quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Democrásia



Assente a poeira levantada em Macau e Hong Kong e reposta a relativa acalmia do "same same" e do "mou man tai", regressa-se à vida normal (fazer dinheiro), fazendo força na mesma direcção (a de cada um), para que no fim do dia se contribua para o bem geral (especialmente o seu). E de facto uma das poucas coisas que é dado aqui a ganhar pelo Governo Central é dinheiro, contando que ninguém ouse meter o dedo nesse imperativo e tabu que são as directivas emanadas por Pequim. Ontem vi um responsável qualquer norte-americano dizer que "para qualquer país a melhor governação passa por uma democracia parlamentar e representativa", e que o modelo norte-americano, por exemplo, é "o que melhor garante aos cidadãos as suas liberdades individuais", e no geral "assegura o respeito pelos direitos humanos". O resto do que disse não me foi dado a ouvir, mas aposto que teve qualquer coisa a ver com as liberdades de expressão, de reunião, de associação, eleições livres e justas, alternância, blá, blá, blá. Durante anos e anos escutámos este discurso de que a China se deveria aproximar mais dos "padrões ocidentais de democracia", e do outro as respostas no sentido de que o sistema político do país "corresponde às suas caracterícas" é sempre entendido como uma forma de justificar a perpetuação do mesmo regime no poder, com o pretexto de que a sua população "não está preparada para a democracia". E se fosse a China a fazer o mesmo, e dizer ao Ocidente que os seus governos deviam para um regime totalitarista de partido único, sem a separação dos ramos executivo, legislativo e judicial, impondo a autoridade a qualquer, nem que seja necessário recorrer à força? Iam rir? E seu eu vos disser que a tendência a nível mundial tem sido nesse sentido e não no oposto, o tal que é mais justo e que garante a todos aqueles direitos com uma sonoridade fantástica mas que na prática têm limites, variando esses limites de paróquia em paróquia, mas encontrar um que garanta a um indivíduo 100% de liberdade para decidir sobre o que quer fazer da sua vida, é como procurar uma agulha no palheiro.

A Geopolítica, que analisa a relação entre os processos políticos e as características geográficas, atendendo ao clima, localização, população, topografia, recursos naturais, mostra-nos por exemplo que um país sem costa marítima terá dificuldades em optar por um sistema político, pois depende daqueles que o rodeiam em matéria de recursos, defesa e trocas comerciais. Há ainda que atender a factores históricos, estratégicos, culturais e religiosos, entre outros. No caso da Ucrânia, um tema corrente, temos um país relativamente grande em área e em população, que se encontra ligado a outro que "por acaso" é o maior do mundo numa relação quase umbilical, e ambos dependem um do outro - a Rússia é o maior parceiro comercial da Ucrânia, que ainda depende dos russos em termos energéticos, e os russos contam com este vizinho próximo como um "estado tampão", pelo que as pretensões ucranianas de aderir à NATO são um duro golpe na geo-estratégia do Kremlin. Mesmo que a táctica de Putin não seja propriamente a mais "diplomática", serve um objectivo muito específico (e nisto Putin é para lá de pragmático), que é o de tratar dos problemas que lhe batem à porta. Outro bom exemplo é o do Tibete, que mesmo sendo discutível o argumento que historicamente pertence à China (seria o mesmo que dizer que Portugal pertence à Itália, à conta da ocupação romana), para o regime chinês tanto este como a região de Xinjiang têm importância estratégica para o República Popular, pois são uma espécie de "paredão" entre o extremo e próximo oriente. E será que alguém se questionou porque razão apoia a China o tenebroso regime da Coreia do Norte? Outra vez, estado tampão, e acredito que o regime de Pyongyang ainda não fez nenhum disparate grande devido à mediação chinesa. Do outro lado tivemos os Estados Unidos a colher todas as ervas daninhas no seu jardim, patrocinando regimes de ditadura em El Salvador, Nicarágua, Chile e vários outros pontos quer da América Latina, quer de do resto do mundo, temendo o alastramento do marxismo-lenininsmo, e ainda hoje Cuba é um espinho cravado - estávamos na Guerra Fria, mas ainda hoje é possível observar como os norte-americanos cuidam dos seus interesses de uma forma pouco consensual, ora derrubando, ora promovendo governos conforme lhes dá mais jeito.

Podemos achar que as nossas democracias ocidentais, directas ou semi-directas, representativas de regime parlamentar ou presidencial são a forma mais eficaz de promover a pluraridade e atingir a justiça, e que todos os países devem adoptar uma dessas formas, desde que seja uma democracia, ou caminhar nesse sentido. Poucas democracias são efectivamente representativas, e nenhuma é perfeita. Olhamos para os países do norte da Europa como um bom exemplo, nomeadamente a Escandinávia, mas é preciso ter em conta que foram gerações atrás de gerações a aperfeiçoar o funcionamento do sistema, que hoje é melhor que há 30 anos, quando era melhor que há 60, e certamente seria um sítio onde não gostariamos de viver há 100. A Irlanda, que antes da recente económica era considerada um exemplo de crescimento tão robusto que nos anos 90 foram mesmo aconselhados a abrandar, tinham há 100 anos a sua população a morrer de fome, o que os levou a emigrar em massa para o continente americano. Os próprios Estados Unidos estão nas mãos de grupos empresariais detidos pelos mesmos 10 ou 20 indivíduos que decidem praticamente tudo: desde os preços dos supermercados até ao próximo presidente. E falamos aqui de um país que só conheceu este sistema, que se orgulha de ter sido fundado em princípios que demoraram séculos para que outros o adquirissem, e alguns ainda não chegaram lá. Democracia não é sempre garantia de liberdade, estabilidade e funcionalidade; é necessário atender ao contexto e às circunstâncias. Se os próprios Estados Unidos, como uma história de 300 anos e sempre em democracia tem as suas falhas, muitas, como querem impôr a um país com uma história de 5000 algo que nunca conheceu? A China é demasiado grade para "cobaia" da democracia a larga escala.

E por isso é fundamental inserir a China no contexto asiático, como actualmente temos assistido à Ásia (e não só) a inserir-se no conceito da China. E se falamos da Ásia deixemos de fora os paises árabes e as ex-repúblicas soviéticas, pois no caso dos primeiros os que não estão em permanente conflito motivados por ódios étnicos, religiosos ou rivalidades adquiridas pela luta na exploração dos recursos económicos, são reinos autocratas e clericais, e já que falamos disso deixemos de fora também a Rep. Islâmica do Irão. Os segundos, situados na Ásia Central e numa situação geográfica periférica, são praticamente satélites de Moscovo, e parecem felizes assim. Olhemos para o maior, mais populoso, e mais diversificado quer em termos étnicos, quer linguíticos, quer religiosos - e não falta também um "sortido" de sistemas políticos antígonos. E nada como começar pela "maior democracia do mundo, a India. Aqui temos um exemplo acabado de onde não se deve aplicar uma democracia pluralista com eleições através do sufrágio directo e universal. De tantos paradoxos basta mencionar apenas o mais evidente: um indivíduo com educação superior, cosmopolita e bem informado vai votar numa eleição ao lado de outro atrasado cinco ou seis séculos no processo civilizacional. E que democracia suporta aquele sistema de castas, que determina que alguém que venha de uma das mais baixas está condenado a fazer o trabalho que mais ninguém quer? Das restantes democracias na Ásia temos duas funcionais, o Japão e a Coreia do Sul, mesmo que com as suas características muito próprias, e os coreanos com o "handicap" da ameaça dos vizinhos do norte, o que explica algum descontrolo institucional de quando em vez - o que eles valorizam da "democracia" no fundo é a vertente do consumismo, o lado capitalista. Depois temos uma semi-democracia, e uma quasi-democracia: Taiwan e Singapura. Os primeiros vêem as suas pretensões à autonomia plena vedados pela China, e os segundos impõem uma democracia "musculada", que seria um exemplo a seguir não fosse pela exiguidade da cidade-estado; onde mais convivem quatro religiões diferentes, incluíndo hindus e muçulmanos, sem que existam focos de conflito?

E olhando para as democracias falhadas, temos quatro bons exemplos. Indonésia e Malásia carregam o ónus da religião de estado, que neste caso é o Islão. Não são um estado islâmico, mas a confissão da maior parte da sua população inibe certas ambições, e ainda dá jeito na hora de cometer uma ou outra "canalhice" no sistema, fazendo alguém cair à custa de "crimes" como a "heresia". E isso leva-nos à Tailândia, outro caso interessante de como a religião ou outros critérios não científicos podem influenciar o panorama político. O que temos assistido neste caso é a eleições em "tilt"; ganha quem não devia ganhar, os militares tomam conta do poder, marcam-se novas eleições, acontece o mesmo, e a certo ponto questiona-se se a democracia é mesmo uma chave que entre nesta porta. Finalmente o exemplo acabado de uma democracia falhada, as Filipinas. Um arquipélago que não difere muito das condições geopolíticas do Japão em matéria de recursos e até beneficia de um clima mais temperado (e em comum têm a desvantagem dos desastres naturais), mas sofrem de um mal crónico: a corrupção. As razões apontadas para o falhanço de um país que chegou à independência através da luta armada mas regeu-se do início por princípios democráticos (o revolucionário José Rizal e o presidente Manuel Quezon eram pessoas educadas e íntegras) passam pelas invasões japonesas, e mais tarde pela ditadura de Marcos, que durou 21 anos e instalou a cleptocracia e o clientelismo - nos anos 50 duas moedas de um peso, a moeda nacional, compravam um dólar, e após a saída de Marcos em 1986 tinhamos 1 dólar a valer 48 pesos. Problema identificado: não sendo a democracia em si, é a corrupção, um dos seus parasitas. Então e a China?

Realisticamente, o que a China mostra não é aquilo que a China é. Com os altos oficiais a declararem salários na ordem dos sete ou oito mil renminbis - ou menos - não é com uma "ginástica" financeira que compram Mercedes, mandam os filhos estudar para os Estados Unidos, e no caso que nos diz respeito, vir a Macau perder milhões no casino em apenas uma noite. E é esta economia paralela que retirou a China do marasmo em que se encontrava antes da abertura idealizada por Deng Xiaoping. Se o país se conseguiu finalmente unificar debaixo do ideal do marxismo-leninismo, do estado com plenos poderes e a distribuição equalitária de recursos, o partido único, o comunista, e a sua ideologia, são o farol pelo qual a sua população de mil e tal milhões se vai guiando. A alternativa, qualquer que seja, criará uma cisão que deixará o país estilhaços, e nada nos garante que voltando a unir-se, não será novamente na forma de um estado totalitário - foi sempre assim durante cinco mil anos. É utópico pensar em parlamentarismo, eleições livres, e pior, multipartidarismo. Focos de dissensão como o caso dos democratas de Hong Kong ou os seus "juniores" de Macau são a evitar, devido ao receio de contágio. E foi até bastante diplomática a aproximação do regime a esta crise; aquilo que para nós é um caracol, será amanhã ainda um caracol, mas para o regime é hoje um ser insignificante e rastejante, mas amanhã poderá ser um tigre faminto e feroz. Daí entende-se a "paranóia" quem tem sido também a maior preocupação do regime. Os sinais de fraqueza partem sobretudo do facto de já não se conseguir distinguir um eventual perigo para o regime de outra coisa completamente inocente.

Com os progressos tecnológicos e o mais rápido acesso à informação, algo que o Governo não pode negar aos seus cidadãos que o possam aceder (bem gostavam, mas sabem que seria ir longe demais), qualquer dia vão precisar de um polícia para cada habitante. E também tem sido esse o grande calcanhar de aquiles de todas as ditaduras e regimes totalitários: a falta de flexibilidade e a persistência em recusar-se a evoluir, talvez com receio de abrir a porta a algo que desconheça e que lhe possa atacar pelas costas quando menos se espera. E não sou um iluminado em chegar a este raciocínio, que até pode estar errado (peca por não cobrir na totalidade a complexidade do problema, e disso tenho a certeza), pois os chineses de Macau e de Hong Kong sabem disto melhor que nós, que achariamos "lindo" ter na China toda a gente em fila a votar no senhor doutor da sua preferência e debater chanchadas em mesas redondas, interrompendo-se uns aos outros com o dedo espetado dizendo em voz alta: "peço desculpa, mas é a minha vez de falar!". O problema é que as eleições poderiam ser decididas entre apenas três grandes partidos, o PL, PP e PM: Partido dos Ladrões, Partido dos Piratas e Partido da Máfia. Sim, pois só estes estariam interessados no caos que deitaria uma fortuna nas ruas, onde teriam as armas para o poder apanhar. Viram os democratas de Hong Kong a chorar, ou os de Macau? Os catedráticos da RAEHK têm um ano de aulas pela frente, e em Macau os organizadores do referendo civil cumpriram o seu papel e agora entretêm-se a entregar queixas sobre as entidades que denunciaram a fragilidade do sistema neste lado. Esperemos que não seja assim também no primeiro sistema, pois como é fácil perceber, mesmo para nós "democratas a sério", só uma evolução progressiva do regime evita um mal maior que a não-democracia.

PS: A propósito da situação específica de Macau, duas declarações interessantes a este respeito. Na segunda-feira José Rocha Dinis dizia no Telejornal da TDM que em Macau era preciso implementar a "meritocracia" - o que para mim será sempre bem vindo, em alternativa a corporocracia anarco-capitalista vigente. Agora como sistema de gestão, já existe, na função pública , so que mal aplicado. Se é como ideologia governativa, só se entendermos como "mérito" pertencer a uma das grandes famílias que controlam Macau. Iris Lei assina um artigo nas páginas do Ponto Final de hoje onde expressa uma preocupação muito pertinense sobre a fragilidade do segundo sistema. Pode ser que não, e que tudo isto seja apenas circunstancial, mas sem dúvida que a China colocou aqui os pontos nos "is", explicando até onde vai o tal "elevado grau de autonomia" - elevado para um anão, talvez. No entanto achei curiosa a escolha de palavras de Iris Lei, que nos diz que o "fim precoce do chamado período de “50 anos sem mudanças” está iminente". Oh Iris, querida, mais uma vez não está a ver bem o filme: acabámos de vir de 5 anos sem mudança absolutamente nenhuma, e mais 5 se avizinham, e com sorte (ou azar) ainda temos mais 10. A integração do segundo no primeiro sistema sim, está aí em todo o seu esplendor. Vamos ver se pelo menos podemos ainda "refilar" mais um bocadinho.

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