quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Inqualificável, pois, mas...



Teve ontem início em Portugal um julgamento mediático que promete fazer correr muita tinta e ser tema de discussão entre os especialistas em questões legais e operadores de Direito em geral. Fernando Marinho, de 21 anos, e Patrick Teixeira, de 29, são acusados de ter ateado o incêndio da Serra do Caramulo em Agosto de 2013, cujo combate custou a vida a quatro e deixou mais 13 feridos com queimaduras de gravidade variável. Os dois tristes, que pelas declarações vindas na imprensa devem sofrer de perturbações mentais são acusados agora não de fogo posto, não de homicídio simples, mas de homicídio qualificado. Caso sejam condenados - e Fernando Marinho confessou tudo e demonstrou arrependimento - podem ser condenados à pena máxima prevista no Código Penal português: 25 anos de prisão.

É lógico que muita gente gostaria de ver estes tipos esfolados vivos e de seguida salmourados, e quanto mais próximos chegarmos aos familiares e amigos das vítimas mortais, mais se intensifica essa vontade. A questão é o mal está feito, nada vai poder ser feito no sentido de recuparar as vidas perdidas, e agora está tudo nas mãos dos tribunais civis. Não se trata do circo romano, no Santo Ofício ou do Ku Klux Klan, mas sim da justiça portuguesa. As leis que temos são o que são, há quem defenda que 25 anos "é pouco" considerando a barbárie de certos crimes, mas penso que ainda estamos muito longe dos horrores a que assistimos nos filmes e nas séries americanas, quando não passa mesmo da ficção à realidade, ou das decapitações de reféns por parte de grupos terroristas islâmicos, enfim, os nossos homicidas ainda têm um longo caminho pela frente na escola da psicose e da parafilia. Agora o debate gera-se em torno da definição de homicídio na forma qualificada, dos fundamentos dessa qualificação, e dos critérios que agravam o grau de culpa em relação, por exemplo, ao homicídio simples. E já agora, porque falamos aqui de homicídio?


A lei não abre excepções nem é revista de modo a adequar-se à gravidade de um acto ilícito para o qual não exista uma moldura penal condigna, ou que deixe toda a gente satisfeita e com a sensação de que se fez justiça. Sendo o tecto máximo de um cumulativo jurídico 25 anos "apenas", pode-se dar o caso de um assaltante de um banco que atinge mortalmente dois polícias durante a fuga receber exactamente a mesma pena de um sádico que rapta meninas do jardim de infância, sodomiza-as, arranca-lhes os olhos e dá-los de comer às ratazanas, vai para uma segunda ronda de pouca-vergonha nas órbitas da moça ainda viva, e depois de lhe cortar a jugular e sangrá-la totalmente, faz cabidela e manda para um orfanato, e com um fígado faz patê, mistura-o com comprimidos de "ecstasy" e vende-o para um convento de freiras noviças. A sério, a mesma pena! E ainda se arriscam a partilhar a cela juntos, na ala dos presidiários de risco. Sim, eu escrevi "freiras noviças", qual é o problema?


Agora vamos deixar os sentimentos e aquelas emoções próprias das tragédias de faca-e-alguidar à porta, e vamos olhar para o Código Penal, e as três modalidades que os factos apresentados pela imprensa (incompletos, contudo) nos fazem crer ser os únicos aplicáveis. Assim, na III secção, dos crimes de perigo comum, temos o artº 272º, "Incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas", que nos diz o seguinte:



1 - Quem:
a) Provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício ou construção, a meio de
transporte, a floresta, mata, arvoredo ou seara;
(...)
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens
patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.
2 - Se o perigo referido no número anterior for criado por negligência, o agente é punido com pena de
prisão de 1 a 8 anos.
3 - Se a conduta referida no nº 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.
Esta é a tabela habitualmente reservada aos autores de fogo-posto, o que aparentemente não cai no goto do Ministério Público perante as evidências que pretende provar e que nos levam para a esfera do homicído. Mas já que se fala aqui também de "negligência", vejamos o que nos diz  o artº 137º, "Homicídio por negligência", do nº 1 do capítulo de "Crimes contra a vida": 

1 - Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.
Isto parece de facto, mesmo conseguindo provar facilmente que qualquer negligência seria grosseira. O MP não aceita desculpas e parte para homicídio, não simples, mas qualificado. E aqui há muito que se lhe diga. Atentem ao artº 132º, do mesmo capítulo, onde tomei a liberdade de assinalar algumas partes a negrito:


1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.
2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;
b) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez;
c) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;
d) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;
e) Ser determinado por ódio racial, religiosos ou político;
f) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;
g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;
h) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;
i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;
j) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Ministro da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das Regiões Autónomas ou do território de Macau, Provedor de Justiça, governador civil, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado,testemunha, advogado, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente ou examinador, ou ministro de culto religioso, no exercício das suas funções ou por causa delas;
l) Ser funcionário e praticar o facto com grave abuso da autoridade.

Vou deixar de lado o artº 133º, "Homicídio priviligiado", de onde consta isto: "Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou 

motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos". E de facto isto não faz qualquer sentido. Não creio que os dois arguidos tivessem alguma dívida em numerário com os quatro bombeiros sinistrados, ou vice-versa, ou que tenha havido crime por motivos passionais. Do pouco que parece ser dado como uma certeza, é que nem se conheciam. 

Agora aqui entra a argumentação, e o caso torna-se tão interessante que dava para um episódio daquelas séries norte-americanas de "court drama", daquelas muito boas. O problema disto tudo é que existe uma lógica onde assentam os argumentos da acusação que me custa um pouco a aceitar. Como é possível que não conhecendo os quatro bombeiros, ou podendo sequer prever que morreriam no combate a um incêndio cujas proporções que poderia atingir desconheciam por completo (um incêmdio dantesco pode ser iniciado por uma simples faúlha), possa alguém ser acusado da mesma forma que outra que premeditou, calculou e agiu com dolo, tendo como objectivo final esse desfecho? Mas apesar de tudo isto, o MP parece ter os ventos de feição, podendo muito bem conseguir uma vitória inédita e abrir assim as portas à punibilidade agravada dos crimes de fogo posto. Boas notícias para as florestas e para os bombeiros, duro golpe para os incendiários, que vão começar a pensar mais que duas vezes em atear fogos no mato.


Os factos que nos são dados a conhecer, que como já referi não estão completos, mas dão uma ideia do que poderá ter acontecido: Fernando Marinho e Patrick Vieira iam passear na Serra do Caramulo, e este último começa a desafiar o primeiro a "fazer pequenas fogueiras". O primeiro, aparentemente com um historial de desiquilíbrio ao nível psíquico, começa a perder o controlo das emoções, e basta que o outro tenha dito qualquer coisa como "não és homem não és nada para, passo a citar, "deixar seis pequenas fogueiras a arder no mato". E agora entra uma espécie de influência demoníaca: o arguido Fernando Marinho diz ter "gostado de ver tudo a arder", mas que depois "arrependeu-se", e mal as autoridades lhe bateram à porta "confessou tudo". Este "tudo" é relativizado pelo arguido Patrick Vieira que nega a totalidade dos acontecimentos relatados pelo seu alegado cúmplice. 


A frase: "gostei de ver tudo a arder" fez manchete em quase toda a imprensa, mandando ao ar a já frágil saída do homicídio por negligência, e acionando vários factores agravantes que reforçam a tese de homicídio qualificado: assim temos a perversidade, a censurabilidade, pois teriam consciência de que aquele acto poderia ter consequências graves, a provocação do segundo arguido pode facilmente caber no conceito de "motivo torpe e fútil", e a al. g) diz-nos que a modalidade de fogo posto insere-se na prática de "crime de perigo comum". Frieza de ânimo, concerteza, pois não só um deles diz ter ficado a apreciar a sua linda obra, como nenhum se lembrou a alertar as autoridades a tempo de evitar a propagação das chamas. Finalmente temos a designação de "agente de força de segurança" ou "serviço público" onde se encaixará certamente a função de bombeiro. E recordo que foram quatro que perderam a vida naquele fatídico.


Sobre a minha dúvida, ou seja, se o facto dos arguidos não terem qualquer intenção ou poderem ter a possibilidade de prever as consequências finais dos seus actos, encontrei esta interpretação de um jurista, Dr. Octávio Manuel Gomes Alberto, natural do Bombarral e consultor jurídico da Associação de Agricultores do Oeste (página pessoal aqui) e de onde esta passagem poderá dar mais algumas luzes sobre o assunto, onde o autor versa sobre o valor da culpa jurídico-penal: 


"A culpa é, ao lado da ilicitude, o outro pressuposto material fundamental da punibilidade. Desde logo, importa referir que a problemática da culpa pode ser vista a partir da sua consideração como categoria dogmática ou dando corpo ao princípio jurídico-constitucional da culpa. A culpa a apreciar em ambos os casos é, obviamente, uma e a mesma entidade. De acordo com aquele princípio, a culpa é fundamento da pena e limite da sua medida, ou seja, não há pena sem culpa, e a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa. Esta decorrência do princípio da culpa, a que há que reconhecer a natureza de princípio constitucional da política criminal, integrante da Constituição em sentido material. O princípio da culpa deduz-se do reconhecimento da dignidade da pessoa humana (art. 1º CRP), do direito à integridade moral e física (art. 25º/1 CRP) e do direito à liberdade (art. 27º/1 CRP), podendo acrescentar ainda que constitui pressuposto de várias outras disposições constitucionais. De acordo com este princípio, a pena pressupõe a culpa, e esta consiste num juízo de censura dirigido ao agente que, tendo podido actuar segundo o dever, optou por agir ilicitamente, evidenciando uma atitude contrária ao direito. Ou seja, o fundamento de uma agravação ou de uma atenuação que altera uma moldura penal pode não ser um fundamento de ilicitude, mas apenas um fundamento da culpa. O princípio da culpa visa a realização da justiça, limitando assim as exigências que de outros pontos de vista se façam à responsabilização do autor, e a maximização da liberdade individual, duas funções que não têm a ver com a teoria dos fins das penas".


De facto nem o Código Penal menciona o facto, nem qualquer outra legislação análoga ou precedente jurídico que obriguem os autores a ter qualquer relação com a vítima, ou perante a gravidade dos actos praticados, não se apresenta como credível em matéria de legítima defesa - tinham consciência plena de que da sua conduta poderia lesar terceiros. Caso a acusação faça prevalecer os seus argumentos, vira-se uma página na história negra dos incêndios de Verão em Portugal, mas fica a Justiça agregada de uma situação sensível, de grande responsabilidade: cuidado a quem se atribui o fogo posto.



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