sábado, 23 de agosto de 2014
Referendo Civil: Chegou a hora 民間公投: 時間到啦
Bem-vindo, welcome, bienvenu, wilkommen. No último mês, mais coisa menos coisa, não se tem falado de outra coisa em Macau: o referendo civil sobre a eleição do Chefe do Executivo. Reparem que na frase lê-se "SOBRE a eleição" - isto não é a eleição para o Chefe do Executivo, que decorre dia 31 deste mês. Esta espécie de consulta popular visa apenas recolher a opinião da população sobre o que pensa do método para a eleição do cargo de dirigente máximo da RAEM. A página dedicada ao referendo tem versões em chinês, português e inglês, e quem souber um destes idiomas, tem pelo menos o ensino primário completo, um Q.I. de 90 ou mais e não se encontra sob o efeito de halucinogénicos entende muito bem que não está a votar para a eleição do Chefe do Executivo, nem o seu voto contribuirá para que se mude seja o que for - pelo menos directamente, e de certeza que não num futuro próximo. Nas últimas semanas foi sendo passado um atestado de incompetência mental aos residentes de Macau maiores e vacinados e com capacidade eleitoral, dando-se a entender que esta iniciativa "causaria confusão entre a população". Como as crianças menores de 16 anos, os animais irracionais, as pessoas interditadas por razões de ordem psíquica e os não-residentes não podem votar (estes últimos até podiam, desde que dominassem uma das três línguas em que a página se apresenta), não há o risco de alguém votar num candidato a Chefe do Executivo que não existe, pois nem é isto que se pergunta - não se coloca sequer o nome de uma possível alternativa ao candidato único para a eleição do dia 31.
Posto isto, avançou-se com a tese da ilegalidade do referendo civil, com base em argumentação diversa, errática e essa sim, confusa, recorrendo-se a analogias da lei forçadas e interpretações extensivas (e até abusivas) da lei. Os referendos não são uma figura jurídica nem têm carácter vinculativo, e apesar de não existir uma lei que os regule, não são necessariamente ilegais - com toda a certeza que não se trata aqui de um "crime", como quase se deu a entender através de algumas infelizes manobras de intimidação. Participar não vai mudar seja o que for, não é um acto de traição, sedição ou secessão (recomendo que consultem o significado destas palavras no dicionário), não coloca ninguém numa "posição extrema de oposição ao Governo Central", nem afecta ou interfere com o poder desse Governo Central. Não sou adepto da ideia, nem me oponho: para mim é uma opção tão legítima como fazer compras "online", responder a um inquérito num "site" qualquer ou concorrer a um sorteio. Sim, já sei que "não é a mesma coisa" mas nada é "a mesma coisa", seja lá o que isso for, mas se a única consequência é "aborrecer" alguém - e não vejo porque razão - reservo-me ao direito de fazer o que entender a este respeito, no pleno exercício dos meus direitos e consciente de que não estou a infringir qualquer lei. Depois de várias tentativas de dissuasão e apelos ao boicote, chegando a invalidar-se a possibilidade de o referendo poder decorrer através do tradicional voto na urna, é possível participar através de "tablets" que elementos da organização vão disponibilizar para o efeito, ou de casa, sentadinho en frente ao PC, e até do telemóvel. Hoje já dia 24, pois passa da meia-noite, e chegou a hora da verdade. Vamos então ver como se processa o referendo civil.
A partir das 00:01 do dia 24 e até às 23:59 do dia 31 é possível participar do referendo civil acedendo a esta página, onde pode escolher a língua que prefere. A página é mantida pelas três associações que organizam o referendo: a Associação Novo Macau, a Consciência Macau e a Sociedade Aberta. A publicitação da iniciativa tem sido feita na rua nas últimas duas semanas por elementos daquelas associações, e recebida com muita hesitação (naturalmente) por parte da população, que mesmo assim ficou mais curiosa com toda a publicidade que lhe foi dada, mesmo sendo negativa. E depois de escolher a língua, passemos à questão que tem causado polémica nestes últimos dias.
Nesta página é-lhe pedido que autorize o processamento dos seus dados pessoais, que como vamos ver mais à frente não têm a ver com a sua orientação política, filosófica, religiosa, sexual ou qualquer outra, não lhe pede sequer o nome, ou o dos seus familiares, a PIN do cartão multibanco, o número da conta bancária, o endereço residencial ou profissional, o nome do cão ou do gato, nada disso. Esta declaração vem na sequência do último "golpe de cintura" no sentido de dissuadir os realizadores do referendo e "assustar" quem quisesse participar por vontade própria no mesmo. E do que se tratou, exactamente?
O Gabinete para a Protecção dos Dados Pessoais (GPDP) da RAEM emitiu na sexta-feira uma nota de imprensa onde avisam os organizadores do referendo que não podem tratar dos dados pessoais dos residentes, nomeadamente os que constam do Bilhete de Identidade de Residente (BIR), "caso contrário, podem assumir as respectivas responsabilidades jurídicas pela violação da Lei da Protecção de Dados Pessoais". Fundamentando-se numa interpretação muito livre do acórdão do Tribunal Judicial de Base, de onde consta que "no regime jurídico vigente de Macau, os residentes de Macau não têm o direito à realização de “referendo civil”" (também não disse que estão a incorrer de infracção no caso de participarem num), invoca o artº 5º da Lei de Protecção de Dados Pessoais - suponho que no texto do nº 1) e nº 2) desse artigo. No fim desta nota avisam os portadores do BIR que devem "considerar seriamente se forneçam os dados pessoais, nomeadamente o número do BIR, para qualquer tratamento de dados pessoais com a finalidade de “referendo civil”, com vista à protecção dos seus dados pessoais".
Interessante a sugestão em tom de ameaça, mas depois do artº 5º vem o artº 6º, referente às "condições de legitimidade do tratamento de dados" onde se pode ler logo no início: "O tratamento de dados pessoais só pode ser efectuado se o seu titular tiver dado de forma inequívoca o seu consentimento(...)", e um artº 7º, que estipula o que são considerados "dados sensíveis", e onde não encontro o número do BIR, que neste comunicado do GPDP adquire quase um estatuto de vaca sagrada, e mesmo que fosse, alegando para o efeito o disposto do nº 1 desse artigo: "É proibido o tratamento de dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação em associação política ou sindical(...)", logo no nº 2 temos as condições em que esses dados podem ser tratados, e na alínea 3) ficamos a saber que uma delas é "quando o titular dos dados tiver dado o seu consentimento expresso para esse tratamento". Mas atenção, pois o tal nº 2 diz ainda que este processamento só poderá ser feito "com as medidas de segurança previstas no artigo 16.º", que diz respeito ao tratamento dos dados, e não ao fornecimento dos dados. Obrigado pelo aviso, meus senhores, e pela vossa dedicação na protecção dos meus dados pessoais, só que como o nome indica, são meus, e faço com eles o que muito bem me apetecer.
E posto isto, no caso de ter concordado com a "declaração de privacidade" chega ao campo em que se faz a verificação da capacidade eleitoral. Como se pode ver na imagem, basta inserir os números que se encontram na traseira do BIR e o nº do telemóvel, escrever o texto da "captcha" e carregar em "continuar". Aí receberá de imediato um SMS com um código de cinco números que deve escrever na página intermédia que o levará ao boletim de voto. Como se pode ver, tudo muito profissional e aparentemente seguro.
E aí está ele, e como podem observar ninguém obriga ninguém a exigir o sufrágio universal para a eleição do Chefe do Executivo nem a dizer mal do actual, ou do futuro, nem propõe nomes para o cargo em questão. São duas moções, duas perguntas, podendo responder "sim", "não", ou simplesmente abster-se. Pode parecer engraçado que se possa abster votando, o que podia facilmente fazer não se dando a este trabalho todo, mas claro que aqui têm-se em consideração os votantes que tenham opinião sobre uma das questões, e seja indiferente à outra. Depois é carregar no botão de "submeter" (não "votar", outra das preocupações da órbita da polémica do referendo), e já está.
É assim, tão simples quanto isto, e não vem daqui qualquer mal ao mundo. Agora no caso de ser eleitor recenseado, faça o que entender melhor: pode votar ou optar por não votar, e em caso afirmativo são-lhe dadas também outras opções. E não é bom ter opções?
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