terça-feira, 2 de setembro de 2014

E o vencedor é...Jason Chao



Terminou ontem a saga do referendo civil, organizado pelo campo da pró-democracia, e que durante uma semana recolheu a opinião de 8688 residentes de Macau sobre a vontade de avançar com o sufrágio directo para a eleição do Chefe do Executivo já em 2019, ou seja, da próxima vez. Ao mesmo tempo que se realizou esta consulta, que por motivos que todos conhecem foi realizada apenas através da internet, decorreu a eleição do IV Chefe do Executivo que reelegeu Chui Sai On para mais um mandato de cinco anos. A polémica estalou quando no dia 21 de Julho o então presidente da Associação Novo Macau, Jason Chao, anunciou que realizaria uma consulta pública sobre a viabilidade do método do sufrágio directo para a eleição da figura máxima da RAEM, em alternativa ao actual, que consiste num Colégio Eleitoral de 400 elementos, eleito por 1900 notáveis, e que os democratas consideram "pouco representativo" de uma população com quase 300 mil eleitores recenseados. O "timing" da consulta, que inicialmente se chamava "referendo informal" e acabou com a designação de "referendo civil" não podia ser o pior - ou melhor, dependendo do ponto de vista das partes envolvidas. A votação, ou melhor dizendo, a participação, uma vez que aqui mais ninguém votou além de 396 elementos que compunham o tal Colégio Eleitoral, coincidia com o processo eleitoral que escolhia o próximo Chefe do Executivo, realizando-se entre as zero horas do dia 24 de Agosto, e o meio-dia do dia 31. Jason Chao prometia divulgar os números da participação e o resultado da moção nº 1 no Domingo, dia 31, data em que no Macau Dome se votava para o Chefe do Executivo, e o resultado da moção nº 2 no primeiro minuto dia 2 de Setembro, hoje, após Chui Sai On ter tomado posse.

E assim o referendo civil foi em frente, Chui Sai On foi eleito, os resultados do referendo foram divulgados, conforme o plano inicial, e o IV Chefe do Executivo tomou posse. O mundo não acabou, e não morreu ninguém, pelo menos por causa do referendo civil - mas podia ter morrido, e o mundo não ficou melhor, nem pior, antes pelo contrário. Tudo o que se passou no período que antecedeu o referendo civil, e especialmente a sucessão de eventos com início no dia 24 envergonham qualquer amante da liberdade ou pessoa com o mínimo de bom senso. Infelizmente em Macau existe uma grande falta de bom senso, e de respeito pela liberdade alheia, e até de quem se orgulha de ter cultura democrática a apregoa a viva voz a sorte que temos de benificiar de vantagens inerentes ao segundo sistema, que não existem no primeiro. Portanto a ideia é que para começar deviamos acordar todos os dias felizes por estar vivos, e já vamos cheios de sorte. Mas falemos disso daqui a pouco, pois existem três aspectos que gostava de deixar bem claros: nunca me coloquei a favor da realização do referendo ou dos seus organizadores; o resultado do referendo não era veiculativo, e mesmo que fosse nunca mudaria nada; e Macau demonstrou ter muito que aprender em muitos aspectos, com o respeito pelo primado da lei à cabeça, sendo essa a lição nº 1. Senão...

Sobre o primeiro aspecto, que para mim é o mais importante, considero que este tipo de questão deve ser resolvida "inter-pares", e sem a participação de uma fatia insignificante da sociedade civil, o que mesmo assim já foi o suficiente para lançar um caos e gerar uma quantidade de equívocos que poderiam facilmente ter sido evitados. Um passo deste tamanho, bem maior que a perna, não pode ficar somente nas mãos de um grupo de "carolas", que à revelia do Governo e da esmagadora maioria da população desafiou o sistema e o próprio regime, dando a sua opinião, nada mais do que isso. A demonização de uma iniciativa que devia partir da classe política fica mal a essa classe, e pouco importa em que circunstâncias nos encontramos, ou sob que constituição funcionam as nossas instituições, isto devia ser resolvido a bem. E agora deixando de lado a quimera, vamos ao essencial: nunca existirá sufrágio universal. Qualquer pessoa bem informada sabe que isso nunca será possível, pois sendo Macau, tal como Hong Kong, uma região administrativa especial da China, onde vigora um sistema unipartidário e totalitarista, não há lugar a estas veleidades, e nem interessa aqui abordar os motivos, algo que já fiz inúmeras vezes noutras ocasiões. Mesmo hoje, dia 2, tivemos do Governo Central esse sinal, pois em Hong Kong, onde estas questões são levadas a sério, tivemos um alto dirigente vindo de propósito dizer aos honconguenses que desistam dessa ideia, pelo menos para já. Na RAEHK, onde a consciência e o debate político se encontram num patamar muito superior a Macau, o que dizer da pretensão do sector democrata deste lado?

Dizer que "a população de Macau não está preparada para o sufrágio universal" soa a uma daquelas desculpas normalmente usadas pela classe política dominante para se manter no poder, passando à população um atestado de inaptidão, de incapacidade de escolher os seus próprios representantes. E de facto ambas as coisas são completamente verdade: nem a população está preparada, nem os dirigentes lhe dão o crédito devido. E reparem, "devido", pois se há uma coisa que estes governantes, que no fundo não são mais que uma mera elite de comerciantes de segunda e terceira geração devem a esta população é o crédito que lhes foram negando, afastando-os dos centros de decisão em nome da perpetuação do poder, que é exercido basicamente por meia dúzia de famílias e o seu restrito círculo de "sócios", nem todos com origem no território. Se a ideia era formar uma empresa com capitais privados, onde não se escuta a população, realizam-se eleições para dar uma cobertura "democrática" a uma oligarquia praticamente impenetrável, onde antes de se olhar o currículo ou testar as capacidades individuais, olha-se ao "background" familiar e privilegia-se a "confiança" - aqui "confiança" é um termo que encontra paralelo na máfia italiana. É a capacidade de manter a "cosanostra" entre "la famiglia". Para o efeito incute-se na população o medo da política, dando a entender que alguém que procure participar na sociedade com ideias novas, diferentes ou que vão numa direcção oposta às "tradicionais" (bafientas, arcaicas e cada vez menos eficazes) está em "oposição ao regime", e é "subversivo". Quem é demasiado "vivo" para cair nessa esparrela, pode ser sempre comprado, ou não. Quem não se vende, passa para o lado da luta.

E é aqui que entra a educação cívica, que por muito que vá aparecendo uma vez ou outra nos discursos oficiais, não existe, e chega mesmo a ser desencorajada. O trabalho de base para quem quer uma população participativa e consciente dos seus direitos - o que aqui não é o caso - é nas escolas, a começar no ensino primário e a terminar nas universidades. O ensino corrente é dominado pelas associações chinesas e pela Igreja, onde, naturalmente, não se encoraja o pensamento livre na sua plenitude. Nos primeiros dá-se primazia à obediência, e nos segundos existe um pudor que acaba por criar inibições dirimentes da participação plena na vida pública. Em comum existe o respeito pelas hierarquias, e da mesma forma que num dos seus discursos mais célebres, Chui Sai On referiu a importância da formação dos tais "talentos". Ora deixemos de lado o significado de "talentos", que na língua chinesa adquire outro sentido. Como é que vamos conseguir "talentos" se não os estimularmos, se não os obrigamos a pensar pela própria cabeça, e especialmente se lhes ensinamos que não se devem desviar das directivas estabelecidas? Desta forma tudo o que nos resta é geração atrás de geração de gente submissa, atada e permissiva, que não inventa porque não sabe, e como não sabe, às vezes inventa sai tudo mal.

A questão do referendo civil, mesmo atendendo à sua ineficácia no sentido de mudar seja o que for, serviu pelo menos para expôr algumas das fragilidades do sistema. Note-se como reagiram as pessoas que supostamente são os mais aptos, os mais inteligentes, competentes, respeitados, com uma linhagem distinta: como uma cambada de patetas, e nem os "futuros dirigentes", gente nova e supostamente bem preparada para os desafios que Macau vai enfrentar nos próximos anos escaparam. Mostraram não ser capazes de reagir a uma adversidade que os colocaria em xeque com aqueles a que prestam contas, bem como aos que um dia disseram para não se preocupar com estas coisas da política. E esta palavra é praticamente tabú por aqui; economia soa ao barulho das notas a serem contadas, enquanto "política" é associada aos piores horrores, à dissidência, à subversão, às prisões e aos manicómios, e no fundo da lama há aqueles que ainda dão graças aos que se encarregam deste "trabalho sujo", e se calhar ainda pensam que é "por favor". Esta é uma concepção bem realista que nós, ocidentais, nunca conseguimos aceitar: a maioria não quer conversa, e muito menos se essa conversa os afastar do que para eles é o essencial: a obtenção de riqueza. E por "riqueza" não pensem que estou a dizer que os chineses são avarentos, gananciosos, mesquinhos, e alguns são de facto. A "riqueza" que aqui falo é a própria sobrevivência, a capacidade de ler algo que a História ensinou a este povo. Reparem como os chineses dão tanta importância aos metais e pedras preciosas, ao ouro e ao jade, e porquê? Porque são coisas que podem levar sempre consigo, ao contrário das casas, ou as contas bancárias, que não é algo que se guarda na gaveta da cómoda ou no frasco das bolachas. Fica mais fácil de entender se pensarmos que a China tem 5000 anos de história, está unificada apenas há 60, e tem pouco mais de 20 anos desde que se encontra num período de relativa paz e prosperidade. Torna-se imperativo que se mantenha a estabilidade, mas isso não impede que haja progresso e evolução - até ajuda. Evolução constante oposta a constante revolução.

Acontece sempre, mais cedo ou mais tarde, que dois estúpidos - um estúpido e uma estúpida - se encontrem, e que se amem estupidamente, e que eventualmente tenham uma quantidade de pequenos estúpidozinhos, que mesmo assim são menos estúpidos que os seus ascendentes, e mais estúpidos que os seus filhos, que produziram com a cumplicidade de outro menos estúpido (mas mesmo assim ainda estúpido) que ele. E chegamos ao dia em que, fartos de tanta estupidez, os que sempre foram chamados de estúpidos começam a questionar os auto-intitulados inteligentes, e exigem saber "coisas" que os tornem ainda menos estúpidos - só para que sejam menos estúpidos, porque lhes fica mal. O auto-intitulado inteligente recusa-se a cooperar, com o argumento de que o tipo que está ali à sua frente é demasiado estúpido para entender certas "coisas", mas o estúpido que não é assim tão estúpido responde-lhe "estúpido és tu". E é mesmo, pois aquele que chamavam de estúpido descobriu que algum estúpido pensou que tomando-o por estúpido, não seria necessário explicar "certas coisas" que no fundo até ele próprio não entendia, porque o estúpido era ele. Eu sei que isto é estúpido, mas que não percebe onde eu quero chegar é ainda mais estúpido.

A questão nunca é pensar que se incapaz de lá chegar, mas sim QUEM nos anda a meter obstáculos no caminho. O caso do "referendo civil", que acabou por se realizar e produziu os efeitos desejados, com Jason Chao a apresentar uma sondagem que demonstrou que quase 8000 dos participantes não tinham confiança no Chefe do Executivo que havia sido eleito por 380 membros de um Colégio Eleitoral que só tinha duas escolhas: um candidato ou votar em branco. Assim que o referendo foi anunciado (e trata-se de um "copycat" de uma iniciativa realizada entre 20 e 29 de Junho em Hong Kong) o Governo lançou as mãos à cabeça, como se tivesse visto uma assombração, e só quando voltou a si pensou por uns dias e avançou com a tese de que era um acto "ilegal". Ilegal? Então vai ser fácil impedi-lo, quer dizer, um Governo que tem autoridade para rebocar um carro mal estacionado, pode muito bem impedir a realização de um acto deste tipo, basta aplicar a lei. Mas oops, esperem lá, a lei? Parece que aqui temos os inteligentes, os chico-espertos e os que nos tomam por estúpidos - e não são os inteligentes. No fim de tudo isto só tive pena que nunca nos tivessem explicado a nós, pobres diabos a quem enfiaram a saca de batatas do estúpido, qual seriam as consequências do referendo a outro nível. E se em vez de 8000 a participar tivessem sido 20 mil, ou 50 mil? Acho que ia haver alguém que passaria por estúpido para lá dos limites da estupidez.

E se por um lado fiquei com pena, por outro lado fiquei triste, e como tenho muitos "lados", outro ainda ficou meio desconfiado, quase zangado. Depois de se andar a brincar às interpretações livres das leis, insultuosas a quem sabe pelo menos para que servem as leis para impedir o referendo, acabaram por não conseguir deter Jason Chao y sus muchachos - nem convencer os pobres estúpidos que somos de que realmente o referendo era ilegal eles conseguiram. Ora bolas, a quem é que vamos agora confiar a aplicação da lei? Pior que isso foi terem andado a perseguir miúdos, alguns deles que nem barba têm e ainda devem dormir com a luz acesa, enfiá-los na cadeia por tudo e mais alguma coisa (numa celeridade espantosa comparada com outras "ilegalidades" mais evidentes) e ainda nos darem a entender que iria haver uma caça às bruxas. Sim, pois se Jason Chao foi pessoalmente garantir que os dados pessoais dos participantes eram destruídos, e a polícia andou atrás desses dados como se não houvesse amanhã, não me resta senão concluir que não era para devolver os tais 15 números do BIR que os "malvados" dos democratas "roubaram". O que é que eu queria fazer mesmo? Ah sim, já sei: agradecer. Obrigado, Jason Chao.

E já que estou a agradecer a Jason Chao, aproveito ainda para lhe pedir desculpa, não por lhe ter feito qualquer mal, mas por pertencer a uma comunidade, ou nacionalidade, se quiserem, que apesar de se considerar muito democrática e defensora dos princípios das liberdades de expressão, manifestação, associação e outras, comportou-se como aquilo que nós chamamos ironicamente de "pidezinhos". Sim, porque mesmo os que estavam fartos de saber desde o início que não existia legalidade nenhuma, assobiaram para o lado e assistiram calados à subversão do segundo sistema, e agora com que cara vão andar por aí a defender a legalidade, ai que isto não pode ser, e aquela universidade não presta, apesar de cumprir os requisitos exigidos na função específica para que é destinado o curso que se rejeita por ser "mais próximo do primeiro sistema". E olha aí o primeiro sistema a deixar-nos um cocó na testa, e ninguém diz nada. Se não existindo ilegalidade existia outro mal maior, podiam-nos ter dito, e a gente entendia; coisas como "não podem porque não" ou ainda como foi dado a entender por alguns elementos mais sôfregos da elite "não façam isso que nos tramam" não aquecem nem arrefecem a quem não tem nada a temer. A China queria impedir o referendo? Pode ser, mas encarregou as pessoas erradas de o fazer, aparentemente.

Não tenho nada contra o primeiro nem contra o segundo sistema. Nada contra Chui Sai On, a quem não dei os parabéns pela vitória nas eleições de Domingo porque já houve quem o fizesse, indiferente a qualquer exposição ao ridículo, e nada contra as autoridades, que cumpriam ordens, e se quisermos ficar por aí tudo bem, ficamos. Pouco importa que Jason Chao tenha dito hoje que contactou agentes que lhe confessaram ter participado no referendo. Aposto até que muito boa gente que discordava do referendo participou nele, nem que por mera curiosidade. Ou quem sabe, indiferente às vozes que sugeriam que a única opção era votar no "sim" ao sufrágio universal, foram lá votar no "não", e ficar bem com a sua consciência, pois acham que a população não está preparada para dar esse passo - e mostrou que realmente não está. Não vou cometer a baixeza de sugerir que o referendo saíu caro a alguém que se fartou de desdenhar e especular sobre a fidelidade dos números da participação, e que gastou 388 cartões de telefone para expressar o seu apoio incondicional ao novo Chefe do Executivo.

O vencedor somos todos nós, no fundo, mas o rosto do triunfo é este, o de Jason Chao, que vos tentaram fazer crer ser um indivíduo perigoso, um assassino, um terrorista, e para os parâmetros locais, pior do que isso tudo junto a multiplicar por 100 com "chantilly" e uma cereja em cima, um "inimigo do regime". Perigosos seria se em vez de oito mil opiniões nas mãos dos democratas tivessem oito mil números do BIR nas mãos sabe-se lá  de quem. Cuidado com aquilo que vos impingem; conhecem a anedota do "pica-miolos"? Aquela em um naufrágo que está há meses numa ilha deserta recebe a chegada de outra com o mesmo azar, e consegue convencê-lo de que existe um pássaro na ilha conhecido por "pica-miolos", e que ele devia enterrar imediatamente a cabeça na areia, com o rabo espetado para cima? E olha que há por aí muito boa gente que ia sofrer, pois até o "pássaro" lhe encontrar quaisquer vestígios de miolos...

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