domingo, 17 de agosto de 2014

De Santa Sancha, deste que vos quer bem


Ainda estava o candidato Chui Sai On a "papiá" na Nave Desportiva dos Jogos da Ásia Oriental, e já eu tinha ontem à hora de almoço na caixa do correio este simpático folhetim, onde se lê em dez minutos o que levou três horas a discutir (e estava um calor do caraças). Não me resta senão agradecer a atenção do candidato, por me ter elucidado desta forma tão sucinta e divertida sobre o seu programa eleitoral, sem precisar de consultar o enfadonho documento em formato PDF na página da sua candidatura. Se estiverem a sofrer de insónia, podem ir lá consultá-lo neste link. No entanto vamos analisar ponto por ponto as prioridades de Chui Sai On e do seu Executivo no caso de ser reeleito. Bora, malta. Vamos nessa que 'tá bom à beça.


E aqui está: "formação de talentos", uma das prioridades que Chui Sai On anunciou algures a meio do seu primeiro mandato, e que passou ao anedotário local devido à ambiguidade da palavra "talentos". Parece que a tradução do chinês está bem feita, e em rigor é "talento" que o Chefe do Executivo quis dizer, agora se isto para nós tem outro significado, é apenas uma questão cultural. É que o talento, como muitos sabem, é algo com que se nasce, e não se aprende na escola, mesmo que se trate de uma Universidade de topo. O talento trabalha-se, aperfeiçoa-se, estimula-se, mas não se "forma". Em todo o caso, se encontrarem por aí algum talento sem coleira perdido na rua, levem-no à "Base de dados de talentos", e só assim teremos "um futuro risonho". Mas não tenham pressa, pois as medidas para "elaborar as políticas de formação de talentos" são de "curto, médio e longo prazo". E no futuro haverá mais...


Neste conjunto de cinco bolas brancas que se assemelham a óvulos, só que sem os orifícios, estão expressos os pressupostos do apoio do Executivo às pequenas e médias empresas. Além dos "vários apoios" e da "atenção" que lhes tem sido dispensada, o Governo tem ainda dado o tão necessário "carinho" - beijinhos, abraços e xi-corações. De facto têm sido expeditos em financiar as PME na parte do capital inicial, sempre necessário para armar a barraca, pagar a renda e o depósito, o equipamento e quem sabe se sobrar alguma coisa as primeiras encomendas, mas o problema é depois. Nem "depois" de muito tempo, é logo a seguir, quando for preciso contratar um ou dois trabalhadores, não há trabalhadores não-residentes para ninguém, se quiserem contratem os de cá, esses não querem, é uma conversa que já nem às moscas interessa. E deve ser difícil a Chui Sai On expressar o seu encanto pelas PME sem os seus "sócios" das Enormes e Grotescas empresas levantarem logo as orelhas, e a atrapalhação até o leva a trocar as setas no meio do gráfico. Mas tudo bem, desde que os pequenotes vão lá abrir as lojas para o meio do Porto Interior ou da Areia Preta tanto faz, que para ir para o centro precisam de pagar taxa aduaneira. Quanto às indústrias culturais, óptima ideia, acho bestial. O quê? Em Macau? Ah pensavam que estavam a falar a sério, desculpem. Mesmo assim venham buscar o dinheirinho filhos, que mesmo que o investimento não dê certo, ganham experiência, porque também aqui, no futuro haverá mais...


Aqui Chui Sai On promete tratar-nos da Saúde (no bom sentido, espero), e esta foi uma das prioridades eternas dos sucessivos executivos que tem sido, digamos, "esquecida". Ahem. Bem, mais do que enterrar os mortos e deixar os vivos horas na sala de espera aguardando a consulta, é preciso apoiar os desfavorecidos, e neste particular, diria que é 80% da população, e "fazer face a uma sociedade de envelhecimento". Ora aqui está algo que eu acho que se devia combater, e é só vestir-me e ir buscar a minha cimitarra, e trato já de "despachar" os velhos todos que encontrar na rua. Vejam só vocês como aquele palerma do quadradinho nº 1 diz que "entrámos na sociedade do envelhecimento" com um ar todo satisfeito, com o indicador direito esticado. Sabes onde é que podes meter o dedo, ó palonço? Aqueles dois pontos no meio é que me deixam meio baralhado; garantir o direito ao emprego e desenvolver a educação? Bem, aqui deve-se estar a sair do âmbito dos cuidados de saúde e a entrar noutro mais generalista. No fim, o mais importante mesmo é "aperfeiçoar o sistema de saúde", e no quadrado nº 2, notamos a presença de algum humor negro: "o Governo investe activamente recursos na sociedade e implementa políticas focalizadas". Estamos ainda a falar da Saúde ou quê? Ah, já percebi...oh, oh, oh. Vamos passar à frente que é melhor. No quadrado nº 3 o candidato diz o seu Executivo vai construir mais lares de idosos, e investigar, investigar e investigar, até que os técnicos fiquem com o olho roxo de tanto olhar no microscópio. Destaca ainda a importância da "prevenção precoce contra a demência" - o que raio quer isto dizer? Se é "prevenção", será sempre "precoce", já o diagnóstico pode ser precoce ou tardio. Mas agora demência? É grave, sôtor? É possível, e a demência é bem capaz de andar por aí à solta. Eu próprio já começo a ver frascos de medicamentos aos saltinhos no canto inferior direito da imagem. Para acabar vemos Chui Sai On a visitar um doente acamado, que apesar de evidenciar uma fractura óssea, faz um sorriso de orelha a orelha, enquanto diz que "o mais importante é aumentar o número de camas hospitalares" - e já agora um segundo hospital, que tal? Chui, sorridente, deixa-nos saber o que está a pensar, que é "alargar os serviços de apoio e os cuidados ao domicílio". É como quem diz: "vão ficando em casa sossegados na caminha, que com alguma sorte ainda se arranja alguém para lá ir ver qual é a crise".


Portanto, afinal como ficamos, é para limpar o sebo aos velhos ou para subsidiá-los? E aqui existe um efeito perverso nesta política de atirar dinheiro aos problemas. É aqui os problemas são pessoas, têm pernas e braços, e refilam, protestam e barafustam, depois tossem e começam a fingir que se estão a sentir mal e vão desfalecer, só para terem a razão do seu lado. Acho porreiro que dêm dinheiro aos velhos e que os deixem andar quase de borla nos transportes, mas para gastar a nota onde, e para quê mandá-los de autocarro para nenhures. Aqui estamos nos antípodas de Miami - esta cidade não é para velhos. Se calhar é melhor que nos asilos que o candidato Chui Sai On quer construír ponha lá umas "slots" para eles se entreterem onde gastar aqueles subsídios todos. Algo que me faz confusão nesta parte do programa político é a distinção entre tipos de invalidez, com os "especiais" a receberem o dobro dos "normais" - "inválidos normais", estão a ver o contrasenso? Pode ser que isso tenha a ver com a situação familiar ou as condições de assistência e tudo isso, mas podiam explicar melhor. E no futuro há mais...mas o pavio é curto.


Se virem por aí alguém da administração na rua com um estetoscópio pendurado ao pescoço não se admirem, pois é possível que ele ande a "auscultara a opinião pública". Os quatro desafios a que o candidato se propõe para melhorar a eficácia administrativa são "funcionários públicos". Ah? Fico sem entender muito bem o que isto quer dizer, mas se significa que vão continuar a haver funcionários públicos, óptimo, caso contrário amanhã ficava em casa. Depois "construção do sistema legal", o que é positivo, pois estou farto de viver na anarquia total, obrigado a andar na rua montado no carro de combate com um lança-mísseis no tejadilho. Já era tempo. A seguir temos "desenvolvimento do sistema democrático", o que me deixa algo curioso, talvez por culpa de alguns episódios recentes nada abonatórios para o "sistema democrático", e finalmente o grande cavalo de batalha do próximo inquilino de Santa Sancha, o "reajustamento da estrutura administrativa". Em baixo temos uma banda desenhada muito catita, onde em cima à esquerda está Chui Sai On (penso eu) a meditar à beira do mar sobre como descascar esta pitaia. Nesse quadrado e no outro logo em baixo, levanta-se véu ao misterioso "funcionários públicos" da parte de cima do texto. Eu prefiro nem comentar, peço desculpa. Fico com náuseas. No quadrado à direita vemos o candidato a retirar aquilo que aparenta ser um organigrama demasiado "burocrático", onde o público precisa de andar de capelinha em capelinha para tratar da vida, substituindo-o por outro muito mais simples, transmitindo a ideia de celeridade e melhor comunicação entre os diferentes organismos. De facto o plano de Chui Sai On para melhorar a eficácia da máquina administrativa, seja ele qual for, não passa por criar as tais duas secretarias autónomas para a Justiça e para a Saúde, o que muitos pensavam que fosse acontecer. No entanto isto é coisa para dar muito trabalho. Reparem como o boneco desse quadradinho é visivelmente mais enxuto que o boneco de cima com o dedo levantado. Outra vez citando Alexis Tam, "o chefe trabalhou muito, e trabalhou muito bem".


Cada vez que oiço falar de "diversificação económica" lembro-me daqueles tipos "agarrados ao cavalo" que cada vez que saem de mais uma cura vão logo dar um "chuto", para "festejar a recuperação" ou "para despedida" (peço desculpa se isto é de mau gosto, mas também sei fazer humor negro, mesmo que mal). Aqui a substância não é a heroína, mas a "casineína", e desde os tempos de Matusalém que ouvimos falar da "criação de indústrias alternativas". Aqui a banda desenhada não especifica como pensa o candidato Chui Sai On diversificar a economia, ou tentar, e nem se percebe que medidas visa tomar. No entanto não posso mais uma vez deixar de salientar o fino recorte humorístico dos desenhos. No primeiro vemos Chui a levantar um bloco onde se lê "formação de elites e talentos", num esforço hercúleo que quase leva a que lhe rebente uma veia na testa. Elites já nós temos, não só é lá muito talentosas, e não vejo como é que os "talentos" resolvem isso da diversificação económica. Quem tiver "talento" e ao mesmo tempo juízo, vai antes ganhar bem para a administração ou para os casinos, em vez de ir remar contra a maré e lutar contra moinhos de vento. O mesmo se pode dizer dos "quadros especializados", que "precisam ser estimulados". Simxenhorconcerteza, por quem sois? Dê-lhe$ o$ e$tímulo$ certo$ que ele$ não o de$iludem. O terceiro quadradinho é hilariante: um empilhadora prepara-se para nocautear um operário com um bloco de talento, e este berra desesperado "Justiça! Imparcialidade!", que em talentês (o idioma dos talentos) significa "Misericórdia! Piedade!". No último quadrado vemos uma criança a falar para as paredes, aparentemente porque não teve a sorte de ter uma "prevenção precoce" contra a demência. E outra vez se fala de talentos. Eu começo a recear que este Executivo qualquer ande aí pelas ruas como os mortos-vivos, só que em vez de "brains" querem talentos. Taleeentooos...blehhh.


Agora chegámos à "spiciest meatball of all": emprego, habitação, segurança alimentar, ambiente, qualidade de vida da população em geral. Olha, boas notícias, por o desemprego baixou e é apenas um terço do que era em 2004. Nem dei por nada, pois parece que os problemas vêm mais dos "empregados" do que dos "desempregados", que esses ninguém chateia, têm subsídio, trabalham onde quiserem e quando quiserem, mou man tai. Já temos um Centro de Segurança Alimentar? Porreiro, mas onde é que eles andavam durante o recente caso da carne imprópria para consumo importada da China que vinha sendo servida nos restaurantes McDonald's? Se calhar este programa eleitoral foi escrito antes desse incidente, e não deu tempo para incluir a estatística. E por falar nisso, a situação da habitação económica vai de vento em popa, com "apenas" 14% dos residentes que aderiram ao plano à espera. Esta é uma daquelas coisas que mais vale olhar para o que não se fez ou se fez mal e porcamente do que aquilo que se fez bem, quem certamente não anda na ordem dos 84%.


Ora bem, olhem só o que vai para aqui. Em primeiro lugar, o que importa reter é a diferença entre habitação pública e habitação económica. Se a política do Executivo é garantir o direito fundamental dos seus residentes à habitação, essa terá sempre que ser pública. Quem não tem dinheiro para comprar habitação económica (que não assim tão "económica" quanto isso), ou não está disposto a viver de pão e manteiga todos os dias durante anos, e está no seu direito e ninguém nos deve dizer onde gastar ou não gastar o dinheiro, espera e desespera pela habitação pública. O que temos visto é a entrega de moradias económicas que não valem aquilo que é pago por elas - e ainda se arranja um esquema qualquer para recompensar os generosos beneméritos que cederam o terreno, para que não sofram do prejuízo que foi "dar" as casas aos pobrezinhos em vez de construír um condomínio que podiam vender por milhões aos "pangyaos" do continente. E que "cartoon" tão psicadélico este, o mais surrealista de todos. Os meninos fazem planos para construír um parque temático da Disney, e antes que se degolem enquanto discutem se é melhor ter piscina ou "jacuzzi", o candidato chega para pôr água na fervura, e assegura que o Governo "continua à procura de terrenos aptos para construir habitação pública". Ah! E como vão encontrá-los, através de porcos farejadores? Não estamos aqui a falar de trufas. Já há terrenos, sim, a gente sabe: na ilha da Montanha. Em Macau só se forem procurar no Canal dos Patos, perto das Portas do Cerco (não confundir com o Canal dos Patos Bravos, situado na Penha e arredores), uma zona mais sólida do pantanal onde espetem umas varas e construam palafitas. Mas pronto, olhe, obrigado. É um programa muito interessante, muito melhor que o outro. Tenho a certeza que vai ganhar.

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