domingo, 13 de julho de 2014
Referendo sem sê-lo, e o ilegal que não é legal
Referendo, s.m. (latim referendus, -a, -um, particípio passado de refero, referre, trazer ou levar de novo, remeter, dar, responder, relatar)
Direito que têm os cidadãos de se pronunciarem directamente sobre as grandes questões de interesse geral; Votação em que se exerce esse direito.
Que diabo, vejam lá vocês que me ausentei do território durante uma semana, e deu-se um "happening" político-lexical de dimensões épicas. A malta do campo pró-democracia propõe-se a fazer aquilo que chama de "referendo informal" à eleição do Chefe do Executivo através do sufrágio universal, ou seja o método do voto directo pelos residentes de Macau que estejam recenseados nos cadernos eleitorais da RAEM. Recorde-se que actualmente o titular do cargo público principal de Macau é escolhido através de um Colégio Eleitoral, composto por notáveis, que por sua vez são escolhidos por outros em representação de associações e grupos dos mais variados quadrantes da sociedade civil. Isto até parece uma coisa XPTO, com os melhores dos melhores a escolerem o melhor que os deve representar. Uau. O problema é que só existe um candidato, que mesmo que não seja diamante mais brilhante e perfeito que sai daquele processo de delapidação da pedra em bruto, é pelo menos o que reúne mais consenso, que melhor serve os interesses da maioria dos tais notáveis, e enfim, está disponível, e além de não existir nenhuma mente iluminada com capacidade para um cargo desta responsabilidade, ninguém está para se chatear em desafiar a nomenclatura. É tudo uma brincadeira cara.
Só que mal o Executivo ouviu falar em "referendo", caíram logo a Sé e a Penha, e ai que não pode ser, que isto é assim que se faz, e vocês estão mas é malucos, e amanhã ainda aparecem aí os tanques do exército vermelho a atravessar a Rua do Campo. Tudo isto gerou uma enorme discussão sobre o que é legal e ilegal, sairam cá para fora Florinda Chan, Alexis Tam e o próprio Chui Sai On, e em toda esta salada russa meteram ainda a Lei Básica e a Constituição da RPC. No programa Contraponto, gravado na sexta-feira e transmitido ontem na Rádio Macau e hoje no canal 1 da TDM, os jornalistas Carlos Morais José e Isabel Castro iam andando à chapada por causa da terminologia aplicada, nomeadamente o significado de "referendo", e pelo meio Alexis Tam veio a público insinuar que a China "não vê isto com bons olhos", utilizando mesmo um tom algo lacónico e muito preocupante. Jason Chao, um dos idealistas do tal "referendo" acusou o Porta-Voz do Governo de tentativa de intimidação, e de facto Alexis Tam fica muito mal no retrato; se sabe de qualquer coisa que nós não sabemos, que o diga, mas agora o que ele pensa ou não do que a China pensa, não nos interessa. Dispensamos, obrigado. Chui Sai On veio dizer que "não é ilegal, mas ele não concorda". Ora então vá lá votar no "Não", e mesmo que seja o único, que diferença isso faz? Fica tudo na mesma.
Agora vamos lá colocar um pouco de bom senso em tudo isto: não há aqui nada de legal nem ilegal nas pretensões dos democratas. Eles podem-lhe chamar o que quiserem, mas não têm a capacidade nem a legitimidade de realizar um referendo. Aquilo que eles querem fazer é uma consulta pública, algo que os ingleses chamam de "poll", e nunca poderá ter o carácter vinculativo que tem um referendo. Exemplo de referendo é aquilo que tivemos com a Lei do Aborto em Portugal, e que depois de ter ganho o "Sim", passou a ser permitida a interrupção voluntária da gravidez antes das 10 semanas. Mesmo assim para produzir efeitos, é necessária a participação de mais de metade do eleitorado, e nem sei bem quem é que vai escrutinar este processo, ou se os seus promotores se vão sequer dar ao trabalho de verificar a capacidade eleitoral de quem quiser nele particiar.
Se o Novo Macau ou quem quer que fosse tivesse a autoridade para realizar um referendo ao sufrágio universal para a escolha do Chefe do Executivo, e eventualmente ganhasse o "Sim", tinhamos esse sistema em vigor já na próxima eleição, em 2019. Não existe essa modalidade de "referendo informal", como eles lhe chamam; isso seria o mesmo que "homicídio sem morte da vítima". É legal ou ilegal, isto que eles pretendem fazer? Nem uma coisa nem outra; não é legal no sentido de que não produz qualquer efeito real, e não é ilegal porque não estão a violar lei nenhuma. Podem fazer eleições a brincar com votos a fingir e urnas imaginárias todos os dias, se quiserem. É o mesmo que eu ir jogar ao Monopólio e ganhar: isso não me dá o direito de chegar amanhã à Estação de Santa Apolónia e correr com toda a gente dali para fora, pois "agora aquilo é meu". Todo o caos se deve provavelmente ao facto de terem chamado de "referendo" a algo que não pode nunca ser considerado referendo na acepção do termo.
A preocupação dos responsáveis máximos da RAEM só faz sentido se considerarem isto uma provocação à autoridade do Governo Central, pois sabem muito bem que se esta "consulta", vá lá, for em frente e o "Sim" tiver a maioria, não vai aparecer uma multidão em Santa Sancha armada de tochas e forquilhas a bater à porta de Chui Sai On a exigir-lhe que saia, pois agora a música é outra. Tenho pena que tenham trazido a Lei Básica para esta discussão, pois não existe qualquer referência nesse documento a "referendos" nem nada que se aproxime disso. A palavra "referendo" não aparece uma única vez na Lei Básica (a sério, consultem s.f.f.). Citar a Lei Básica desta forma tão livre demonstra ignorância quanto à mini-constituição da RAEM, e isto partindo de pessoas em cargos desta responsabilidade, é deveras preocupante. Digo eu.
A Lei Básica foi criada no sentido de conferir à RAEM uma autonomia quase plena em relação à R.P.C., com excepção da defesa e da política externa - isto pode parecer o paleio do costume, mas é o que lá está, e estamos a falar aqui de um documento com carácter constitucional, e não de um código penal que proíbe isto e aquilo, ou penaliza esta ou aquela conduta. Para esse efeito foi emanada legislação do controverso artº 23, mas mesmo esta é legislação avulsa, e nunca em circunstância alguma se pode citar a Lei Básica para determinar o que é "ilegal". Mas atenção: se a intenção aqui é transmitir que o método da escolha do CE é aquele e qualquer tentativa de mudar para outro está completamente impossibilitada, chamo a atenção para o nº 7 do Anexo I da Lei Básica:
"Se for necessário alterar a metodologia para a escolha do Chefe do Executivo em 2009 e nos anos posteriores, as alterações devem ser feitas com a aprovação de uma maioria de dois terços de todos os deputados à Assembleia Legislativa e com a concordância do Chefe do Executivo, devendo o Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional ser informado dessas alterações, para efeitos de ratificação".
Ora bem, portanto já era possível desde 2009 alterar a metodologia da eleição, mediante as condições acima estabelecidas. Com a composição da AL que temos, duvido que 22 deputados votassem a favor do "fim da mama" a que estão habituados, e o CE já veio dizer que deste prato não come, porque não gosta. Portanto a alteração do método de eleição não está dependente de qualquer manifestação pública: depende apenas da AL e do próprio CE, e a ratificação da ANP é uma mera formalidade. Só não ratificariam algo de completamente absurdo, como escolher o líder do Governo através de moeda ao ar, ou chamar o elefante Nelly para dar com a tromba num deles. Se com todo este alarido estão a querer passar a ideia de que a Lei Básica é muito bonita sim senhor, mas é apenas uma fachada e que não vale a pena ambicionar chegar aos parâmetros de progressiva democratização e participação cívica plena que o seu conteúdo sugere, então digam-nos logo e a gente já não se chateia mais com isso.
Se em Macau existissem políticos nos cargos que deviam estar a ser ocupados por pessoas que entendessem o mínimo de política, tivessem elasticidade mental e soubessem ler os sinais que a opinião pública vem passando, tratavam este caso de forma a evitar todo este alarido, este ai Jesus, não brinquem com a tropa, chiu que acordam o bebé e ele depois passa o dia todo de birra. O Executivo poderia muito placidamente explicar aos rapazes no Novo Macau ou da Consciência Macau ou lá do que for que não é um referendo que eles pretendem fazer, mas sim uma mera recolha de opiniões sobre a metodologia da escolha do Chefe do Executivo. Simples. Podiam inclusivamente mostrar alguma receptibilidade à iniciativa e prometer avaliar os resultados e estudar possíveis formas de chegar a um consenso. Só dizer que "não pode ser nada" é que não. Então os senhores estão aí a fazer o quê, afinal? Quando o Chefe do Executivo está a virar as costas ao problema, está em falta com uma das competências inerentes ao seu cargo, nomeadamente o de atender petições e queixas da parte da população. É ele que nos representa, e se existe uma fatia considerável de residentes da RAEM interessados em discutir este tema, o que o leva a ignorar as suas pretensões?
E para terminar gostaria apenas de deixar algo bem claro: nem tudo o que é ilegal é um crime, e se algo que a lei omite como legal não é necessariamente ilegal ou proibido. Meus amigos, tudo o que é ilegal está perfeitamente estipulado em legislação própria. Não vão em conversas de que isto e aquilo é ilegal só porque não existe uma lei que diga que é legal. Não brinquem com coisas sérias. Vamos lá a cumprir o que foi estipulado nas reuniões dos Grupos de Ligação e de redacção da Lei Básica e assinado pelos representantes de Portugal e da China. Aquilo deu trabalho, eles não estavam ali a brincar, e é tudo o que temos para nos segurar a este barco que parece andar um bocado à deriva. Agora vão lá trabalhar e não andem aí atrás dos meninos que andam a brincar às eleições, aos "cowboys", e aos políticos. Epá pelo menos brincando aos políticos ainda há alguém que a bem ou a mal fale de política, e às vezes até sabe o que diz. Porque de quem devia perceber de política, parece que o melhor é mesmo perdermos a esperança. É o que temos.
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