunto, com Deus, e apenas Deus acima de todos. Não tenho a certeza se algures num dos livros escolares desse tempo se lia que Deus aprovava o Chefe do Conselho, mas a ideia que se deixava implícita era basicamente essa.
Mas também nos restantes regimes totalitários, de ideologia marxista-leninista, a educação patriótica foi utilizada como meio de propaganda, de modo a mentalizar desde muito novos os jovens e futuros adultos a ter em elevada consideração e estima essa imagem de "Pátria", atribuindo-lhe qualidades muito acima do seu mero valor abstracto. Estaline e a URSS foram os pioneiros nesse estilo que se destacava pelo elevado rigor artístico; quer na música, cinema, cartazes propagandísticos, literatura ou qualquer outra expressão, era notório o esforço em cativar o receptor, e assim transmitir a mensagem ao mesmo tempo que se despertava com entusiasmo o sentido patriótico. Depois de Estaline foram a China de Mao e a Coreia dos Kim quem melhor aproveitou a ideia. As temáticas nao divergiam muito conforme o regime: exacerbar os feitos heroicos da nação, omitir os erros ou atribuí-los aos inimigos, demonizar esses inimigos, aqui quase sempre com os Estados Unidos e o Japão a cabeça, e eventualmente o Ocidente em geral, representar um povo feliz e grato pela revolução do proletariado e elevar o líder da nação a um estatuto quase divino - o tal "culto da personalidade", uma estratégia que visava consolidar o poder. Estaline optou por fazer passar a imagem do grande chefe de uma família numerosa unida pela URSS, o "pai dos povos", enquanto os Kim atribuiam a si mesmos poderes sobrenaturais, como a imortalidade ou a cumplicidade com a natureza. Já quanto a Mao, este conseguiu levar ao extremo esta ideia do "culto da personalidade", ao lançar nos anos 60 a Revolução Cultural. A ele atribuía-se quase tudo de positivo, desde o arroz na mesa ao nascer e o pôr do sol ou à reprodução das espécies - uma transe colectiva que ainda hoje está por explicar com mais precisão. A própria ópera de Pequim chegou a ser substituída por uma versão patriótica, e é com algumas reservas que os chineses modernos olham para tudo isto que se insere no conceito de "educação patriótica", a que olham como uma espécie de "vaca sagrada". Os próprios campos de reeducação pelo trabalho, autênticos campos de concentração onde se castigava a desobediência sem recurso a julgamento, são vistos como uma forma extrema de educação patriótica.
Já aqui expliquei que tenho uma espécie de problema mal resolvido com esta expressão, "amar a Pátria". Talvez seja um conflito entre o sentimento de afeição que a palavra "amor" implica e o objecto desse afecto. Além do amor carnal e da sua expressão física, temos o amor fraternal, que se sente pelo próximo, e aqui podemos incluir os pais, os irmãos, os filhos e os amigos, ou o amor espiritual, que julgo ser onde a "pátria" se classifica para os autores do conceito. Poderia entender isto como a mesma coisa que o amor às belas-artes, a um clube desportivo, e aqui por vezes mistura-se o amor com a paixão, qual dos dois o mais irracional, ou o amor aos valores que todos prezamos sem que para isso seja preciso sermos ensinados ou aprender a gostar, casos da liberdade ou da vida, por exemplo. E é aqui que reside a grande falácia da educação patriótica; quer nos exemplos de Salazar quer de Mao, ou nos outros que mencionei e onde existe um forte pendor totalitarista e autoritário, o aspecto militarista tem uma importância decisiva - é ao exército que cabe defender a soberania da nação, e por inerência a esta o próprio regime, que sendo neste caso autocrático e não necessita do apoio popular, tem que contar com seu braço armado, deixá-lo satisfeito, ou arrisca-se a vê-lo virar-se contra si - quem quiser o poder necessita sempre do exército, e a lealdade deste depende de muitos factores.
Posto isto, um dos fins a que se propõe esta educação patriótica e o seu anexo "amor à Pátria" é o de convencer o seu público-tipo (os jovens) de que é o seu dever "dar a vida pela Pátria", seja isso necessário. Em estados onde não há democracia e por isso o Governo não deriva da vontade popular isto é uma prática tida como "normal", enquanto nas democracias minimamente funcionais seria considerado suicídio político. Na China foi chão que deu uvas até se dar o milagre económico, agora é encarado como uma patetice. Claro que os chineses são patriotas, pouco tolerantes ao desaforo, mas isso quando atingem o seu país; com o partido é outra história - quem são estes tipos para que eu vá morrer por eles. E de facto numa era onde já não há heróis e a informação circula de uma ponta à outra do planeta, não há sequer a hipótese de um careca esconder a careca; o que é, é, e o que não é não entra na contabilidade. Eu próprio sou alérgico a essas definições de traição, sedição, secessão e quejandos que constam da tal lei que o artº 23 da Lei Básica produziu, que mesmo sabendo que não me são dirigidos, não os aceitaria de qualquer jeito: nunca morreria "pela Pátria", nem a minha nem qualquer outra, nunca combateria numa guerra qualquer mandado pelos tipos que depois ficam com o rabo sentado nos gabinetes ou nos quartéis a "delinear estratégias" como se as pessoas de carne e osso fossem peões num tabuleiro de xadrez. Nada contra as pessoas que tiveram familiares caídos em combate, ou que ainda vivas sofreram pela sua autonomia e pela liberdade do seu povo, mas o meu país é onde eu me sinto melhor. A "Pátria" nao é mais senão um espaço físico-político, o hino e a bandeira são símbolos, e como tal têm esse valor apenas: simbólico. Não me atrevo a julgar ou a fazer pouco das pessoas que choram quando ouvem o seu hino ou vêem icada a bandeira do seu país porque não as entendo, não percebo essa reacção. Entao quer dizer que "respeito", pelo menos? Não, e também não condeno: não entendo.
Na semana anterior à última, mais precisamente no dia 17, se não estou estou enganado, dois deputados da AL em Macau sugeriram que se devia introduzir nas escolas do território essa disciplina de educaçãao patriótica, de forma a promover entre os mais jovens o tal "amor a patria". Isto no seguimento dos recentes incidentes que tiveram como palco Hong Kong, e onde o movimento "Occupy Central" chegou a contar com um apoio significativo da populacao no sentido de exigir de Pequim maior autonomia para a regiao, e de um modo geral, de forma imolicita, uma maior abertura da parte do regime e a implementação de reformas democráticas. Os deputados em questão receiam que o mesmo pode vir a suceder-se em Macau, e para evitar que tal aconteça nada como começar por recordar os mais jovens de que devem lealdade ao seu país, e por inerência ao Estado, pois quaisquer investidas contra o princípio fundamental onde assenta a Patria, a sua unidade, pode colocar em risco a sua propria existência como entidade soberana, e assim arrisca-se não só ele a perder essa identidade, mas colocar em risco a identidade dos seus compatriotas, que se orgulham da Pátria, valorizam o seu carácter uno, e não pensariam duas vezes em dar a vida em nome desse ideal. Quem entende isto desta forma, é claro que só pode estar a querer demonstrar que ele proprio é um verdadeiro patriota, um daqueles "as antigas", mas ao sugerir tal medida apenas com o carácter preventivo, dá a entender que esta a dar aos miudos um "puxão de orelhas" adiantado, e passar a mensagem que "de onde veio esse há mais". E no fim de contas é passar um atestado de inaptidão intelectual aos jovens de Macau; não estamos aqui a falar de uma aldeia no interior da China, perdida nas montanhas e isolada do mundo, onde a pouca informação que chega é submetida a uma rigorosa triagem, e uma população receptiva a acreditar em tudo o que alguém com o mínimo de autoridade lhes queira fazer crer.
É que actualmente os conceitos outrora ensinados no contexto da educação das massas, das ditas classes operárias e dos camponeses, caíram para a classificação de "kitsch", que não deixando de ter o seu encanto, ou até algum valor nostálgico, não têm qualquer expressão nos tempos que correm. Como é que se vai incutir na juventude moderna este tipo de valores? Perguntem a qualquer miúdo chinês se lhe derem a escolher entre uma bandeira da China e um iPhone 6 novo, qual ele prefere. E onde se insere aqui o discurso de que tudo deve ser ponderado de acordo com critérios científicos, quando se atribuir à Pátria características quase humanas, tentando personificá-la? Quando Pequim tentou introduzir este conceito em Hong Kong de modo a "endireitar o mau aluno", a ideia foi muito mal recebida, e dos protestos nasceu a lenda, Joshua Wong, o tal activista em ponto pequeno, um dos fundadores e actual líder do escolarismo. Se não serviu para a RAEHK e até teve efeitos preversos, o que leva estas pessoas a pensar que serve para Macau? A educação patriótica é como uma mézinha do tempo dos nossos avós que requer horas a preparar e de eficácia duvidosa, enquanto se pode adquirir na farmácia um medicamento genérico que actua em minutos com resultados garantidos. O pior é obter a receita médica, pois até os mais novos, e com toda a certeza a maioria dos seus pais, têm consciência de que a actual classe dirigente tem ela própria muito que aprender no que toca a fazer sacrifícios em nome do "amor à Pátria". Isto sem querer estar a referir estes dois deputados em particular, mas não deixa de ser curioso que um deles tenha parcerias na área dos negocios com os japoneses, um dos "vilões" segundo os currículos da educação patriótica. Assim sendo, na eventualidade de insistirem em levar para a frente esta ideia (o que eu duvido), ainda se arriscam a ouvir dos jovens que pretendem "educar": "Amor à Pátria? OK, o que é que queres que eu te ensine?"
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