sábado, 19 de julho de 2014

Multiculturalismo: notas finais


Na quinta-feira discorri sobre alguns aspectos da multicultaridade, ou multiculturismo, como preferirem, e ontem dei continuidade pegando num artigo do meu amigo e colega Hugo Gaspar, publicado num dos seus blogues. Onde gostaria de encerrar o assunto deixando bem claro qual é a minha posição quanto a este tema fracturante, que desperta por vezes sentimentos de desconforto, próprios de quem se identifica como um todo cultural e não aceita que lhe façam imposições, ou que descaracterizem o seu "habitat". Existem certos aspectos ou percepções da análise das diferenças culturais que podem ser passíveis de interpretação diversa, e há mesmo quem resuma a complexidade desta discussão a um redutor "somos todos iguais", e que considere qualquer distinção entre nacionalidade, etnia, região ou idioma uma forma de "racismo". Que parvoíce. É claro que existem diferenças. E ainda bem!

Quem frequentou a cadeira de Antropologia Cultural, quer no complementar do secundário quer na faculdade, deve recordar-se que a lição nº 1 é esta: "ninguém é igual a ninguém, nem irmãos gémeos são iguais" - e "idêntico" não significa necessariamente "igual". Mas se por um lado cada indivíduo é dotado de características que distinguem dos outros, identifica-se plenamente com vários outros quando toca aos aspectos culturais, na prática de ritos, de tradições, de certas formas de expressão artística, quer musical ou outra qualquer, coisas que o rodeavam e às quais se habituou durante o seu processo de aculturação. A identidade cultural de cada um pode variar conforme o país, a região, e até da cidade, vila ou aldeia de onde é natural. Sendo eu português, gosto de bacalhau, como qualquer outro português que se preze, seja ele do norte, centro, sul ou ilhas, e até os da diáspora (já lá vamos). No entanto é possível que ao assistir ao bailinho da Madeira ou uma moda minhota isso não me diga nada, no entanto para as pessoas destas regiões esta é uma marca da sua identidade, e não lhes agradaria que eu viesse dizer que tinham mau gosto, ou que são rústicos e primitivos. No que toca ao que Portugal tem a oferecer em matéria cultural, há coisas de que gosto, e outras que nem por isso. Não sou um grande adepto de ranchos folclóricos, jogos tradicionais como a malha ou o chinquilho, não sou grande apreciador de fado (apesar de ser da zona de Lisboa) e as touradas provocam-me um sentimento misto. Lá porque sou português não sou obrigado a gostar de tudo o que é português. Isto não é um "set-lunch" ou o pacote de instalação de um "software". Quem gosta do que eu não gosto, bom proveito; quem não gosta do que eu gosto, melhor, mais fica para mim.

Vivendo num mundo globalizado como o de hoje, é inevitável que as manifestações culturais de um país sejam transportados para outros, ora levados por comunidades migratórias dessas paragens, ora como parte de uma tendência, inserida nos ditames da moda. Se nos mantivessemos firmes à nossa identidade cultural e rejeitássemos todas as outras, teríamos que ouvir a Mariza e não nos era permitido gostar da Shakira; podiamos comer febras e coiratos, mas nada de McDonald's ou Pizza Hut; querem "sushi", juntem-se aos gatos vadios na lota que comem peixe cru. Eu gosto mais de "kuduro" do que fado, por exemplo, e prefiro frequentar uma discoteca africana do que uma tasca do Bairro Alto - serei mau português? Gosto de diversidade, e mesmo agora quando fui à Tailândia comi em restaurantes mexicanos, árabes e italianos. E porque é que estando na Tailândia, não aproveitei para comer apenas comida local? Porque não me apeteceu, e é por isso que a multiculturalidade é uma coisa fantástica. Nunca devemos reprovar sem antes provar, e para mim as coisas funcionam deste jeito: ou gosto, ou não gosto. Não existe preconceito que me iniba de gostar de algo apenas porque "não tem nada a ver com a minha cultura", e também me estou nas tintas que um estrangeiro não goste de algo que é genuinamente português porque "não é português", mas é outra coisa qualquer. Repito: mais fica para mim e para os outros que também gostam. Quanto mais opções existem, mais valor damos àquilo que é nosso, e ficamos dotados de um critério mais amplo na hora de comparar e reconhecer as diferenças.

O maior receio entre os que desconfiam da multiculturalidade prende-se com a descaracterização do seu espaço e da sua cultura, e acham que se devia impôr a nossa cultura aos que forasteiros que venham viver connosco, antes que sejam eles a impor-nos a sua. Isto faz-me lembrar a indignação que causou aqui há alguns a aquisição de algumas salas de espectáculos e outro património pela Igreja Universal do Reino de Deus, com o fim de realizar ali as suas sessões, reuniões, culto, aquilo que eles para lá fazem, seja lá o que for. Na altura senti-me igualmente incomodado, pois não reconheço nessa confissão qualquer moral ou credibilidade, e questiono os critérios que a revestem de legalidade. No entanto as mesmas pessoas que se opunham à compra destes locais pela IURD foram os mesmos que se desinteressaram deles, tornando-os uma fonte de despesa, e agora reclamavam de quem quis fazer deles uso, reabilitando-os e aproveitando-os para uma fim, por mais contrário que essa seja aos nossos parâmetros do aceitável. O que queriam, que ficasse ali o cinema a fazer de "elefante branco", sem que ninguém lhe desse uso ou cuidasse da sua manutenção, arriscando a que se tornasse uma ruína? O mesmo se aplica a quem se queixa de que a tasca de um Ti Chico qualquer fechou para dar lugar a um restaurante de "fast-food", ou que a Ti Zefa costureira trespassou a loja para uns chineses. Talvez se comessem mais a zurrapa do Ti Chico ou fizessem mais encomendas à Ti Zefa em vez de comprar tudo no "pronto-a-vestir" eles não precisassem de fechar, e assim mantinham-se as características daquele espaço.

Eu não considero que seja necessário impôr a nossa cultura a um imigrante, da mesma forma que prefiro manter a minha cultura aqui em Macau, onde resido há 21 anos, mas onde mesmo assim assimilei alguns aspectos da cultura local. Se a rejeitasse de todo, provavelmente não me teria adaptado, e se calhar já me tinha embora para onde houvesse tudo aquilo que gosto, mas onde talvez não tivesse dinheiro para comprar. Um estrangeiro que venha residir no meu país só precisa de cumprir as leis do país de acolhimento, respeitar o meio onde se está a inserir, e manter a sua permanência sempre legal. Se quiser praticar os ritos próprios da sua cultura com os seus restantes camaradas, e estes não sejam incompatíveis com as leis locais ou interfiram com as práticas e tradições locais. É claro que não poderá levar a cabo algumas das práticas permitidas no seu país de origem mas proibidas no seu país de acolhimento, sejam elas a poligamia, a mutilação genética, o consumo de carne de cão ou de outras espécies protegidas por lei, ou no caso de ser islâmico não deve exigir que não se venda carne de porco no mercado ou que as mulheres andem todas tapadas. Uma vez de regresso ao seu país, pode fazer o que entender. Também considero legítimo que no caso de serem muitos, tenham uma associação que os representa e esta adquira legalmente um espaço onde constrói depois uma mesquita, uma sinagoga, um pagode ou um templo hindu, está no seu pleno direito. Quem não gosta não é obrigado a lá ir, e desde que cumpram a lei do país onde estão integrados, ninguém tem o direito de dizer que "estão ali a mais".

Isto leva-me a falar dos receios que existem em alguns países com um elevado número de imigrantes que por sua vez tiveram filhos já nascidos nesse país de que se dê a imposição de uma cultura ou religião intrusa, aquilo que na Europa se tem designado por "islamização". Recordemos o episódio da declaração unilateral de independênica da República do Kosovo, ainda hoje não reconhecida pela maioria dos estados mundiais. O Kosovo fazia parte da Jugoslávia, e depois da desagragação desta, era pante integrante da Sérvia. No entanto 92% dos seus habitantes são de etnia albanesa e existem apenas 4% de sérvios, daí que a esmagadora maioria dos kosovares reclamava a independência, com uma maior aproximação à Albânia, com que faz fronteira a sul. Os sérvios sentiram-se expoliados de um território que historicamente sempre lhe pertenceu, mas ao deixá-lo nas mãos de um povo com uma cultura diferente da sua, praticamente na totalidade da área, do que estavam à espera? O mesmo se tem passado em países como a França, Alemanha, Holanda ou Suíça, onde apesar dos incentivos governamentais à natalidade, os números do envelhecimento da população e a falta de mão-de-obra continuam a subir, deixando as portas abertas aos imigrantes de paísses que historica e culturalmente pouco têm a ver com estes, e facilitando a sua fixação. De outra forma, como se vai manter o estado social quando começam a existir quase tantos aposentados quanto trabalhadores no activo? Isto não depende só de impedir a entrada de estrangeiros, ou mandar alguns deles embora. Os europeus têm que começar a pensar no seu futuro e ser menos comodistas.

Quanto à teoria de que os números da criminalidade cometida por imigrantes tem aumentado, e por isso é preciso agir rapidamente, só posso dizer uma coisa: é um disparate. Claro que num país onde existam muitos imigrantes, há mais crimes cometidos por imigrantes, pela mesma razão que se existisse algum num país onde não houvessem, não existiriam crimes cometidos por imigrantes. Lógico, não é? Agora o que me incomoda é que se atribua aos imigrantes a culpa dos números da criminalidade. Quer dizer, quem tem o dever de combater o crime? As autoridades, braço do estado encarregado da segurança e do cumprimento da lei. E o que acontece se começamos a arranjar bodes expiatórios, como neste exemplo? Desinveste-se no combate ao crime, pois fica mais fácil culpar os imigrantes do que andar aos tiros com os criminosos, ou apanhá-los e levá-los à justiça. Um imigrante que comete um crime deve responder pelos seus actos, e eventualmente poderá ser expulso do país que o acolheu e ser impedido de regressar. No momento em que obtém a nacionalidade através do casamento ou da naturalização, passa a ter os mesmos deveres e os mesmos direitos dos cidadãos desse país, e pode muito bem passar ao papel de vítima. Os media do "lobby" anti-imigração e nacionalistas publicitam "ad nauseum" os crimes cometidos por estrangeiros, mas não se dão ao trabalho de contar os estrangeiros que são vítimas de crimes cometidos por cidadãos nacionais. Quando o realizador holandês Theo Van Gogh foi assassinado por um muçulmano, soaram imediatamente os alarmes no quartel dos nacionalistas. Estão a ver? Estão a ver? É a islamização em todo o seu esplendor! Muitos nem quiseram saber que o autor do homicídio, um tal Mohammed Bouyeri, era igualmente holandês, filho de marroquinos, mas nascido em Amesterdão. Agora o que tem um crime perpretado por um cidadão holandês de pleno direito contra outro nas mesmas circunstâncias a ver com a imigração? Por um deles ser muçulmano? Então se este é o problema, e sendo Portugal um país católico, qualquer não-católico seria impedido de lá residir - eu, por exemplo. E Theo Van Gogh era ateu, por sinal.

A multiculturalidade é algo de bom, porque nos aproxima, e nos deixa aprender uns com os outros. Para que funcione e que não entrem estas "pedrinhas" na engrenagem, é necessário que todos cumpram o seu papel, e que respeitem as diferenças que tornam o convívio entre as culturas tão fascinante. Eu posso gostar de incenso, ir comprá-lo numa loja de indianos, e nem por isso estes me exigem uma prova da minha herança bramânica. Gosto de couscous, jantei num restaurante marroquino em Paris onde serviram uns couscous de carneiro divinais, e até travei amizade com o cozinheiro, que era originário de Marrocos, e não me cansei de elogiar o seu trabalho (e a dose era de enfarta-brutos). Ele ficou feliz que eu tivesse apreciado este aspecto da sua cultura, e mesmo quando lhe disse que era português, imediatamente me mostrou duas ou três frases que sabia dizer na minha língua. Não me interessava que Paris fosse completamente marroquino, nem a ele, que provavelmente deixou Marrocos porque não estava lá bem, porque haveria de o levar atrás consigo? Se era muçulmano ou não, isso ele não me disse, mas suponho que seja, e pode continuar a sê-lo mesmo fora do seu país, ninguém o impede, desde que não imponha aos outros a sua crença. É assim que funciona este convívio, dentro do respeito mútuo, e sem culpabilização de parte a parte quando algo corre mal. Cabe aos governos e às autoridades acolher toda a gente que esteja dentro da legalidade, em vez de fomentar este conceito de que é aceitável agradar a uns mandando os outros embora. E é isto que devemos exigir, que façam também eles o seu trabalho, tal como os cidadãos nacionais e os imigrantes fazem o seu.

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