sexta-feira, 23 de maio de 2014

A caminho do Brasil: a "fúria" tarda, mas não falha


A selecção de futebol de Espanha, também conhecida por "la roja" (a vermelha), "la furia" ou ainda "la furia roja" (aquilo é que é imaginação) foi tida desde os primórdios dos mundiais de futebol como uma crónica candidata ao título. Representante máxima do estilo latino, ninguém arrisca riscá-la da lista dos favoritos em cada torneio. Sempre com nomes que lhe dão argumentos de sobra para ser uma grande potência, foi somando desilusões atrás de desilusões, e apenas num passado recente deu aos seus adeptos as alegrias que eles tão pacientemente aguardaram. Vamos então olhar para o registo de "nuestros hermanos" em campeonatos do mundo de futebol.


Ricardo Zamora, o emblemático e controverso guardiã da "roja" do pré-guerra.

Depois de declinar o convite para o primeiro mundial, disputado em 1930 no Uruguai, a Espanha apresentou-se quatro anos depois em Itália determinada em mostrar a tal "fúria", depois se ter qualificado numa eliminatória e duas mãos contra Portugal, com a célebre vitóroa por 9-0 em Madrid, e um mais moderados 2-1 em Lisboa. A equipa era construída à volta da sua maior estrela, o guardião Ricardo Zamora, conhecido por "El Divino". Considerado praticamente imbatível, numa época em que era muito mais fácil marcar golos, dizia-se que os avançados chegavam a sentir as pernas tremer quando se aproximavam da sua baliza. Personagem controverso, nascido na Catalunha mas lealista a Madrid e a Franco, adorava beber conhaque, e fumava três maços por dia. No torneio olímpico de futebol de 1920, em Antuérpia, foi expulso no jogo de atribuição da medalha de prata, contra a Itália, por ter dado um murro num adversário. De regresso a Espanha foi detido pelas autoridades por contrabando de charutos cubanos. Neste mundial, o único que disputou, já com 33 anos, ajudou a Espanha a bater o Brasil por 3-1 na primeira ronda, e nos quartos-de-final complicou a vida à futura campeã mundial e equipa da casa, a Itália. Depois de um primeiro encontro que terminaria empatado a uma bola, seria preciso um jogo de desempate, onde Giuseppe Meazza decidiu tudo, batendo Zamora uma única vez aos 11 minutos. Em 1938 a Guerra Civil Espanhola impediu a selecção espanhola de participar no mundial da França, depois vinham os 12 anos de interrupção derivados do conflito mundial de 1939-45.


Em 1950 volta o campeonato do mundo, e volta a Espanha, que no Brasil viria a obter aquela que foi durante 60 anos a sua melhor classificação de sempre. Mais uma vez Portugal foi vítima da "furia" na qualificação, com 5-1 em Madrid e 2-2 em Lisboa - um progresso em relação a 1934, mesmo assim. A grande estrela da equipa era o avançado basco Telmo Zarraonandia, ou simplesmente "Zarra", que na sua carreira pelo Athletic Bilbao entre 1940 e 1955 apontou 252 golos em 277 jogos. Integrada no Grupo 2, com a Inglaterra, Chile e Estados Unidos, os ingleses eram tidos com o principal obstáculo à conquista do 1º lugar, o único que daria acesso à "poule" final. No primeiro desafio, vitória por 3-1 contra os Estados Unidos, enquanto os ingleses batiam o Chile por 2-0. No segundo encontro nova vitória contra os chilenos, já com o adversário seguinte no pensamento, mas de Belo Horizonte chegava a surpresa: a Inglaterra tinha perdido surpreendentemente com os norte-americanos, e tudo ficaria mais fácil. E bastou apenas um único golo de Zarra, que marcou em todos os encontros desta fase, para vencer os ingleses e terminar o grupo só com vitórias. Na "poule" final, a tal que terminaria com o "Maracanaço", a estreia foi exactamente contra os futuros campeões mundiais, o Uruguai, e o empate a duas bolas não seria um mau resultado, em retrospectiva. O descalabro veio a seguir contra a equipa da casa, o Brasil, que "sambou" em frente aos espanhóis e venceu por 6-1, devolvendo a orgulhosa "roja" ao mundo real. Na última partida, já desmotivada, a Espanha perdia por 3-1 com a Suécia, e terminaria num positivo 4º lugar.


A Espanha de 1958: sem fúria e sem glória.

A partir daqui foi a miséria, e pobres dos espanhóis que nasceram, cresceram, viveram e morreram durante os tempos da ditadura franquista, e tinham o futebol como paixão. A renovação levada a cabo depois do mundial levou a uma série de mudanças, e a demora em acertar com uma equipa tipo fez-lhes falhar os mundiais de 1954 e 1958, mas podem-se queixar da falta de sorte. Em 54 apanharam a Turquia na fase de qualificação, golearam os turcos por 4-1 em Madrid, mas a derrota por 0-1 em Istambul obrigou-os a um desempate em Roma, e depois de um empate a duas bolas, seriam eliminados pelo método de moeda ao ar. Em 58 ficariam no grupo da Escócia e da Suíça, e apesar de terem perdido por 2-4 em Glasgow, venciam os britânicos por 4-1 em Madrid, mas seriam traídos pela diferença pontual: a Escócia vencia os dois jogos com a Suíça, enquanto a Espanha empatava em casa a dois golos com os helvéticos. Situação embaraçosa, uma vez que nesse ano de 1958 o Real Madrid acabava de se sagrar tri-campeão europeu, e a "roja" não ia ao mundial da Suécia. Os adeptos espanhóis não se davam por satisfeitos, e não perdoavam qualquer deslize. Assim, entre 1950 e 1960, a selecção teve 15 (quinze) treinadores diferentes, sem que nenhum convencesse a "afición".


Os anos 60 seriam a era do técnico italo-argentina Helenio Herrera, que devolveria alguma dignidade à "roja", conseguindo a qualificação para dois mundiais, e pelo meio um título europeu. Em 1962 a Espanha regressa finalmente aos mundiais, no Chile, e leva na comitiva duas "estrelas" que haviam brilhado por outras constelações: Alfredo Di Stéfano, argentino naturalizado espanhol, e Ferenc Puskas, húngaro que havia a sido a figura do seu país natal oito anos antes na Suíça, perdendo o título mundial para a Alemanha Ocidental no famos "milagre de Berna" (v. peça sobre a Alemanha). Os avançados Francisco Gento, do Real Madrid, e Luis Suárez, o único "emigrante", que alinhava no Inter de Milão, eram outros trunfos da Espanha para recuperar no Chile a dignidade perdida. A expectativa era grande, mas o resultado seria mais uma vez decepcionante; a "fúria" estava ali toda, mas faltou cabeça fria. Depois de uma derrota por 1-0 com a Checoslováquia, os espanhóis venciam o México também pela margem mínima, mas na "negra" contra o Brasil, sofrem às mãos de Amarildo, substituto de Pelé, lesionado no jogo contra os checos, e perdem por 2-1 com dois golos do "vice-rei". Herrera sai, e parte para o "seu" Inter de Milão, onde venceria mais tarde a Taça dos Campeões.


Em 1964 a Espanha vence o Europeu com José Villalonga, um treinador decidido em transportar para a selecção o domínio espanhol ao nível de clubes, e é com esse espírito que partem para Inglaterra em 66 com nomes como Gento, Suárez, Pirri, Gallego, Jose Ufarte, Fusté, Amancio e outros, mas as coisas voltam a correr mal, e a "fúria" não impressiona argentinos e alemães, depois de uma derrota 1-2 com a Argentina na ronda inicial, vem uma vitória contra uma Suíça desinspirada, também por 2-1, e a guia de marcha chega pela mão da Alemanha Ocidental, e para não variar, pelo mesmo resultado. Foi o último estertor de uma geração que não encontraria substituto, pois a Espanha não se voltaria a qualificar até 1978, falhando os mundiais do México em 70, e Alemanha em 74.


Ladislao Kubala, homem forte da "roja" nos anos 70.

É na Argentina que "roja" volta a dizer presente, e a partir daqui nunca mais falharia a fase final de um mundial. Ladislao Kubala, húngaro naturalizado espanhol que vinha tomando conta da selecção desde 1969 (pode-se dizer que "quem espera sempre alcança") leva para a América do Sul uma equipa madura, com uma média de idades a rondar os 28 anos, e onde pontificavam Pirri, o único "sobrevivente" de 66 agora com 33 anos, Carles Rexach, Dani, Quini, Juanito e Miguel Ángel, e alguma juventude que nos anos 80 deixaria algumas boas impressões, casos de Santillana, Marcelino ou o guardião Arconada. A "fúria" é mais uma vez tímida, e fica novamente pela fase de grupos, muito por culpa da derrota no jogo inicial frente à Áustria por 1-2. Depois do empate a zero frente ao Brasil, era preciso esperar que a "canarinha" não vencesse os austríacos, mas isso não aconteceu, e a vitória por 1-0 frente à Suécia de pouco adiantou. Valeu para "afinar a orquestra" para 1982, onde a Espanha seria a anfitriã.


Com José Santamaria, antiga glória do Real Madrid pentacampeão europeu no banco, a Espanha prepara com afinco a organização do mundial pela primeira vez. Aqui surgem nomes que dizem algo à minha geração: José António Camacho, Rafael Gordillo, Ricardo Gallego, López Ufarte ou José Alexanko. Apesar do grupo acessível, a passagem à segunda fase é feita com muita dificuldade, e na partida inaugural o empate a um golo frente à estreante selecção da Honduras não augurava nada por aí além - seria preciso um "penalty" de López Ufarte aos 65 minutos para evitar uma vergonha maior. Contra a Jugoslávia a "roja" volta a entrar a perder, mas dá a reviravolta com um "penalty" de Juanito e um golo de Saura. A vitória no grupo fica depois comprometida após derrota com a surpreendente Irlanda do Norte, mas o 2º lugar fica garantido na diferença de golos com os jugoslavos. Na segunda fase as carências ficam expostas após a derrota por 1-2 frente a Alemanha, e na despedida um empate a zero contra a Inglaterra deixa o primeiro mundial em casa a saber a muito pouco.


Quatro anos depois, mundial do México, e o entusiasmo da "roja" desponta com a geração dos anos 80, onde se destacou Emilio Butragueño, que o treinador Miguel Muñoz leva para a América Central juntamente com outros jovens talentosos, como Michel, Julio Salinas, Chendo, Eloy, e um gaurda-redes que fazia lembrar Zamora: Andoni Zubizarreta. O Real Madrid tinha vindo de duas vitórias consecutivas na Taça UEFA, e a própria Espanha havia sido derrotada na final do Euro 84 frente à França. A derrota com o Brasil no jogo inaugural com um golo de Sócrates é um mal menor, pois a seguir a "furia" cai toda sobre a Irlanda do Norte, e vinga-se de 82 com uma vitória por 2-1. Os 3-0 contra a Argélia foram apenas um aperitivo para os oitavos, onde a Dinamarca prova da "furia" servida por Butragueño, que marca quatro golos da goleada por 5-1. Mas as munições ficaram gastas, e contra a Bélgica a derrota aparece no desempate nas grandes penalidades, onde Eloy é o único a falhar a série de cinco remates para cada lado. Pode-se queixar do azar, a Espanha.


Em 1990, no mundial mais incaracterístico e defensivo de sempre, a Espanha de Luis Suarez aparecia com um dos estilos mais atractivos, e jogando um futebol de pendor ofensivo - isto independentemente do empate a zero na partida inicial frente a um Uruguai que distribuia muita "fruta" pelos adversários. Michel esteve especialmente inspirado na vitória frente à Coreia do Sul, apontando os três golos da vitória por 3-1, e o Grupo D ficava ganho com uma "vingança" sobre a Bélgica, com nova vitória por 2-1. A Jugoslávia era o adversário dos oitavos-de-final, e Dragan Stojkovic foi a "besta negra" que mandou a fúria mais cedo para casa, marcando aos 78 e aos três minutos do prolongamento, necessário após o empate por Salinas aos 83. Outra vez bonito, mas não chegava para ir mais longe. A Espanha continuava uma equipa muito "romântica".


Em 94 o sonho era americano, e Javier Clemente levava para os Estados Unidos aquela que era talvez a melhor equipa desde os anos 60. Nomes como Guardiola, Luis Enrique, Sergi Barjuan, Fernando Hierro, Abelardo ou Caminero eram o sonho de qualquer treinador, na primeira fase a Espanha parecia querer "despachar" o assunto e ombrear com os grandes nas fases mais avançadas do torneio: empates a dois golos com a Coreia do Sul e a um golo com a Alemanha, vitória 3-1 sobre a Bolívia, e já nos oitavos a Suíça seria "despachada" com esclarecedores 3-0. Nos quartos de final o teste que a "furia" necessitava, a Itália, e mais uma vez a maior matreirice da "azzurra" veio ao de cima; Dino Baggio adiantava os italianos aos 25 minutos, Caminero empatava aos 58, e a Espanha tinha o adversário encostado às redes. Só que aqui se via o que faltava à "roja": "kiiling instinct" - Salinas falha um golo quase certo aos 87 minutos, e na jogada seguinte Roberto Baggio faz o 2-1, e "adios muchachos".


Javier Clemente sairia de França com um grande "melão".

Em 98 voltava a reinar o optimismo, com o jovem Raul, do Real Madrid como coqueluche, e Clemente no banco, prometendo não cometer os mesmos erros que nos Estados Unidos. Mas o treinador que tinha levado o Athletic a ganhar dois campeonatos nos anos 80 não contava com o excesso de confiança inicial, que custou uma embaraços derrota frente à Nigéria por 3-2, e o nulo frente ao Paraguai deixava a "roja" a depender de terceiros. E os "terceiros" não apareceram, pois graças à generosidade nigeriana, que cedeu frente aos paraguaios, de nada valeu a goleada por 6-1 frente à Bulgária. A Espanha tinha acordado tarde, e perdido do comboio dos oitavos. Seria a primeira vez que acontecia desde 1978.


Chega o "patrão" Jose Antonio Camacho, conhecido pelas capacidades de motivação, e a Espanha volta a surgir como uma equipa de respeito no mundial da Coreia e do Japão, em 2002. E o treinador prometia trabalho e suor, e cumpria, como se podia ver pela camisa constantemente molhada na zona das axilas, e uma primeira fase 100% vitoriosa, com 3-1 sobre Eslovénia e Paraguai, e 3-2 sobre a África do Sul. Não era um grupo complicado por aí além, há que dizê-lo, e o primeiro "osso duro de roer" foi a Rep. Irlanda, que só cairia nos "penalties". Camacho pode-se queixar da falta de sorte, pois após o golo de Morientes aos 8 minutos, a Espanha já contava com a passagem quando Robbie Keane empatou nos descontos de penalty. Nos oito finais, a contrariedade viria na forma do homem do apito. Dominante frente à Coreia do Sul em Gwangju, o nulo persistia durante os 120 minutos, após dois golos mal anulados aos espanhóis nos 90 regulamentares. Mais "penalties", e desta vez a sorte sorriu aos asiáticos. Mais uma vez fica a sensação de que a "furia" podia ir mais longe.


Mais do mesmo em 2006 na Alemanha, com Luis Aragonés a liderar um grupo que viria mais tarde a compor o "esqueleto" da equipa que seria campeã do mundo quatro anos mais tarde, em África. O veterano treinador, desaparecido em 1 de Fevereiro último aos 75 anos, levava consigo caras novas como David Villa, Reyes, Xavi, Iniesta, Fernando Torres ou Fabregas - os nomes dizem alguma coisa? O capitão Raúl fazia o seu último torneio internacional, e viria a perder a "festa" toda que vinha a seguir. Em terras alemãs a primeira fase decorreu com normalidade, e a Espanha voltou a impôr respeito: 4-0 c/Ucrânia, 3-1 c/Tunísia e 1-0 c/Arábia Saudita. Mas se na Coreia a culpa foi do árbitro, aqui foi de Zidane, que nos oitavos-de-final faz uma exibição de sonho e leva a França à vitória por 3-1. Paciência, "hombre".


Dois anos depois, em 2008, Aragonés leva a "furia" ao segundo título europeu, e sai pela porta grande. Pela mesma porta entraria Vicente del Bosque, campeão europeu com o Real Madrid em 2000 e 2002, com o objectivo de não desiludir na África do Sul da mesma forma que a "roja" campeã europeia em 64 desiludiu dois anos depois em Inglaterra. Os "fantasmas" de 66 começaram a pairar no primeiro jogo, com a derrota por 0-1 frente à Suíça, mas vitórias por 2-0 contra as Honduras e 2-1 contra o Chile valiam o primeiro lugar do Grupo H. Nos oitavos dá-se finalmente o primeiro duelo ibérico, o Espanha-Portugal, com a vitória a sorrir aos espanhóis com um golo de David Villa. O mesmo Villa voltaria a ser "matador" nos quartos-de-final frente ao Paraguai, e o defesa Carles Puyol faria o único golo da vitória contra a Alemanha nas meias-finais. A eficácia substituia o "romantismo" de outros mundiais, e a Espanha estava finalmente numa final. O adversário era a Holanda, que queria fazer da terceira final a que seria finalmente vitoriosa, mas depois de um jogo "moderno", com 0-0 ao fim dos 90 minutos, Iniesta marcava a quatro minutos do final do prolongamento o golo que deixava o mundo rendido. Olé! A Espanha voltaria a vencer o Europeu em 2012, mas seria goleada na Taça dos Confederações frente ao Brasil, no ano passado, e deixava a "afición" mais cautelosa para o mundial deste verão, exactamente no Brasil. Vamos ver se Del Bosque consegue trazer novamente a "furia" à "roja".

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