quarta-feira, 29 de outubro de 2014
O óleo e a máquina
Quando o presidente Xi Jingping anunciou o combate à corrupção a prioridade do seu Governo quando tomou posse em 2012, soaram os alarmes em várias facções do Partido Comunista chinês. Entre palmas mais ou menos sinceras, deveriam haver os que pensavam "bolas, estou lixado", enquanto outros diziam com os seus botões "boa, agora é que aquele gajo se lixou". Tem sido um pouco assim, nessa "transparência opaca" que se tem situado o partido único na China, onde já nem vale a pena negar a existência de cisões internas. Todos os partidos têm cisões, e depois? Aqui é diferente, pois a pedra basilar do PC chinês é, ou foi, a sua unidade. Como em quase tudo o que fazem, os chineses são radicais: ou todos concordam, ou ninguém se entende, e quanto mais perdura uma situação, mais abrupta é a mudança para o seu oposto. O problema é essa droga do poder, a única pior que o ópio, e que se torna ainda mais perigosa pelo facto de apenas poder ser consumida em exclusivo; o poder é uno, indivisível, e mesmo que se diga que está repartido por dez, vinte ou mil, haverá sempre aquele se considera a trave-mestra do poder.
Tem sido esse o problema de muitas revoluções e golpes de estado em todo em mundo. O ideal é que os militares, os únicos capazes de decidir a queda de um regime pela força, tomem o poder, e de seguida chamem a sociedade civil a convocar eleições, restituindo assim a democracia - isto nos exemplos em que a mudança se dá da tirania para a democracia. Em muitos casos dá-se o inesperado: o poder cai nas mãos do exército, e o líder da revolução considera-o um bem demasiado precioso de o deixar nas mãos de outro ou outros, enfim, os que ao contrário dele não arriscaram a pele para mudar o que estava mal. O pretexto para se agarrar ao poder pode ser qualquer um, desde a fragilidade do sistema, um ataque iminente da parte do inimigo, uma população mal preparada para decidir os destinos da nação, mil e uma coisas. E assim vai-se segurando o poder, adiando eternamente a sua partilha, criando cada vez mais insatisfação, exercendo cada vez mais opressão, fomentando cada vez mais a corrupção.
Quando cheguei a Macau tinha 18 anos, o que vale por dizer que não sabia nada da vida. Nasci meses depois da Revolução dos Cravos, portanto cresci em liberdade e tenho uma memória muito vaga dos tempos de indefinição democrática que o nosso país atravessou até à entrada na União Europeia, então chamada de CEE. Para os portugueses aquilo era como se tivessemos atingido um "karma" civilizacional, o supra-sumo da modernidade. Para mim o terceiro mundo era qualquer coisa menos aquilo, e quando ouvia falar de "corrupção" imaginava tipos de cartola e charuto sentados numa poltrona com um gráfico dos lucros subir pendurado na parede, sempre em curva ascendente, enquanto pela janela se viam os bairros de lata para onde o dinheiro que o gato gordo açambarcou deviam ter ido. Nesses bairros viviam viúvas e orfãos, que passavam o dia a pedir esmola na beira da estrada com o corpo coberto por trapos, e de vez em quando passava perto deles um Bentley, por cima de uma poça de lama que os deixava ensopados da cabeça aos pés, e lá dentro vinha o ricaço, a rir-se com gosto, sempre com o charuto entre os dentes. Sim, penso que já fui comunista. Mas depois passou-me, não se preocupem.
Quando somos jovens e idealistas há coisas que nos causam espécie e pensamos que não conseguiremos ser felizes enquanto não acabarem com elas: a pobreza, a fome, e lá está, a corrupção. Mais tarde aprendemos que estas coisas existem porque sem elas não conseguimos realizar a nossa própria felicidade; como vamos saber se somos realmente felizes sem um infeliz qualquer ao nosso lado para servir de termo comparativo? É por isso que o comunismo não resulta: como pode ser que todos tenham exactamente o mesmo? É aí que chegamos à conclusão que o mundo é uma merda, que os idealistas querem um Mercedes para se calarem, e os outros que não querem um Mercedes querem outra coisa qualquer, tipo...gajas, é isso. Os americanos sorriem-nos e dizem com aquela cara de idiotas: "é o liberalismo, amiguinho; a lei do mais forte". É isso! O mundo é uma metade a tentar comer a outra, e a metade mais pequena é maior que a metade maior - chama-se "mercados". Aprendi a lição, e agora cada vez que dou com um jovem de 18 anos como eu fui um dia a dizer-me que quer "mudar o mundo", digo-lhe com ternura enquanto lhe sorrio cândido: "espera mais dez anos, depois é um filho da p...como toda a gente". E isto era sobre o quê, mesmo? Ah sim, corrupção. E a China.
Pois, eu cheguei cá e falava-se muito de corrupção. Discutia-se a corrupção. Existia o CCAC - e era uma coisa mais ou menos recente, ainda estavam a decorar o escritório. Assistia a um vaivém de dinheiro frenético, cem patacas para aqui, cem patacas para ali, envelopes com duas ou três notas de cem, às vezes uma de quinhentos. Era raro gastar uma nota de mil, que para mim naquele tempo ainda eram vinte contos. Numa dessas passagens de testemunho vi um envelope vermelho com os desenhos sugestivos, de dois meninos reconchudos em cima de um pêssego maior que eles, e recordo de me explicarem que isto era um tipo de envelopes que davam aos noivos no casamento, conhecidos por "lai-si". Perguntei ao tipo se "tinha casado", e ele soltou uma gargalhada e disse-me que "não". Fiquei sem entender, até que alguém me explicou que eram "luvas". "Luvas?!?! Que disparate!", exclamei eu, "sei muito bem o que são luvas". Chegou o Natal, o primeiro Natal em Macau, e chegavam às repartições cestas e cestas cheias de doces, frutos secos, vinho, whiskey, mil e uma coisas. Diziam-me para "tirar o que eu quisesse", o mesmo que diziam a todos. Escolhia sempre aqueles bonbons com recheio de licor, que em Portugal era algo tido como um produto de luxo, que não era para todas as bolsas. A naturalidade com que aquilo se fazia deixava-me a pensar: "será que me enganei, e o Pai Natal existe mesmo?".
Entretanto fui à China pela primeira vez. Atravessei as Portas do Cerco e lá estava eu, no gigante comunista, o país mais populoso do mundo. Era apenas Gongbei, o distrito de Zhuhai mais próximo da fronteira com Macau, mas era como se tivesse atravessado um portal para outra dimensão. Como era tudo diferente, e a primeira coisa que se senti foi que precisava de rever aquela noção de "paraíso socialista", que não era ali com toda a certeza - devia ser mesmo em Cuba, afinal. Caminhos de gravilha, crianças descalças, lojas que vendiam aparelhagens estereo que deixavam aos berros, um cenário meio caótico, abaixo das minhas piores expectativas (era um optimista, note-se). Reparei sobretudo nas autoridades, e tirei uma foto com dois soldados que estavam sentados numa loja de cigarros. Achei curiosos os seus uniformes, que pareciam vários números acima dos seus. Almoçámos num restaurante já em Zhuhai, a vinte minutos de autocarro de Gongbei, no primeiro andar de uma espécie de loja de aparelhos electrónicos que vendiam uns tais "CDs piratas". A nossa amiga chinesa, que serviu de cicerone, perguntou-me se eu queria "filme pirata". Respondi-lhe que não era o meu género, não gostei do "Hook" e ainda estávamos a uns dez anos da série "Piratas das Caraíbas".
No restaurante notei o esforço para que se desse um aspecto distinto, e tirando o papel de parede vermelho descolhado aqui e ali ou o uniforme amarrotado dos empregados, não tinha assim tão mau aspecto. A comida estava dentro das expectativas, e reparei nas empregadas de mesa, fato escuro, cabelo apanhado, maquilhagem perfeita, tudo a fazer lembrar o estereótipo das chinesas dos filmes que via no Ocidente. No entanto notei as meias que usavam, que destoavam um pouco do "boneco". A amiga chinesa riu-se e disse-me então que aquelas meias "eram do trabalho", e custavam "uma pataca". Disse-me ainda que aquelas meninas ganhavam "entre 100 e 200 patacas por mês". Que diabo, mais do que isso gastava eu numa noite em Macau, e sem dar por isso. "Como é um país comunista têm tudo o que precisam, para quê ter dinheiro", pensei eu ingenuamente. Poucos anos mais tarde soube que o então presidente Jiang Zhemin auferia um vencimento mensal de 2500 renminbis. "Espantoso, ganho pelo menos seis vezes mais que o presidente do país mais populoso do mundo", seria o que tinha pensado, se já não fosse tão ingénuo.
Sempre tive uma noção de corrupção muito própria, muito séria. Corrupção era qualquer coisa em grande, um crime pior que o homicídio. O empresário que suborna outro para ganhar a licença da construção de uma escola, enquanto entre as empresas excluídas do concurso há uma que vai à falência, deixando milhares no desemprego; o empreiteiro que "emenda" do orçamento de uma ponte, usando materiais de pobre qualidade e guardando na diferença no bolso, e um dia a ponte cai matando centenas de automobilistas, que caem com os seus veículo dento do rio; o gerente de um supermercado que muda as datas da validade dos produtos, e vão parar dúzias de criancinhas ao hospital. Entretanto via os envelopes a passar, as pontes não caíam por causa disso, e deixei de pensar na peça de vestuário que agasalha as mãos quando oiço falar de "luvas". O tal CCAC anunciou um dia que só são permitidas gratificações "até 499 patacas", e mais do que isso seria "corrupção". Interessante. a importância de uma pataca. Fui ver a quanto andavam os bonbons de licor, e suspirei de alívio que poderia levar até duas caixas, caso me fosse dada a oportunidade.
E fui voltando à China mais amiúde, onde aprendi que as declarações de rendimentos devem ser a versão chinesa do teatro de revista - toda a gente ganha menos que aquilo que eu pagava à minha empregada. Uma garrafa de Möet & Chandon custava um orçamento familiar. Cada vez me convencia menos que se dava alguma coisa a alguém à luz do socialismo vigente, e as folhas de vencimento eram apenas isso: folhas. Os restaurantes estavam cheios, bem como os centros comerciais, e a fazer fé nos rendimentos declarados, aquilo era coisa para deixar ali um salário numa tarde de compras. Mais recentemente conheci um tipo que me dizia que "têm muita sorte", vocês em Macau; eu sou juíz e ganho 5 mil renminbis". E depois fomos jantar no seu Audi novo. Podia ter-lhe perguntado se comprou a "bomba" com um plano de pagamento em 1200 prestações suaves, mas para quê estragar o que está bem feito? Eu não me queixo. A realidade é que num país onde vigora uma Constituição de base marxista-leninista, é difícil declarar valores que sejam tão díspares - vai contra a ideologia socialista, mesmo que na Conferência Consultiva do Povo Chinês estejam sentados milionários com fatos Armani, e não operários e camponeses, como Mao um dia idealizou.
E a corrupção, como é? "Que palavra tão feia, menino" - explicaram-me finalmente um dia - "aquilo é o óleo que faz andar a máquina". Óleo? Máquina? Será que está tudo louco? Ora essa, então os camaradas trabalham no Governo e ganham duas ou três mil patacas por mês? Como é que vivem com esse dinheiro? Claro que não vivem., os camaradas precisam de "óleo" para fazer a máquina andar. E então quer dizer que...nada disso, "oferecem" o óleo, e este é costume tão antigo que se perde na memória do tempo. É uma troca, um acordo de cavalheiros, e se o rapaz recusar, não está a dar "face" ao requisitante. Interessante, isto do óleo. Talvez o CCAC ganhasse mais em ir para a China aprender qualquer coisa sobre "corrupção" e "óleo". Aqui andam a perder tempo a apanhar funcionários que enganam no registo de assiduidade, e espertalhões que fazem moscambilha com cupões de gasolina. Ninharias. É a isso que chamam corrupção? E houve tempos em que cantaram de galo, pois após uma "pesca grossa" que apanharam vai para sete anos, têm andado muito maneirinhos.
Mas e o combate à corrupção que Xi Jingping no seu plano para a presidência da China? Agora o Procurador Supremo do Tribunal Popular garantiu protecção legal a quem denuncie casos de corrupção. Hmm...perigoso, pois ainda no ano passado um colega meu blogger de Cantão escorregou no óleo e foi parar ao hospital muito mal tratado. Queixinhas é feio, e será que é para levar o combate a sério? De facto há camaradas que "abusam do óleo", e depois encontram-se autênticas grutas do tesouro nas caves das suas casas. Mas e a malta que depende deles? Por cada 100 milhões que um "viciado em óleo" subtrai, há outro tanto que vai para os rapazes do carimbo levarem as namoradas ao cinema, ou para outros pagarem as prestações do Audi. Se os camaradas forem "dentro" ou levarem com um balázio na nuca, quem é que dispensa o "óleo"? E a ideia era...ah, recuperar a confiança no partido. Como o nome indica, parece que será preciso mais que óleo e cola para voltar a juntar as peças.
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