terça-feira, 22 de julho de 2014

Moção 1, opção "B": Não


Nota prévia: este artigo é uma versão (muito) mais alargada daquele que vai sair esta quinta-feira no Hoje Macau.

A Associação do Novo Macau Democrático (ANMD) anunciou ontem que o "referendo informal" que pretendem realizar para saber o que pensa a população de uma eventual eleição do Chefe do Executivo pelo sufrágio directo e universal, na base de uma pessoa, um voto, vai contar com a participação de futuros eleitores. Ou seja, vão poder participar do voto "online" residentes permanentes com mais de 16 anos de idade. Contudo, e para não comprometer o resultado, estes votos serão contados à parte, com uma projecção feita para os residentes com capacidade eleitoral efectiva, com mais de 18 anos, e outra para as "esperanças", os que ainda não estão recenseados, mas podem inscrever-se na Comissão Eleitoral a tempo de poder participar numa hipopética eleição do Chefe do Executivo em 2019. Eu aguardo pacientemente pela realização deste sufrágio e pelos seus resultados, eu que sou um fanático destes "case studies" que qual ventania levantam a saia da sociedade, deixando ver alguns dos seus aspectos mais ocultos. Espero que se realize, sim, e como residente permanente, maior de 16 anos e recenseado, faço intenções de votar, ai não, coração. Ainda não estão decididas as moções que vão constar do boletim, mas é quase garantido que a Moção 1 não ficará muito longe do rascunho já tornado público pelo ANMD: "Deverá o Chefe Executivo da RAEM ser eleito por sufrágio universal em 2019? Opção A: Sim; Opção B: Não; Opção C: Abstenção. Vou adiantando desde já que o meu voto será na opção B: não. Fico feliz por poder expressar o que penso da questão do sufrágio directo, e que sorte que a ANMD me tenha dado essa oportunidade.

Agora estarão alguns a pensar: mas então para quê este barulho todo, se não queres o sufrágio directo para a eleição do Chefe do Executivo? Aí está; eu nunca disse que queria. Aliás gostava, mas não quero. Não nestas condições, com este eleitorado, e sem um único nome onde colocaria a cruz no quadrado à frente do seu nome. Ng Kwok Cheong e a malta do Novo Macau quer, sabemos disso, mas este "referendo" não tem como finalidade apenas mostrar quantos querem além deles - para isso faziam antes um abaixo-assinado, que aliás já fizeram por mais que uma vez - mas qual é a recepção da população a esta ideia. E o facto de se ter feito todo este alarido por nada vem provar que Macau não está preparado para uma iniciativa desta natureza, quanto mais para eleger o Chefe do Executivo através do voto directo. Como não me contento em dizer não apenas "porque não", dando a entender que o actual sistema me serve melhor (o que não é de todo verdade) ou que o método de eleição do CE que vigora é o melhor, penso que devo uma justificação para este "não". E de facto não acho que o actual método seja adequado. É bem pensado, mas não serve para Macau, pois o Colégio Eleitoral que no fim escolhe o único candidato que concorre nem sequer representa condignamente o grosso da população do território. Mas se não quero o sufrágio directo, nem quero o actual método, então quero o quê? Que o CE seja escolhido por meia dúzia e com a benção do Governo Central? Nem por isso, mas não é o que acontece agora? Vamos então analisar ponto por ponto este raciocínio.

Vamos recuar até à primeira eleição para o Chefe do Executivo, corria o ano de 1999. Foi a única vez que tivemos duas candidaturas, e com Edmund Ho concorria ainda Stanley Au Cheong Kit, empresário e presidente do Banco Delta Ásia. Por muito respeito que este último mereça - e não é propriamente um modelo de virtude - o seu papel fez-me lembrar o daquelas equipas de basquetebol desconhecidas que jogam contra os Haarlem Globetrotters, durante as suas exibições de malabarismos. Era importante que houvesse uma corrida a dois, quer para testar a eficácia do método, quer para lhe conferir alguma credibilidade, mas nunca subsistiram dúvidas de que Edmund Ho sairia vencedor. Mesmo a campanha e os debates entre ambos pautaram-se pela tranquilidade, sem ataques de parte a parte (normal em política "a doer"), e com Au a mostrar um carácter mais extrovertido, ao contrário de Ho, que primava pela placidez que se exigia na circunstância, com vista à construção de uma "sociedade harmoniosa".

Edmund Ho seria reeleito em 2005, e pela única vez não terá havido uma voz dissonante quanto ao seu excelente desempenho durante o primeiro mandato, ao ponto de se sugerir que se abrisse a porta para um terceiro, tal era o seu ratio de aprovação. Frequentemente elogiado pelo Governo Central, soube lidar com a crise da Pneumonia Atípica (SRAS), resolveu o dossiê da liberalização do jogo, e colhia a simpatia da generalidade da população - até se entende que mais ninguém tenha avançado com uma candidatura. Depois deu-se a falência do método, com Chui Sai On a concorrer sozinho para a sucessão de Edmund Ho, e de novo agora para um segundo mandato, quando a situação justificava uma alternativa, uma voz dissonante, nem que fosse apenas para o Chefe do Executivo ser obrigado a justificar-se, e a compromoter-se no sentido de melhorar o seu desempenho. Fica-se com a sensação que um putativo segundo candidato nunca iria concorrer por si, mas contra Chui Sai On, e portanto contra o sistema, e ninguém se atreve. Se em tempos ia fazia passar uma mensagem de unidade e confiança, agora deixa o CE numa posição embaraçosa. O tal Colégio Eleitoral, cuja composição é pouco representativa da generalidade da população e os seus membros selecionados de forma pouco transparente, vota no único candidato não como manifestação do seu apoio ou da sua aprovação, mas com receio de que votar em branco dê a entender que se está do lado dos críticos. Quem quiser expressar essa opinião precisa de uma base sólida que evite o seu "suicídio político", e aqui estou-me a referir, é lógico, ao deputado Pereira Coutinho - se bem que entendo a sua participação neste colégio um erro, pois renunciar teria mais impacto do que se abster. (A propósito ele hoje fez anos, parabéns para ele).

Perante a flacidez deste método e o desinteresse da opinião pública, acena-se com uma alternativa: o sufrágio directo e universal, com cada residente permanente com capacidade eleitoral a votar na escolha do Chefe do Executivo. Isto não é novo, pois já temos os residentes a votar de quatro em quatro anos para a eleição de uma pequena parte da composição da Assembleia Legislativa - e isto é o que me preocupa. Não há eleição em que no fim fiquemos com a sensação que a maioria do eleitorado votou em consciência e na lista que melhor acha que serve os interesses de Macau. Votaram na lista que melhor serve os seus interesses, isso sim, e caso não se sintam representados por nenhuma delas, não se inibem de vender o seu voto em troca de um "lai-si", um brinde ou uma jantarada. A indiferença de uma boa parte da população pelas coisas da política não é novidade, e tem uma explicação simples. Primeiro impingiram-lhes a ideia de que a política "é uma coisa suja" (um facto, nada a apontar), e que pouco importa em quem vão votar, pois nas questões essenciais a última palavra pertence sempre a Pequim. Sendo assim, porque não obter uma gratificação imediata, do que ficar à espera do dia de S. Nunca à tarde, quando finalmente uma medida qualquer tenha qualquer impacto nas suas vidas?

Tudo bem, isto pode parecer um golpe baixo, garantir o voto de quem não tem opinião formada em troca de um jantar ou de 500 patacas, mas porque é que estes eleitores não são mais espertos que o espertalhão, aceitam os seus mimos e depois na hora de votar põem a cruz onde lhes apetecer? - afinal o voto é secreto. Aí é que está o busilis da questão, e permitam-me ilustrar com um exemplo: uma associação tem nove membros, e dois deles concorrem à presidência, bastando portanto a um deles cinco votos para obter a maioria e ganhar as eleições. Um dos candidatos consegue convencer quatro outros associados a lhe darem o seu apoio, e com o seu próprio voto, isto é suficiente para garantir a eleição. Na hora da verdade, este candidato tem apenas um voto - o seu, lógico - e tem toda a legitimidade para acusar os que diziam apoiá-lo de "traidores", e estes não têm outra opção senão ficar de cabeça baixa a engolir os desabafos. Mas caso tenha dois votos, é-lhe impossível saber quem foram os três putativos apoiantes que mudaram de ideias. Se os quatro garantirem a pés juntos que votaram nele, não tem qualquer forma de saber quem está a dizer a verdade. Em Macau não é assim, pois não sei que tipo de hipnose ou bruxaria foi aqui utilizada, mas muitos dos eleitores que se comprometem com uma das listas, ora porque foram pagos ou lhes foram exercidas pressões, julga que existem meios para que se saiba se cumpriu com o combinado. Não me perguntem porquê, já gastei muita saliva a explicar que não há forma, nem aritmética nem outra qualquer para se saber em quem alguém votou realmente, mas os apologistas desta estranha teoria juram-me a pés juntos que "sim, que há maneiras de saber". Seja como for, enquanto este regabofe persistir, para mim não há condições para sufrágio directo nenhum. Livra!

Mas pronto, para o bem da restante argumentação, digamos que se avançava na mesma com o sufrágio directo, e já em 2019. Agora, em quem ia votar a população de Macau para seu líder? Partimos do prncípio que Pequim não interferia com a escolha dos candidatos, e que no fim era dado aos eleitores a escolher entre dois: um com um programa político, outro com dinheiro - em quem é que as pessoas de Macau votavam? Exacto, penso que não e necessário que eu diga o que toda a gente já está cansada de saber. Não é por maldade ou por ganância, mas mais por ignorância que a mentalidade vigente olha para alguém rico e poderoso como um caso de sucesso, e que deseja partilhar o segredo desse sucesso com a população, caso esta lhe confie a governação. Numa outra perspectiva, esta mais científica, eleger um empresário "é bom para a economia, pois estimula-a", e a economia é o suporte de todo o resto. Pode ser que um empresário rico conheça os caminhos que levam a fortuna, mas também pode ser que esses caminhos sejam ínvios, e que os tenha feito de mão dada com corruptos e elementos ligados ao submundo do crime organizado. É uma ingenuidade pensar-se que alguém rico acorda um dia e diz: "Já sou rico quanto basta. Agora vou-me dedicar a servir a sociedade, retribuindo pelo tanto que ela me ajudou a ganhar". Dá vontade de rir, não dá? Pior ainda se na sua equipa estão outros do mesmo calibre ou piores, e ainda mais ambiciosos. Não digo que isto vá acontecer com toda a certeza, mas o risco é demasiado elevado para se apostar com confiança.

Fazendo ainda outro exercício, este mais concreto: quem estaria interessado em concorrer caso houvesse sufrágio directo para a eleição do proximo CE? Atendendo que é a população quem decide, existe uma forte probabilidade de aparecer alguém que tenha obtido um bom resultado nas eleições para a AL. É preciso não esquecer que vamos ter outras em 2017, mas das últimas o grande vencedor foi sem dúvida Chan Meng Kam, que obteve o maior número de votos e conseguiu três mandatos para a sua lista, um feito inédito. Já se tinha avançado com a possibilidade do patrão da Golden Dragon avançar com uma candidatura para o principal cargo da RAEM num futuro próximo, independentemente do método da eleição. E de facto temos aqui um caso sério; um empresário e "self-made man" que passou de "surpresa" nas eleições de 2005 a figura carismática, tendo realizado uma campanha mais abrangente no último sufrágio, chegando a um eleitorado mais vasto que o seu, que como se sabe é o da comunidade originária de Fujian. E é exactamente aí que reside o senão; terá este candidato o perfil para CE, e conseguirá demarcar-se da componente regional da sua plataforma eleitoral? Será sensato optar por um candidato com fortes ligações ao jogo, quando a diversificação da economia é (ou devia ser) uma das prioridades? E já nos esquecemos aquando da sua primeira eleição para a AL, que recaíram suspeitas de corrupção eleitoral sobre elementos da sua lista, e na altura recusou colaborar nas investigações escudando-se na imunidade como deputado? Tudo factores a ponderar numa decisão desta importância.

Portanto quem seria o candidato ideal? Teria que ser alguém com conhecimentos sobre a realidade do território, de preferência nascido em Macau, com uma retórica convincente mas não demasiado inflamada, que apresentasse soluções, tivesse participação directa na resolução dos problemas de fundo, que escutasse a população e analisasse cada caso atendendo aos diversos pontos de vista, e que tivesse capacidade negocial para lidar com o Governo Central, e garantir que este o apoiava e reiterava a autonomia parcial da RAEM. Agora, dificilmente se encontra alguém com todas estas valências à face do planeta, e em Macau o seu avô ainda está para nascer. E os democratas? Se insistem tanto é porque talvez queiram apresentar eles também um nome. Que nada, pois nem seria possível ambicionar a um candidato que no caso de ser eleito não se poderia sentar à mesma mesa do Governo Central para tratar das questões de Macau. Eles sabe bem disso, e aqui ao avançar com o "referendo", estão a fazer o seu papel, e infelizmente estão-se a substituir ao próprio Executivo nessa função. É preciso ter vistas muito curtas para não entender que apesar de ser improvável que se avance com uma calendarização para o sufrágio directo, este é um tema que nunca pode ser tratado como tabu. Basta olhar para o barril de pólvora que se tornou Hong Kong para ler os sinais: discutir o tema não significa necessariamente considerar a hipótese de levar a ideia para a frente. Cansados de tanta indiferença, os democratas foram em frente com uma medida que pode ser entendida como radical, mas nunca como "ilegal", ao contrário do que alguns sugerem. É um facto que o actual método de eleição do CE consta da Lei Básica, e que não se fala de sufrágio directo, mas também não menos verdade que se deixa uma porta aberta à alteração dos moldes actuais, e mais uma vez remeto para o nº 7 do Anexo I da mesma Lei Básica.

As razões que me levam a votar no "não", caso o "referendo" se realize mesmo, não significam que reprove a iniciativa dos democratas - acho interessante, e só não a louvo porque não é conquistada pacificamente, e assim perde-se um pouco da sua pertinência e utilidade. Nem estou sequer a dar uma mãozinha aos que se opõem, vociferando quase como uns loucos, e estes para mim arruinaram uma boa oportunidade de se discutir um tema oportuno no seio da sociedade civil (na edição do Hoje Macau de hoje vem uma entrevista com um académico onde este diz que em Macau "não existe sociedade civil"; esta seria uma boa oportunidade para lançar as bases no sentido de construir uma). Não me considero o dono da verdade, mas tenho a certeza que algumas das razões que apresento para votar "não" são por demais reconhecidas pelos governantes, e mesmo que seja apenas porque "lhes dá jeito", concordam com elas no essencial. Então porque não apresentar as desvantagens da realização do sufrágio directo, em vez de atirar areia para os olhos da opinião pública com uma interpretação falaciosa da Lei Básica? Teriam feito um melhor serviço ao informar o eleitorado dos seus eventuais riscos, explicar o porquê do método actual não atribuir uma maior importância à opinião dos eleitores, e já agora procurar uma via para que estes se aproximem mais das tomadas de decisão, que participem da coisa pública.

Se me pedissem uma opinião sobre o que fazer depois do "referendo" que tanto os incomoda, fosse eu o "guru" que tanta falta tem feito ao Executivo, que dá a entender estar completamente à deriva, eu diria que pegassem nos resultados e os analisassem, discutissem, tirassem as devidas ilações - fossem eles quais fossem. Dar início a uma guerra sem quartel contra os promotores da iniciativa, acusando-os de ilegalidades que querem tirar como coelhos da cartola, ou chamando-os de traidores e anti-patrióticos já não resulta, lamento muito. Apelar ao amor pela Pátria só surte efeito quando também se encaram os novos desafios que a Pátria tem que enfrentar, e não esquecer que estamos inseridos num mundo globalizado, onde tapar os olhos de quem está a olhar para um elefante não faz o elefante ir embora; antes deixa a pessoa a questionar o que há naquele elefante que não querem que ela veja. Se Chui Sai On tem pela frente mais cinco anos de mandato, seja qual for o desfecho desta polémica do "referendo" dos democratas, não perde nada em dialogar, em debater os prós e contras, em tentar fazer a população perceber o essencial: sabem o que estão a pedir, e estão preparados para as eventuais consequências? Eu vou responder que "não". Mas isto é o que eu penso, e não é prato do dia. E vocês, preferem continuar a discutir futilidades ou andar com isto para a frente?

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