quarta-feira, 26 de março de 2014
O senhor do peixe dourado
Desta vez um pouco mais atrasado que o habitual, aqui está o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. De quinta-feira passado, lá está. Tenham uma óptima continuação de semana.
Há alguns anos existia nas ruas de Macau e Hong Kong um tipo de vendedor-ambulante, normalmente um homem de meia-idade ou mais velho, que vendia peixes dourados dentro de um pequeno saco de plástico com água, conhecido por “senhor do peixe dourado”, ou “kam yu lou” (金魚老). Alguns destes comerciantes estiveram envolvidos em casos de abuso de menores nos anos 80, por aliciamento de estudantes menores, meninas a quem acenavam com os peixinhos, prometiam descontos, e depois levavam para casa, ou para um qualquer vão de escada, para satisfazer os seus intentos malévolos. Histórias arrepiantes, de deixar os cabelos em pé. Estes “kam yu lou” eram os pederastas de então, termo que surgiu antes de “pedófilos” para designar os adultos que mantinham práticas sexuais com menores. Desta forma o “kam yu lou”, ou “senhor do peixe dourado”, passou a designar na generalidade o indivíduo que seduz os pequenotes, que lhes faz promessas, que os alicia.
Hoje não se vêm tantos vendedores de peixe dourado – pelo menos na rua – mas o que não falta por aí são os “kam yu lou”, sempre com o proverbial peixinho, seja na forma de emprego, promoção e outros rebuçados, ansiosos por ferrar o dente matreiro e velhaco em carne fresquinha. Os que mais me divertem são aqueles que não vendendo nada, ou não tendo qualquer qualidade de que possam orgulhar (e não, claro que a pederastia não é uma “qualidade”), usam a única coisa que têm, a idade, ou segundo eles, a “experiência”, para chamar a si a atenção de vítimas de pele macia e a cheirar a leite. Dão conselhos às suas vítimas, do tipo “cuidado com quem te metes”, ou “não confies em alguém com tanta facilidade” e ainda “olha que Macau é perigoso”. No fundo o que querem dizer é “não confies em ninguém a não ser em mim, e quando tiveres comichão vem ter comigo”. Alguns deles têm mais um ou dois meses de Macau que a sua “protegida” (ou “protegido”, dependendo da variante), mas acham que conhecem o território como a palma da mão, todo o tipo de fauna, todos os truques e os inúmeros perigos.
Pessoalmente não considero que Macau seja um lugar perigoso. Uma das razões que me fez ficar por cá foi poder andar em qualquer rua, travessa, pátio ou beco a qualquer hora do dia ou da noite sem ser assaltado, agredido ou violentado. Em Portugal há assaltos a ocorrer em plena luz do dia a hora de ponta no centro de Lisboa, e toda a gente finge que não vê. Em Macau saio de casa e volto sempre com a carteira intacta, com excepção, é claro, do uso que lhe dou para as minhas próprias despesas. É claro que é preciso ter os cuidados básicos: não aceitar boleia de estranhos, doces de desconhecidos, atravessar na passadeira, usar o preservativo quando se vai à sauna, enfim, é senso-comum. Mas perigoso no sentido mais restrito da palavra, Macau não é, com toda a certeza.
Sendo para muita gente apenas um local de passagem, é natural que exista por aí muito “artista” que procura facturar à custa da ingenuidade alheia, ora em busca de dinheiro, prazeres furtivos, ou apenas porque sim, porque é da sua natureza, porque é “maluco”. Em Macau há “malucos” a dar com um pau, felizmente poucos deles referenciados como perigosos. Desde a abertura das fronteiras ao milagre dos vistos individuais, têm-se multiplicado os charlatães, os vendedores de bênçãos, os carteiristas, os viciados da jogatina, mas nada que chegue para encher duas páginas de um jornal diário com notícias. Macau já foi mais seguro, é verdade, mas continua seguro q.b. – pelo menos para os meus padrões, que são os que me interessam. Neste departamento, não trocava Macau por qualquer outro país ou território da região, e mais além.
Os “kam yu lou”, os tipos que dão a opinião ou fazem o comentário, crítica ou remoque que ninguém pediu, servem normalmente para proteger os inocentes de outros inocentes, mas raramente os livram dos perigos a sério, que por vezes chegam de onde menos se espera. Para fintar este moderno vendedor de peixinhos tropicais, basta ser discreto, educado, de poucas palavras e gestos pouco largos. Os senhores do peixe dourado notam sobretudo aqueles que se aproximam da sua pinta, os janotas, os bem falantes, os gingões, e sentem a ameaça dos mais novos, a próxima geração dos “kam yu lou” desta terra. Alguns aposentam-se, casam com uma TNR do sudeste asiático vinte ou trinta anos mais nova que eles, e logo são substituídos por uma nova leva de tipos corcundas, carecas, feiosos, com mau hálito e chulé, sempre dispostos a ajudar as novatas e aliciá-las com os “peixes dourados” do dinheiro e do sucesso. “Conheceste um rapaz? Olha, cuidado…ainda não disseste qual rapaz? Não interessa. Cuidado…”
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