terça-feira, 21 de outubro de 2014

Desalinhados



No Sábado passado foi criada em Toronto, no Canadá, a "International Macanese Alliance", uma aliança que congrega dez casas de Macau, a maioria delas dos Estados Unidos e Canadá. A inicitativa terá partido do “Amigu di Macau Club”, presidido por José Cordeiro, e pelo investigador macaense Roy Eric Xavier, professor na Universidade de Berkeley, na Califórnia, e que há cerca de dois anos apresentou um estudo que estimava em "cerca de 150 mil", o número de macaenses da diáspora, espalhados na sua quase totalidade por dez países. A Aliança aparece à revelia do Conselho das Comunidades Macaenses (CCM), que oficialmente serve de elo de ligação entre muitas casas de Macau em todo o mundo, e cujo seu presidente José Luís Marques já veio criticar a iniciativa. Segundo Roy Xavier a ideia é "concretizar projectos que nunca foram apoiados pelo CCM", que o investigador considera "estar deslocado" da diáspora. Das dez associações que formam a aliança cinco são dos Estados Unidos e três do Canadá, e dessas apenas duas são membros do CCM. Das outras duas fora do continente americano pouco se sabe; há uma "International Portugal-China North American Association of Macau", supostamente sediada em Portugal, mas da qual basta fazer uma simples pesquisa na net para se perceber que vem do "nada". De Macau há uma "Associação de Promoção da Cultura de Arte e Economia entre a China e os Países Lusófonos”, também desconhecida, mas que poderá ter o dedo do deputado José Pereira Coutinho e da secretária-geral adjunta do Fórum Macau, Rita Santos. Algumas das associações que compõem esta aliança viram recusada a sua entrada como membros da CCM em Dezembro último, por altura do Encontro das Comunidades Macaenses, o que pode explicar muita coisa, mas por enquanto Roy Xavier desvaloriza qualquer eventual polémica e fala do interesse de "pelo menos mais cinco associações" da diáspora macaense em juntar-se à IMA.

Este é um assunto que não é fácil abordar sem mexer com algumas sensibilidades, e não vou sequer pela via do "quem é quem", ou do "qual é o quê", porque conheço muito pouco ou mesmo nada das comunidades macaenses no exterior, e se de facto, como defende Roy Xavier, existem 150 mil macaenses espalhados pelo mundo, o tal encontro que se realiza em Macau agora com mais frequência é apenas residual, e não diz muito do que é a diáspora no seu todo - não deixa de ser encantador, entenda-se. Cada vez que me é dado a saber qualquer coisa sobre as casas de Macau, fico impressionado com a união que existe entre os seus elementos. Duas delas de que me recordo ter sido dado destaque na televisão são a de Lisboa e a de S. Paulo, e nesta última notei não só a capacidade de recriar um ambiente ainda mais macaense do que em Macau, como a forte presença de algumas características que já se perderam ou que se vão perdendo aqui no território. Se pensam que estou a exagerar, convido-vos a verem o canal do YouTube de Francisco António, presidente da Casa de Macau em S. Paulo. A tal questão da identidade macaense, um tema que dificilmente se esgotará e que é passível das mais diversas leituras, ganha uma nova luz perante a forma como os macaenses da diáspora encaram esse sentimento de pertença, não a Macau, mas à sua própria herança cultural e genética. É impossível pegar na questão e elevá-la a uma perspectiva científica, pois é possível que no caso de se poder quantificar a identidade, encontrássemos casos em que alguém que nunca esteve em Macau seja "mais macaense" que outro nascido no território e correspondendo às características tidas como mais comuns para identificar essa origem: o sangue português e chinês, a cultura oriental com forte influência lusitana. Não é para admirar que sejam uma gente que sente muito o seu ser, pois deriva de duas culturas que dificilmente abandonam a sua matriz inicial., onde quer que se encontrem. Sendo esta é uma qualidade do tamanho do mundo, Macau adquire um estatuto simbólico, e nascer em Macau pesa pouco numa eventual definição dessa identidade.

Agora permitam-me meter os meus "fai-chis" no lacassá alheio, mas fico sempre com a impressão de que das inúmeras comunidades macaenses no mundo, a de Macau é que tem mais dificuldades em se afirmar, e isto tem uma razão de ser. Passo a elaborar a partir desta afirmação, mas peço que tenham sempre em conta que é apenas a minha opinião, mas mesmo valendo o que vale há pontos em que as opiniões são unânimes. A razão de raíz que leva a uma certa timidez por parte da comunidade local é talvez a mesma que levou à existência da diáspora: o estatuto de Macau, e a permanente incerteza quando ao seu futuro. Isto levou a que se dessem os grandes movimentos migratórios para as Américas e Hong Kong nos anos 60 e 70, mais tarde a Austrália começou a ser outro destino de eleição, talvez mais conveniente em termos geográficos, e depois Portugal foi o destino de muitos que optaram pela integração na altura da transferência de soberania para a China. Nos últimos cem anos os macaenses estiveram sempre na posição privilegiada de elo de ligação entre a potência soberana, Portugal, e a etnia dominante, a chinesa, mas apesar da vida ter sido menos dura para eles que do que para os restantes naturais de Macau, nunca beneficiaram de um período de estabilidade aliado à prosperidade económica que fizesse emergir da sua elite um grupo que aspirasse a um lugar específico no contexto do território, e que aspirassem a uma maior autonomia, ou a formar uma terceira parte que pudesse negociar o seu próprio futuro. Basicamente estiveram do lado dos portugueses até 1999, considerando-se muitos deles "portugueses" de identidade e mais nada, e os que optaram em ficar precisaram de se adaptar, e aqui é que eu penso que reside o principal problema que leva uma certa cisão entre os macaenses de Macau e da diáspora: os daqui tentam agradar demasiado, como se precisassem de um favor para ficar na terra que os viu nascer, e em muitos casos onde nasceram também os seus pais e avós, e caso demonstrem ficar numa posição de antagonismo com o poder, arriscam-se ao ostracismo e remetidos a um zero existencial. Foi também esse o pensamento que levou a que muitos abandonassem o território, e entre esses há quem tenha mudado de ideias e regressado.

E é esse mesmo o ingrediente que tem faltado à comunidade macaense, o da afirmação plena. Desfazem-se em cortesia e em salamaleques com o poder, não se atrevem a discutir ou a debater os temas de Macau, que aqui é o equivalente a "colocar-se num lugar de extrema oposição", e assimilaram o estranho conceito de que recusar a integração total na China significa desaparecer, ao que leva ao paradoxo das novas gerações terem um nome português e não saberem dizer uma frase na língua de Camões. Por muito que os chineses apreciem o esforço, a sua natureza etnocentrista nunca os considerará iguais a eles - e isto sem querer fazer qualquer juízo; é assim e é assim, pronto. A juntar a esta reverência excessiva há depois o habitual elitismo, factor inato de desagregação, e uma certa sede de protagonismo. Nada impede os macaenses de se afirmarem como aquilo que são, mas o que os leva a pensar que não têm os mesmos direitos e deveres do resto dos residentes ao ponto de ser necessário "correr por fora", optando ora por agradar a todo o custo, ou quedar-se pelo anonimato, numa postura de quase invisibilidade? E desse modo, que sentido faz a que insistam em ter uma palavra a dizer nos centros de decisão politica? São livres de o fazer, claro, mas se a atitude é de ora estrita cooperação com o poder, ora de silêncio, só se pode entender nisto um exercício de vaidade e de benefício em causa própria. Mesmo a única via que encontraram para chamar a si alguma representatividade causou mais uma rotura (falo da ATFPM e de José Pereira Coutinho, lógico), e a impressão que fica é que cada um tem uma ideia muito própria do que deve ser a comunidade, e um visão estritamente pessoal do todo. Quem não conheça a realidade poderá ficar com a noção de que existe aqui um défice democrático, mas eu chamar-lhe-ia antes rigidez de princípios. Não é bem uma cegueira, mas antes uma miopia grave.

E só assim se explica o excesso de associações disto e daquilo, pois para alguns egos nenhuma associação que não os tenha como elemento dirigente, é uma associação que não serve "os interesses de todos". Justificava-se apenas as associações de cariz cultural mais específico, casos da Confraria da Gastronomia Macaense, e dos Doçi Papiaçam di Macau, neste caso um grupo, mas assim junta-se a Associação dos Macaenses, representa-se toda a gente dentro dos limites daquilo que a comunidade representa, e já está. É que a vantagem das comunidades macaenses ultramarinas é o facto de estarem integrados no país de acolhimento, e partindo daí expressarem a sua vertente cultural "inter pares", sem precisarem de andar a pedir favores a ninguém. Aqui onde existe ainda a vantagem de não ser preciso adaptar-se a coisa nenhuma, ora se procura uma "brecha" entre o poder onde se possa anichar, ou se faz o papel de "índio", apelando de braços abertos à preservação dos aspectos culturais - e é aí que se estabelece a relação com a comunidade portuguesa em geral: há aqueles que os acham "muito giros", e os outros que os desprezam. Os chineses desvalorizam tudo isto, na melhor das hipóteses toleram as pretensões, desde que não interfira com as directivas, enquanto as comunidades na diáspora, dotadas de horizontes mais largos que os levam as coisas de uma perspectiva mais global,  viram-lhes as costas. Mas por que não ser residente de Macau em primeiro lugar, e então depois macaense? É exactamente o que eu faço, o que muitas vezes leva a que se entenda que sirvo de "um grão de areia na engrenagem" - mas do quê, exactamente, se os discursos oficiais dizem que eu não sou mais nem menos que o meu vizinho do lado ou dos meus colegas do trabalho? Sim, sou português na hora em que isso é pertinente, e não será concerteza para obter vantagens ou escusar-me das obrigações. Há sem dúvida uma falta de estratégia, e a criação desta aliança faz mais do que transmitir uma mensagem: dá o alerta. A comunidade só se vai extinguir por culpa própria, por mais boa vontade que exista de qualquer uma das partes externas a este "conflito interno". Outra vez, isto é só uma opinião, e nem pretende ser uma tentativa de diagnóstico. Cabe só a vocês reflectir e fazer o que entenderem melhor. Mas vejam lá se desta vez o fazem juntos, e puxam para o mesmo lado.

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