quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014
Qualidade devida
Se os leitores repararam, estes últimos dois ou três dias têm sido parcos em postagens aqui no Bairo do Oriente (o artigo desta semana do Hoje Macau estava inicialmente programado para terça-feira no blogue), e isso deve-se à condição debilitada do seu autor, este vosso humilde servo. Não sei se é por culpa do frio, que tem cortado que nem uma faca e com chuva à mistura, ou das horas de sono que tenho em dívida com o João Pestana, mas de uma coisa tenho a certeza: a idade não perdoa. E assim sendo, por muito que tentemos evitar, é preciso de quando em vez fazer a necessária revisão, e depois de dois dias a pegar mal, o bólide resolveu "afogar-se", e foi preciso recorrer ao "mecânico".
Consulta previamente marcada no Tap Seac, onde tenho a sorte de ter alguém conhecido, medicação, atestado medico e upa, upa, ala para casa ficar dois dias de molho, nada senão sopas e descanso. O meu estado de saúde digamos, "abananado", na falta de uma palavra melhor, deixou as baterias do meu famoso sentido de observação no mínimo, mas mesmo assim não pude deixar de reparar no ambiente que me rodeava naquele centro de saúde, alguns minutos depois das nove da manhã. A maioria dos utentes eram idosos, claro (e para lá caminho a passos largos, aparentemente), e num espaço que a olho nu depreendo que não teria mais de 80 m2, estavam dezenas deles; um sentados à espera de consulta, outros na fila para as análises, outros ainda à espera de ver aviado o receituário medico. Foi nessa última que esperei cerca de 10 minutos pelas "pastilhas", e posso-me dar por satisfeito, pois era das três a menos má.
Enquanto esperava que me aviassem os remédios (e vejam como isto soa a um cidadão sénior), detinha-me a olhar para quem esperava por consulta, nos seus semblantes carregados. Uns pareciam já habituados, profissionais da recauchutagem da terceira idade. Sós, de braços cruzados, pescoço ao alto e olhar em frente, como quem está a assistir a um ecrã de televisão que não está lá. Outros, especialmente as mulheres, conversavam uns com os outros. E do que falariam eles? Dos seus males, muito possivelmnente, do que mais? Alguns já se devem conhecer de outras consultas, cada um com o seu caso crónico. Enquanto que na América muitos dos aposentados usufruem da reforma em Miami, em Macau o centro de saúde é a "praia" dos velhos. O alinhamento para a sala das colheitas mais parecia a inspecção da tropa - não fui à inspecção, mas deve ser qualquer coisa assim.
Já há alguns anos foi tirar sangue para análise no Centro Hospitalar Conde S. Januário, onde me disseram para aparecer pelas 8:30 "em jejum". E pontual como sempre, lá estava eu às 8:27, sempre com a cortesia de esperar pelos outros em vez de deixar os outros a esperar por mim. Só que - ingenuidade a minha - chego à sala onde se realiza a colheita, e estão lá sentadas umas 20 ou 30 pessoas. Alguém me diz para tirar um número, e "esperar pela minha vez". Não me recordo exactamente que número era esse, mas posso garantir que era o dobro de 30 e mais qualquer coisinha. E eu a pensar que tinha exclusividade, e que ia estar ali alguém de propósito para me retirar sangue às 8:30. É um pouco como aqueles "pop-ups" que nos dizem "Parabéns! Você é o nosso visitante um milhão!" - sim, nós e mais outro milhão, de onde se espera que caia na conversa pelo menos uma mão cheia de patetas.
E de ano para ano a situação piora. São cada vez mais idosos e mais doentes, cada vez menos profisssionais de saúde, e cada vez menor a capacidade dos equipamentos em dar resposta às necessidades. Numa cidade onde o dinheiro como que chove do céu, e podíamos ter um médico formado em Harvard, uma enfermeira russa e uma massagista tailandesa para cada doente, andamos com falta de profissionais, em discussões fúteis como se os enfermeiros podem ser portugueses ou não, se o equipamento deve ser vermelho, azul ou roxo, e a desinvestir no público em benefício do privado. . Quem quiser exclusividade - como ter, de facto, alguém a tirar o cu da cama mais cedo para lhe tirar sangue - tem que pagar, e mesmo assim o serviço fica muito aquém de outros países e territórios da região. Mesmo o Hospital Kiang Wu, o tal onde desaguam os afluentes da "nota" que correm em Macau, começa a não ter mãos a medir. E não esperam milagres.
Enquanto saía do Tap Seac suspirando pela maldade que o tempo que passa faz a cada um, e passei pelo Mercado Municipal, para ver se arranjava uma posta de peixe para cozer - uma daquelas coisas que se come especialmente quando se está com as defesas em baixo. Ao passar pelo corredor onde se vendem frutas, flores, couve seca, gengibre, raízes e não-sei-que-mais, está uma senhora de meia-idade de rabo espetado a escolher limões, e quando digo "de rabo espetado", quero dizer isso literalmente: estava dobrada numa das lojas com aquela extremidade a ocupar o resto do caminho. Mais uns graus e tocava com a bunda na fruta da loja da frente. Tentei esquivar-me, passando de lado, mas mesmo assim não consegui evitar tocar-lhe na anca. Olhou para mim de lado por cima da caixa dos limões com uma cara feia, como se fosse a vez dela de estar ali naquele dado sítio e naquele dado momento, e os outros que esperassem, ou fossem dar a volta por outro lado. Apesar de lhe ter feito uma mímica que lhe dava a entender que toda a gente tem o direito de andar por ali, ainda pensou que a razão lhe assistia, e com cara de desprezo voltou à selecção dos citrinos.
Este incidente serve para ilustrar que apesar da evidente falta de espaço que temos, ainda há pessoas muito senhoras do seu nariz, que acham por bem andar devagar, ficar plantados em pontos de circulação de peões a fazer de rolha, de parar numa multidão em movimento e tirar um fotografia, ou "olhar os lírios do campo". Passando por alguns dos pontos críticos - e há já alguns que são autênticos formigueiros a qualquer hora do dia solar - levo um encontrão aqui, um empurrão ali, uma pisadela acolá, e entre os que ignoram a minha existência, há ainda aqueles que se dignam a olhar para trás e dizer "soly", e reparo que a maioria ostenta um sorrisinho parvo no rosto, como quem diz "não é tão gira, esta brincadeira?". Às vezes penso que Macau tem o que merece - obrigam-nos a dividir o espaço que já de si é escasso com cada vez mais gente, no refilamos, e ainda nos comportamos como uns trogloditas, fazendo o jogo de quem nos meteu nesta alhada.
Quando se fala de "qualidade de vida", este é um conceito muito subjectivo, e pode variar de lugar para lugar. Para um turista de um país da África subsariana pode bastar apenas o facto de terMos água potável para que ele considere que temos "qualidade de vida". Este conceito não tem apenas a ver com mais ou menos dinheiro, e pensando bem não tem nada a ver. Em Portugal alguém que aufira 500 euros por mês, o que mesmo assim é pouco, vive muito melhor que alguém em Macau com o mesmo rendimento. Fazendo o câmbio e dando o resultado cinco mil e poucas patacas, o que significa isto? Que se é obrigado a viver aquartelado com mais meia dúzia de infelizes nas mesmas condições,, e a contar os avos até ao fim do mês. Em Macau tivemos qualidade de vida, sim, no tempo em que era possível ser atendido num centro de saúde sem ficar com a sensação de se estar num depósito de ferro-velho, comprar peixe sem esbarrar pelos rabos que ocupam o caminho, e andar à vontade na rua. E nem por isso éramos mais ricos. E agora vendo bem, por onde é que anda esse apregoado dinheiro? Enquanto não nos pagam esse qualidade que nos ficaram a dever, vou fazer o que está ao meu alcançe e tratar da minha própria saúde. Até logo!
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