terça-feira, 1 de julho de 2014
Santo Niño de Cebu
Nesta minha primeira saída de Macau em quase dois anos (dava para qualquer um ficar maluco) dei um pulo até Cebu, ilha da província de Vissayas, nas Filipinas. Em primeiro lugar peço desculpa pelo ar desmazelado, mas com algum exagero à mistura, posso quase dizer que passei tanto tempo em trânsito como nos locais que visitei, tais são as distâncias e a forma deficitária como se processam as deslocações, que requerem várias horas ora de avião, de autocarro ou de barco, coisa típica de países terceiro-mundistas - mas isso são contas de outro rosário. E é de rosários, de fé e de devoção, neste caso particular da denominação cristã que vos queria falar. Sim, fui testemunhar um pedaço importante da nossa história relacionada com os descobrimentos: a adoração do Santo Niño de Cebu.
Cheguei na sexta-feira a Mactan, ilha separada de Cebu pelo canal com o mesmo nome e onde se situa o aeroporto internacional que dista da capital Manila a uma hora e vinte minutos de vôo. Mactan é uma municipalidade dividida por Lapu-Lapu City e Cordova, dois distritos que entre si abrangem uma área de 6615 km2, com 430 mil habitantes. Para quem se encontra no centro de Mactan e quer chegar à Catedral do Santo Niño de Cebu deve apanhar um táxi e pedir que o levem a "Magellan Cross" - cruzamento de Magalhães. Este Magalhães não é mais que o "nosso" Fernão de Magalhães, aqui conhecido por Ferdinand Magellan, o navegador português cuja frota completou a primeira viagem de circum-navegação à volta do mundo. O edifício na imagem é o da Câmara Municipal, situado mesmo em frente à dita catedral, humildemente designada por "capela".
Depois de chegar ao "Magellan Cross" e "fintar" os inúmeros pedintes e vendedores de recordações que estrategicamente se colocam entre o cruzamento e a capela, chegamos à praça onde se localiza o edifício municipal, e em frente a este um pequeno memorial onde podemos ver a "cruz de Magalhães" - nem mais que a cruz de madeira que o navegador português implantou à chegada a estas terras do fim do mundo, onde encontrou a morte às mãos de um nativo de seu nome Lapu-Lapu. Nos nossos livros de História Lapu-Lapu é referido como sendo um "pirata", quando na verdade era apenas um nativo de Cebu que se recusou a ajoelhar-se perante a cruz cristã, e como tal foi confrontado por Magalhães e seus homens (na maioria espanhóis), que em inferioridade numérica (cerca de 50 para mais de 3 mil) foram chacinados pelos nativos.
No interior da capela, cuja entrada pouco ou nada diz da sua sumptuosidade (a fotografia não ficou em condições de ser publicada, mas não tem motivos de interesse por aí além) é possível testemunhar a devoção dos fiéis de Cebu e de outros pontos das Filipinas ao Santo Niño. Tal como em Fátima, temos os vendedores de velas avulso, e dessas velas milhares são queimadas diariamente, num cerimonial onde impera sobretudo o silêncio e a rendição ao divino, que nos deixa quase sem palavras. É difícil permanecer indiferente ao cenário, e tratá-lo como uma mera curiosidade turística. Confesso que este foi o momento mais deslumbrante de demonstração de fé cristã que vi desde do 13 de Maio em Fátima. Arrependo-me agora de não ter recolhido alguns segundos de imagens em vídeo, que ilustrariam com mais fidelidade o momento que presenciei ali, numa ilha do centro das Filipinas, no sudeste Asiático.
Após o local onde se procede à queima das velas, temos esta espécie de santuário que faz em tudo lembrar o joelhódromo de Fátima, mas onde não se via vivalma, nem indicação de um possível acesso à capela localizada na torre cimeira. Sem guia turístico ou qualquer outro tipo de orientação, fiquei sem saber se existe alguma ocasião onde esta pequena praça (um pouco maior que o Largo do Lilau, em comparação) se enche de fiéis, e para que fim. Após consulta na internet, fiquei a saber que a Páscoa é a época alta da devoção ao Santo Niño - nem outra coisa seria de esperar.
À entrada da capela, e do lado direito, temos um corredor onde podemos contemplar uma série de frescos, o primeiro dos quais ilustrando a chegada de Fernão de Magalhães a Cebu, em 1521, ao serviço do rei Carlos V, de Espanha. Segundo o cronista italiano Antonio Pigafetta, que acompanhou o navegador português nesta viagem, Magalhães teve sucesso na conversão do chefe tribal Humabon, o rajá de Cebu, e sua mulher Humaway, à fé cristã, e depois do baptismo estes adoptaram respectivamente os nomes de Carlos, tal como o rei espanhol, e Joana, mãe deste, e juraram ainda fidelidade à coroa de Castela, dando-se assim um importante passo na anexação do arquipélago das Filipinas, chegando a uma das regiões consideradas mais "selvagens".
Como recordação do momento em que converteu o rajá de Cebu à fé cristã, Magalhães ofereceu aos recém-convertidos a imagem de Cristo como criança, que ficou conhecida como a relíquia do Santo Niño de Cebu. Recolhi esta imagem pouco clara, ao fundo da capela do Santo Niño, vedada e reservada apenas aos crentes, mas tive a oportunidade de passar em frente a ela, numa sala onde pode ser contemplada e o vidro da redoma onde se encontra enclausurada pode ser tocado pelos fiéis. Confesso que fiquei espantado com o que vi. Os leitores que já me conhecem sabem que sou agnóstico, mas quando cheguei à sala onde estava a imagem - e desconheço se é a original - estava um transsexual lavado em lágrimas a afagar o vidro, e seguiram-se outros devotos igualmente comovidos, e de absorto que estava perante aquele cenário, esqueci-me por completo de registar o momento. Desconfio mesmo que a imponência da presença daquela relíquia me deixou sem reação para poder racionalizar aquele momento.
Algo comum que os crentes filipinos partilham com os espanhóis é adoração do Cristo mártir. A Paixão sobrepõe-se ao nosso lado materno da adoração da virgem, do culto mariano, e tal como "nuestros hermanos", os filipinos prostam-se à imagem do salvador martirizado, ensanguentado, morto em nome da salvação da espécie humana dos seus pecados. Este figurino era um dos mais concorridos, mas não faltavam outros onde se podia ver Jesus pregado na cruz, coroado com os espinhos, chagado, e em último recurso...
...morto. E nem um caixão onde se podia ver o corpo de Cristo faltava. Eram vários os fiéis que se aproximavam deste sarcófago, batiam no vidro, como que esperando uma reacção da figura artificial inanimada feita em madeira. Outros falavam com ele, outros ainda sussuravam-lhe. Para um agnóstico como eu isto é um fenómeno espantoso, e por momentos recorri à suspensão do descrédito como mecanismo de defesa a algo que nunca pensei, em pleno século XXI, testemunhar ao vivo e a cores, e com tamanha intensidade.
À saída da capela, e entre as incontáveis tendinhas onde se podem comprar recordações, comida e outros tipos de pasalubong (palavra em "tagalog" para "souvenir") não faltam os "santeiros", que vendem réplicas de tudo o que se pode encontrar na capela do Santo Niño, e muito mais. Uma visita que recomendo não só aos devotos da fé católica, que assim a assinalam com um "tick" na lista de "locais de devoção a visitar", mas a todos os apaixonados da história, e da sua vertente da evangelização. Prometo que não se arrependem. E já agora, Mactan é uma cidade acolhedora, agradável e segura, e para quem gosta de ir a banhos, recomendo a ilha de Bohol - mas vou avisando: são duas horas de barco, e uma vez lá chegados pelo menos mais um "esticão" de táxi até ao hotel ou "resort" mais próximos. E os caçadores de "tours" e até os próprios taxistas são chatos como a putaça.
Em jeito de epílogo, vou-vos falar de Lapu-Lapu, que originalmente era um "datu" (uma espécie de príncipe, neste caso líder tribal) da ilha de Mactan, arquipélago de Cebu, e actualmente considerado um dos heróis nacionais das Filipinas. Inicialmente tido como um resistente à colonização espanhola e ao esclavagismo, caíu das boas graças do rajá de Cebu aquando da conversão deste ao cristianismo, e pior ficou quando o sangue de Fernão de Magalhães sujou as suas mãos. Posto isto, isolou-se nas ilhas adjacentes a Mactan e para sobreviver recorreu à pirataria, atacando os navios cristãos que se acercavam das águas das regiões que controlava com os seus homens. Eventualmente viria a fazer as pazes com Humabon, e terminaria os seus dias numa das ilhas do arquipélago do Bornéu, com onze dos seus filhos, três das suas mulheres, e dezassete dos seus homens. Variedade não lhe teria faltado, com toda a certeza.
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