sexta-feira, 25 de abril de 2014

A moral dos murais


Portugal, 25 de Abril de 1974. Uma clique de militares deescontentes com a Guerra Colonial e com a rigidez do regime do Estado Novo, enfraquecido pela morte de Salazar quatro anos antes e pela débil liderança do seu sucessor Marcello Caetano, resolve dar um golpe de estado, restaurando (ou inaugurando?) uma democracia multi-partidária em Portugal, acabando com a polícia política, a ditadura, e dando início ao processo de descolonização que implicaria o fim da guerra nas então províncias ultramarinas. Sem saberem muito bem o que o amanhã lhes esperava, os capitães de Abril, de orientação política aleatória - e isto para lhes dar algum crédito, claro - tomaram o poder, deixando-o nas mãos do então general António de Spínola, para que não caisse na rua, mas com toda a certeza sabiam que seria inevitável o surgimento de movimentos extremistas, nomeadamente de esquerda, que pouco dignificariam os ideais democráticos em que assentava a revolução, e que viriam a atingir o seu auge durante um período que ficou conhecido por Processo Revolucionário em Curso, ou PREC.


Sendo 40 anos uma data redonda, é normal que se tenha dado mais destaque ao aniversário desta efeméride, e em Macau não fomos excepção, com os três jornais diários em língua portuguesa a darem destaque à data, assim como o canal português da Rádio Macau (que esteve muito bem, parabéns). Agora puxando um pouco a brasa à minha sardinha, gostaria de destacar o Hoje Macau, que publicou uma edição que deixaria comovidos os mais aficionados abrilistas, repleta de vários motivos de interesse. A começar pelo sentido editorial do director Carlos Morais José, mais extenso que o habitual, onde o autor questiona a aplicação prática aos dias de hoje dos valores que mais alto se levantaram há exactamente 40 anos neste dia. Compreendo a mensagem meu caro, mas permita-me que lhe faça dois reparos, um técnico, outro ideológico. Primeiro o Cavaquistão a que se refere não era propriamente uma época, mas sim a designação de uma parte do territóro nacional, compreendida entre o Alto Douro e Trás-os-Montes e a Beira Interior onde o PSD de Cavaco Silva obteve as suas vitórias eleitorais mais esclarecedores (isto sem falar da Região Autónoma da Madeira, claro). A questão ideológica prende-se exactamente com a validade da própria revolução, nomeadamente o que fizemos dela. É uma pena que a nossa democracia sofra hoje dos mesmos vícios que estiveram na origem da queda do regime anterior, mas isso não corta as pernas aos autores da Revolução; se nos entregaram esta oportunidade de mão beijada e não a soubemos aproveitar, que culpa têm eles? Mas essas são contas de um rosário que ficarão para outra missa.


A propósito dos excessos que referi no primeiro parágrafo deste artigo, gostaria de chamar a atenção para o artigo de Arnaldo Gonçalves (link ainda não disponível), onde o autor fala do "destapar de uma panela de pressão", onde o povo português "cozeu" durante quase cinco décadas, privado de liberdades, de direitos, e já numa última fase a ver os seus jovens mandados para uma guerra sem nexo, baseada em princípios opostos aos estabelecidos pelas organizações internacionais das nações, que iam no sentido de atribuir a indpendência às antigas colónias das principais potências europeias. Contra o fascismo, a autocracia e a política caduca do "orgulhosamente sós" resistiram sempre as forças de esquerda, e no caso português, o do Partido Comunista, remetido à clandestinidade. Foi apenas natural que após a conquista da liberdade, o PCP tenha exigido a sua quota de protagonismo na nova ordem agora estabelecida, com resultados que poderiam ter sido desastrosos, e que culminariam no contra-golpe de 25 de Novembro de 1975, como muitos temos conhecimento. Num outro patamar destes excessos da esquerda estava a extrema-esquerda, que se opunha não só à direita conservadora, mas também ao PCP, enfim, a toda a gente. A expressão máxima desta esquerda era o MRPP - Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado, um nome forte. De inspiração maoista, aliou-se ao PCTP (Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses), e depois do 25/4, um dos seus principais instrumentos de propaganda foram os murais, pinturas de muros com motivos revolucionários.


O Hoje Macau lembrou-se de homenagear esta forma de "arte" que proliferou até meados dos anos 80, e diga-se em abono da verdade, deu uma nova vida a algumas paredes cinzentonas que pediam um pouco de colorido, ilustrando cada uma das notícias da edição de hoje com um destes murais. Confesso que eu próprio, desde a minha tenra idade durante as minhas visitas a Lisboa, apreciei a cor e as linhas destes pintores anónimos, jovens idealistas que se exprimiam em nome do seu ideal - MRPP chegou a querer dizer "Meninos Rabinos Pintam Paredes". Depois foi a descida à terra, em boa hora, e esta "arte urbana" passou a ser considerada uma forma de vandalismo. Como registo de um passado recente de que não nos devemos envergonhar (ou orgulhar...), é sempre agradável olhar para este "fait-divers" do nosso lado da História, e chegar a esta conclusão: nota 10 para o artista, nota zero para os ideiais. É que o negro da prática que significaria esta "ditadura do proletariado" destoava da cor dos murais que apelavam a essa utopia.







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