domingo, 18 de maio de 2014
Obrigado, e volte sempre
O Presidente da República Portuguesa, Aníbal Cavaco Silva, terminou hoje uma visita oficial à R.P. China, com uma passagem por Macau, onde chegou ontem, e de onde partiu esta noite de regresso a Portugal. O PR teve oportunidade para se encontrar com personalidades da vida política local, bem como elementos da comunidade portuguesa residente no território, e ao fim da tarde de hoje participou de um jantar oferecido pelo Cônsul-Geral de Portugal na RAEM, Vítor Sereno, aberto a todos os interessados, mediante inscrição prévia, e obedecendo a um "dress code" - nada de especial, e compreende-se que se peça o mínimo de decoro na recepção a um chefe de estado. Não fui ao jantar, como tinha programado, por razões de logística, agenda e disposição. Não vou aqui enumerar as razões, até porque só a mim me dizem respeito, mas vou adiantando que da próxima vez que uma personalidade desta envergadura nos quiser dar a honra da sua visita, que escolha o Inverno, ou pelo menos uma estação mais amena. Suei três camisolas hoje, e arrepiava-me a ideia de usar um fraque debaixo deste vapor dos infernos a que chamam "calor e humidade". Cheguei a temer ter um colapso, pelo santo Buda. Mas permitam-me que deixe isto bem claro, a minha ausência não teve nada a ver com qualquer reserva da minha parte quanto à figura do Prof. Cavaco Silva. Já tinha deixado isso bem claro neste espaço, e aproveito para o reafirmar.
Como mero observador, só posso considerar o périplo de uma semana pelo continente com conclusão em por Macau uma iniciativa louvável da parte do nosso PR. Cavaco Silva, na sua terceira passagem pela grande China demosntrou mais uma vez que existe uma amizade sincera e genuína entre os dois países, perfeitamente compatível com a dimensão de cada um deles, e o significado histórico das relações seculares entre os seus povos. Isto pode parecer um tipo de discurso daqueles charneira, de Introdução às Relações Internacionais, de minuta onde basta preencher os espaços do "onde", "quem" e "quando", mas digo isto com o sentimento de que existe realmente boa vontade entre as diplomacias de Portugal e da China, e não se trata apenas de conversa fiada, ou como se diz por estas bandas, "choi soi", literalmente, "soprar água". Sabendo o que sabemos da China, e que passou por décadas de isolamento e distanciamento da evolução pela qual o mundo passou em áreas importantes, especialmente as que têm a ver com os valores humanistas, e que os levam a tomar por vezes atitudes que nos chocam ou fazer julgamentos de valor escabrosos, Portugal é o parceiro ideal. Podemos comunicar - e sempre tendo em conta que existem sempre diferenças, é lógico - sem a mesma arrogância com que o fazem os ingleses, os franceses, os alemães, e especialmente os norte-americanos, potências que, por serem exactamente isso mesmo, "potências", tratam com a China sempre do ponto de vista da salvaguarda dos seus interesses, colocando o seu interlocutor na resguarda, em vez de lançarem amigavelmente as sementes, e ver se do terreno brota algo que se possa aproveitar. É o tal "chá" de que tanto se fala.
A China e os seus dirigentes têm a consciência plena da importância da língua portuguesa e da sua aprendizagem como língua estrangeira, e justificar este interesse pela dimensão do mercado brasileiro pode ser correcto, mas não deixa de ser demasiado superficial. Reparem como a China tece tantas considerações ao nosso secular regime jurídico, de quão abrangente é, da sua secularidade, da vasta literatura que o suporta, da nossa "praxis", e de como só tem a ganhar em aprender com a nossa experiência. O próprio trato diz tudo; basta recordar como decorreram as negociações da entrega de Hong Kong, num clima de constante animosidade entre a Grã-Bretanha e a China, e de como foi suave a transição de Macau, que tratando-se de uma inevitabilidade, não era necessário, nem recomendável, criar um ambiente de discórdia através da confrontação - e não me estou a referir aqui a aspectos relacionados com o cumprimento de acordos ou do exercício de direitos, pois é evidente que o interesse da China na implementação do tal "segundo sistema" tem como objectivo uma aproximação aos nacionalistas de Taiwan. Esse é o verdadeiro problema que ainda ficou por resolver, mais de sessenta anos depois da implementação do regime vigente, e que tem impedido uma fixação mais sólida do mesmo.
Agora vamos um pouco mais longe, recuando no tempo: como é que chegámos a Macau e como fomos por aqui ficando? Busquem as razões históricas quem quiserem, socorram-se da documentação que acharem necessária, mas não foi certamente a envenenar os chineses, como fizeram os britânicos, nem a aproveitar-se das divisões internas de um país retalhado para entrar pelo seu território chinês, como fizeram os alemães e os franceses. Foi através do estabelecimento de um entreposto comercial, com a fixação de uma posição fortificada onde antes só existiam pedras. As fortalezas que os turistas vêm aqui fotografar não serviam para intimidar alguém, ou impôr a nossa presença através da força. É certo que tinham um propósito militar, é certo, mas funcionavam também como uma espécie de "centro de serviços", de referência para quem quisesse cá vir - por bem, é claro. As igrejas não foram apenas uma forma de impôr uma fé onde ninguém a tinha pedido. Servia também como escola, onde se exercia a alfabetização, o socorro aos mais desfavorecidos, aos orfãos, às viúvas de guerra, e o próprio conceito de misericórdia, e aproveito para recordar que a Santa Casa da Misericórdia de Macau é a instituição mais antiga desta natureza em toda a região, ainda não cabe no entendimento de grande parte destas pessoas, desta cultura. A imposição da ordem pública, a organização administrativa e judiciária, as garantias deixadas aos portugueses - cuja definição foi por demais abrangente - foram todas iniciativas de boa vontade da parte dos "usurpadores" deste pequeno pedaço do território chinês. Não viemos sacar e depois virar as costas, deixando-os com as calças na mão, passo a expressão. Agora se isto ficou bem ou mal feito, se pecou por defeito, ou se esteve revestido de vícios, terá sido certamente por falha humana, e não por serem preceitos inadequados ou impraticáveis.
Troquei algumas impressões com colegas chineses, de nacionalidade portuguesa no entanto, e nenhum deles tinha conhecimento da visita do nosso PR, ou sequer de quem se tratava. Isto pode parecer um pouco ingénuo da minha parte, ou até uma subversão, mas é prova de que nada lhes foi imposto; há chineses com nacionalidade portuguesa, e outros que não tendo documento de viagem de Portugal interessaram-se pela visita de Cavaco Silva. Nunca nos passaria pela cabeça cometer a arrogância de confrontar um chinês de Macau que se afirme orgulhosamente como um chinês, ou até um "patriota", e exigir-lhe o passaporte com o pretexto de "já que é assim". Os direito são inerentes e inalianáveis, e não interessa se as pessoas os consideram importantes, ou se julgam que não vão precisar de os exercer. Nasceram com eles, e mesmo que deles abdiquem, têm sempre uma alternativa. Este é, a meu ver, um grande defeito da nossa actual administração: trata os direitos como um privilégio, e chega a pedir que se faça "prova" da sua legitimidade ou que se apresente uma razão válida para fazer uso deles. Foi um tanto ou quanto bizarro que o Prof. Cavaco Silva tenha abordado uma escuteira portuguesa, tão portuguesa quanto ele, mesmo etnicamente, e tenha falado com ela pausadamente e separando as sílabas como se ela fosse alguma indígena. Não o censuro por isso, nem penso que tenha sido por vontade dele que chegou uma hora atrasado à recepção desta noite. É assim que funcionamos, enfim, não somos perfeitos.
O que parece o mais evidente desta visita é que Macau não estaria nos planos, ou não seria uma prioridade, mas aconteceu, e é vista como um brinde: "pronto, já que o PR vai à China, passa por Macau, vai ver a Escola Portuguesa e a Gruta Camões, e aproveita para dar boleia ao Rocha Vieira e ao Monjardino". Seria presunção a mais considerar que um chefe de estado passaria uma semana fora do país em visita oficial com Macau como finalidade. Mas quando falamos da China, de relações económicas, que realisticamente são as que interessam, e nem o restante se concretiza sem essas como suporte, Macau é a nossa "pérola". Foi o carimbo que deixámos na China, uma marca indelével, e até hoje ainda não encontrei ninguém que despreze a importância que foi Macau para o nosso passado longínquo, recente, e até para o presente, e em última instância (mais vale tarde que nunca) para o futuro. Que critiquem Cavaco pelo cavaquismo, aceita-se e é louvável que exista uma democracia funcional onde isso é possível. Mas quem passou por cá ontem e hoje foi o representante de Portugal, da "mãe de Macau", como dizia a canção dos Thunders. O cavaquismo aqui passou ao lado, meus amigos. Obrigado pela visita Prof. Cavaco Silva, e já que está de saída de Belém num prazo de dois anos, volte sempre apenas como um simples civil, e espero que tenha feito "escola", e que os seus sucessores lhe sigam o exemplo.
Sem comentários:
Enviar um comentário