sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O mal e a raíz



Mais um capítulo na análise das diferenças de cultura entre o Ocidente-Oriente no artigo desta semana do Hoje Macau. Prometo que vou continuar, e tenho o próximo capítulo no prelo. Fiquem atentos e tenham um bom fim-de-semana alargado (os que tiverem tolerância de ponto). E obrigado por escolherem o Bairro do Oriente.

Na sequência do artigo da semana passada, que fica assim como uma espécie de introdução, gostaria de voltar a abordar a temática do “choque cultural”, das diferenças em matéria de atitude e de valores que um estrangeiro pode detectar quando vem viver para um ambiente distante e em tantos aspectos diferentes daquele onde nasceu e cresceu, alguns aparentemente impossíveis de racionalizar. Mais uma vez recordo que este é um artigo de opinião baseado em meras observações e experiências pessoais, e “generalizar” é coisa que só farei quando conhecer a totalidade da população do planeta.

Posto isto vou agora contar um caso que remonta aos meus últimos anos de liceu, teria eu 17 anos, que se passou numa sala de aula. Um dos professores da minha turma fazia uma dissertação sob um tema fora do contexto da matéria que estava a leccionar, e pelo meio deixou um comentário em jeito de crítica pouco favorável a um certo empresário da região. Nada de insultuoso ou sequer sugestivo, e pode-se mesmo considerar que se tratou apenas de um “aparte”, uma coisa sem importância de maior. Contudo o meu professor não teve em consideração o facto de na plateia estarem as filhas gémeas do tal empresário, algo de que se apercebeu quando um outro colega meu lhe fez sinal. Perante esta situação reagiu com placidez e dirigiu-se às meninas com delicadeza, esperando que entendessem que se tratava de uma mera opinião pessoal, o que elas aceitaram sem qualquer problema, e nem foi necessário qualquer pedido de desculpas, dando-se o assunto por encerrado.

Exposto o caso, vamos agora transportá-lo para a realidade local. Uma vez que o comentário do professor não incomodou as filhas do empresário, e o assunto morra entre as quatro paredes daquela sala, fica aí sepultado para sempre. Caso se dê um transbordo, a situação pode complicar-se para o professor. O tal empresário pode ficar a saber por uma das filhas, ambas, ou por terceiros; aqui existe quase sempre um espertinho que fará chegar o comentário aos ouvidos do interessado, julgando desta forma estar a prestar-lhe um bom serviço, esperando cair nas suas boas graças. O empresário pode reagir com indiferença, e aí nada acontece, ou ficar furioso, exercendo a sua influência directa ou indirecta junto da direcção da escola para fazer o professor pagar pelo desaforo. Se for daqueles que se está nas tintas para a imagem, pode fazê-lo abertamente e sem dar quaisquer satisfações, e se o comentário justificar procedimento judicial, melhor ainda, uma vez que tem a lei do seu lado. Se não gostar de exposição mediática ou passar uma imagem de pessoa democrática e tolerante junto da opinião pública, trata do assunto por intermediários, ou em alternativa “engole a seco”, ficando atento no futuro aos movimentos do autor da provocação.

No caso do comentário passar pela rede de intermediários antes de chegar ao destinatário, tudo depende de quantas curvas tem o labirinto e quem nele se encontra – fica-se entregue à sorte. Pode acontecer ter lá um amigo que consiga abafar o caso, ou resolvê-lo de forma diplomática, mas o mais provável é que algum manga-de-alpaca interfira, e resolva o caso “da maneira mais eficaz”, isto é, mandar terminar ou simplesmente não renovar o contrato ao professor atrevido. Esta decisão é feita de forma unilateral, ao ponto de não ser sequer necessário deixar o empresário saber que foi feito um comentário pouco abonatório a seu respeito. Se é ou não isso que ele queria pouco importa, são as regras do jogo. Hoje um comentário menos grave, amanhã outro mais audaz, qualquer dia o homicídio – é esta a cadeia de pensamento, o melhor é cortar o mal pela raiz, e se possível lançar sal na terra. Tenta-se fazer tudo discretamente e dentro da legalidade. Testemunhas? Testemunhas são pessoas, isso arranja-se facilmente. Caiu na imprensa? No dia seguinte há outra notícia, esquecem-se daquela. Não pesam aqui factores como a opinião pública, a imagem das instituições, ou a situação familiar ou financeira da “vítima”. É um pouco ao estilo da máfia italiana: nada de pessoal, “strictly business”.

Tudo isto depende do vínculo do professor e do poder do empresário, mas caso este último ter interesses na esfera da disciplina que o professor lecciona, é bem possível que mais nenhuma escola da região venha a contratá-lo. A reacção da “vítima” é variável, e pode ser do mais incrédulo dos espantos à revolta feroz, conforme o nível da injustiça praticada, ou da capacidade de assimilação de ranídeos de cada um. Caso o professor seja um fala-barato, que debita sentenças a torto e a direito, falando em nome dos oprimidos e por estes encorajado, fica mais difícil saber de onde veio o “tiro”, mas se a razão e o atirador estiverem identificados, vai ser tudo uma questão de como aceitar o golpe e de como proceder a partir daí. Uma coisa é certa: não contará com muitos apoios além dos familiares e amigos mais chegados. Caso apareça um apoio inesperado, convém desconfiar, pois é possível que venha da parte de inimigos do agressor, e caso aceite colaborar, arrisca-se a ser manipulado e no fim sentir-se usado sem disso retirar qualquer contrapartida.

E como convivem os locais com este mecanismo que os estrangeiros podem considerar atroz, mas que alguns eventualmente acabam por se adaptar e até usar em seu benefício? Convivem bem, pois nasceram e cresceram conscientes da sua existência, o que explica muitas atitudes que pelos nossos padrões são tidas como “excêntricas”. Evitam abordar alguns assuntos na presença de estranhos, desconfiam de certas perguntas, ainda que aparentemente inofensivas, ou intenções, mesmo que boas, quando vindas de pessoas que conhecem mal, e exaltam-se quando escutam o seu nome em conversa alheia; isto não é paranóia, ou mania da perseguição, e explica-se muito facilmente: mesmo que não tenham qualquer relação com determinado caso, a simples menção do seu nome faz com que passem a ter. Fica “anexado” a ele, quer queiram, quer não. Esta curiosa rede de enganos tem como em tudo o seu lado cómico, surrealista até; certa vez vi uma conhecida minha divulgar uma notícia relativa a si numa rede social, e mais tarde comentei esse facto com ela pessoalmente. Primeiro negou, e só confirmou depois de eu a recordar que a tinha tornado pública. Se acham tudo isto um tanto ou quanto pidesco, permitam-me que vos diga que estão enganados – nunca existiu por aqui qualquer PIDE. E para que haveria de existir, perante as evidências?

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