domingo, 16 de fevereiro de 2014
Os sons dos 80: Música Popular Portuguesa (MPP)
Com o evento do "rock" português, logo a abrir a década de 80, surgiram novos "heróis" no panorama musical nacional - e não foram só os Heróis do Mar. Com o estrondoso sucesso de Rui Veloso e o seu "Ar de Rock", e as rádios a passarem grupos de quem ninguém tinha ouvido falar, como os Xutos, os GNR, os UHF ou os Táxi, a chamada Música Popular Portuguesa (MPP), de raízes tradicionais e de cariz regional ou étnico, precisou de se reeinventar, e aparecer na nova década "de cara lavada". Na segunda metade dos anos 70 vingou a música de intervenção, com os poetas e baladeiros a mostrar a direcção. Com Zeca Afonso à cabeça, músicos como Pedro Barroso, Vitorino, Fausto, Carlos Alberto Moniz ou José Mário Branco lideravam as preferências de quem não estava virado para o "rock". O fado tinha sido deixado de lado, passando a ser considerado um gosto ultrapassado, próprio dos velhos gágás, os festivaleiros adaptaram-se às tendências, uns por obrigação, como Paulo de Carvalho, e outros por gosto, como Fernando Tordo, o proto-pimba de Marco Paulo, Quim Barreiros, José Malhoa e Duo Ele e Ela tinha o "seu" público, e Jorge Palma, o verdadeiro "rocker" português, andava a tocar pelo metro de Paris. José Cid e Sergio Godinho eram considerados o mais "moderno" dentro dos limites do aceitável, enquanto Tozé Brito, José Niza e Nuno Nazareth Fernandes eram os "compositores de serviço". Mas como navegou este barco nas águas revoltas desse maremoto que foram os anos 80, com as guitarras a tornarem-se electrizadas, e das baterias saía um baque seco a fazer lembrar os sons da selva? Aqui fica um pouco do melhor que se fez na MPP durante os anos 80.
A década começou a correr bem para a MPP no ano de 1982, com Fausto Bordalo Dias a lançar o duplo "Por Este Rio Acima". As rádios começavam a esgotar o reportório "rock" à medida que algumas bandas-novidade apareciam com a mesma velocidade que desapareciam. A temática do trabalho de Fausto é a dos Descobrimentos Portugueses, algo que soando a uma aula chata de História, é "temperado" pelo cantautor com a "pimenta" do diário do aventureiro Fernão Mendes Pinto, "A Peregrinação", a sua principal inspiração, e na História Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito. Fausto conta melhor que ninguém episódios que vão desde naufrágios a batalhas contra piratas, as aventuras e desventuras de corsários e marinheiros por terras estranhas, pontuadas pelos acessos de loucura provocados por meses à deriva no mar. Os arranjos são excelentes, a instrumentação divinal, com recurso a tudo o que há de melhor do riquíssimo leque de instrumentos tradicionais portugueses, e ainda com o contributo de Pedro Caldeira Cabral na guitarra portuguesa e Júlio Pereira no cavaquinho. De entre os temas - todos eles excelentes - destacam-se "O Barco Vai de Saída", "Navegar, Navegar" ou este "A Guerra é a Guerra", para mencionar apenas os mais conhecidos. "Por Este Rio Acima" foi o primeiro de uma trilogia intitulada "Lusitano Diáspora", que inclui ainda os álbuns Crónicas da Terra Ardente (1994) e Em Busca das Montanhas Azuis (2011), que ficaram aquém do sucesso deste.
Os Trovante foram fundados em Lisboa por Luís Represas e João Gil, corria o ano de 1976. No início apresentavam-se como um grupo de intervenção com fortes influências da música tradicional. Em 1981 dão-se a conhecer a um público mais vasto graças ao tema "Balada das Sete Saias", do seu terceiro trabalho "Baile no Bosque, e dois anos depois entram em definitivo no ouvido dos portugueses com este "Saudade", do álbum "Cais das Colinas", e a aclamação no ano seguinte com "84", que contém os clássicos "Xácara das Bruxas Dançando" e "Travessa do Poço dos Negros". Seguiram-se mais quatro álbums, um deles ao vivo, e o grupo terminou. Luís Represas deu início a uma sólida carreira a solo, e João Gil foi fazer parte de vários outros projectos, encontrando-se actualmente à frente do Quinteto Lisboa. Em 2011 os dois gravaram um disco juntos.
Quem passou também pelos Trovante e antes disso pela Brigada Victor Jara foi a transmontana Né Ladeiras, uma das melhores vozes femininas da MPP, com uma respeitável carreira a solo. Mas foi na Banda do Casaco, um super-grupo por onde passaram Cândida Branca-Flor, Gabriela Schaaf, Concha e Mike Sargeant que a cantor obteve mais visibilidade, especialmente com o disco "Também Eu", de 1982, onde se encontra este "Salvé Maravilha". Este foi o "salto" que Né Ladeiras precisava para gravar o seu primeiro trabalho a solo, que sairia em 1984 sob o título "Sonho Azul". O seu trabalho mais conhecido será "Todo Este Céu", de 1997, onde interpreta temas de Fausto Bordalo Dias.
O fado teve o seu pique em meados desta década, com o regresso de Amália Rodrigues, o aparecimento de novos nomes como António Pinto Basto e Paulo Bragança, ou a afirmação de outros já com alguma experiência, como João Braga, Frei Hermano da Câmara e Nuno da Câmara Pereira, descedente de uma família tradicional de fadistas. Curiosamente um dos registos de maior sucesso do fado nesta década nem sequer foi um dos grandes nomes do género, mas sim o cançonetista Paulo de Carvalho, que recebeu grandes elogios como seu "Desculpem Qualquer Coisinha", de 1985, onde se encontrava o célebre "Os Meninos de Huambo". Mas nenhum conseguia ser tão castiço como Rodrigo Inácio Ferreira, ou apenas Rodrigo, que assinou alguns êxitos na primeira metade da década, com temas como "Fado do 31" e "Parece que é bruxo". Parece mentira, mas Rodrigo nasceu em 1941, pelo que à data destas imagens, nos anos 80, teria pouco mais de 40 anos, apesar do aspecto muito mais envelhecido. É a resposta portuguesa em forma de fado à "country music" norte-americana de Kenny Rogers.
Este senhor que vemos aqui a tocar viola e com uns óculos com lentes quase até aos joelhos é Francisco Veredas Bandeiras, que nos últimos tempos tem sido notícia pelos piores motivos. Francisco nasceu em Elvas, cidade fronteiriça com a Espanha, e tinha 14 anos quando se juntou ao grupo Cuban Boys, onde era guitarrista e vocalista. A proximidade com o país de "nuestros hermanos" e a natureza do reportório da sua primeira banda fizeram-lhe adopter o nome artístico Paco Bandeira - Paco é "Francisco" em espanhol, e por lá singularizam-se os nomes, pelo que o "s" do apelido Bandeiras acabou por cair. Começou a sua carreira de 1966, depois de cumprir o serviço militar, e em 1972 gravou o tema que o lançou para uma carreira interessante: "A Minha Cidade", uma dedicatória à sua Elvas natal, com Badajoz à vista. Na primeira metade dos anos 80 tornou-se uma espécie de guru da música ligeira para adultos, muito graças às baladas "Minha Quinta Sinfonia", de 1983, e este "Ternura dos Quarenta", de 1984. A sua carreira musical é pautada por uma regularidade e coerência no que toca à qualidade, mas a sua vida pessoal tem sido uma desgraça; em 1996 a sua primeira mulher suicidou-se com um tiro na cabeça, e com a segunda teve desaguisados que são do conhecimento geral. Em 2012 foi condenado a três anos e meio de prisão com pena suspense por abuso doméstico e posse de arma proibida, e são várias as vezes que o vemos a ameaçar publicamente profissionais da imprensa. O que leva este senhor com um ar tão simpático, que toca e canta canções a ser um crápula com carácter violento? Tenho uma teoria; reparem na letra da canção "A Mulher é como um livro": A mulher é como um livro/Antes de se folhear/Tem beleza, tem doçura/Que mistério tem no olhar/Mas depois do livro lido/O livro não presta mais/A não ser que haja um motivo/Que faça voltar atrás. Pois, pois, "livro que depois de lido não presta mais"...
Júlio Pereira aos 30 anos era parecido com Jesus Cristo, e actualmente aos 60 assemelha-se a...Jesus Cristo. Júlio Pereira é um virtuoso do cavaquinho, um instrumento 100% português e do qual os hawaiianos copiaram o seu ukulele. Isto pode não parecer grande coisa, mas o músico leva isto mesmo a sério, e em mais de 40 anos de carreira leva já 20 discos a solo - ao cavaquinho e outros instrumentos de corda - e isto para não falar de inúmeras colaborações com outros projectos, e nomes que incluem Pete Seeger, Chico Buarque ou os Chieftains. Começou em 1971 com os Petrus Castrus, em 1973 juntou-se aos Xharanga, e a partir de 75 foi solo com o disco "Bota-Fora". Em 1986 gravou o disco "Os Sete Instrumentos", que andou pelos "tops" e valeram-lhe a mesma alcunha do nome do album (sempre é melhor que "Jesus Cristo". Desse registo destaca-se este "Celtibera", que nem é preciso gostar de cavaquinho para se poder apreciar.
Outro instrumentalista de renome que deixou a sua marca na MPP dos anos 80 foi o nosso conhecido Rão Kyao, que tem uma ligação íntima com o Oriente e especialmente com Macau, que o levou a ser convidado para compôr o hino de transferência de soberania, em 1999. Uma cana de bambu com uns buraquinhos estrategicamente colocados é o quanto baste para ele fazer música, e em 1985. Começou a sua carreira nos anos 70, tocou flauta para trabalhos de Jorge Palma, António Chainho e Amália Rodrigues, e a propósito desta, foi em 1983 o primeiro artista português a chegar a disco de platina, com o seu trabalho "Fado Bailado". Em 1986 liderou a tabela do top álbums nacional com o seu LP "Estrada da Luz", que incluía o bem conhecido "Canção da Manhã", do genérico da série infantil "O Anel Mágico". Passou a ir buscar inspiração às arábias e ás índias, e é de lá que nos trouxe este "Bombaião", do álbum Oásis, de 1987.
Quase com os anos 80 a terminar, eis que surge o primeiro super-grupo português de "world music". Pedro Ayres Magalhães, então ainda nos Heróis do Mar, e Rodrigo Leão, dos Sétima Legião, resolvem formar em 1985 um grupo que combinasse a música tradicional portuguesa com a música erudita e a música popular contemporânea. No ano seguinte junta-se Francisco Ribeiro no violoncello e Gabriel Mendes no acordeão, e para dar voz ao projecto que ainda não tinha nome, convidaram Teresa Salgueiro, que descobriram a cantar numa casa de fados do Bairro Alto. Durante o ano de 1987 ensaiavam no Teatro Ibérico, antigo Convento de Xabregas, no bairro lisboeta de Madredeus, e assim ficaram baptizados: de Madredeus. O primeiro disco, um duplo que reunia 15 originais saía nesse ano, "Os Dias da Madredeus", que impressionava pela estética, inédita na MPP e em toda a música nacional, para esse efeito. Foi com este "Vaca de Fogo" que o público português tomou contacto com o grupo, que rapidamente se internacionalizou, e desde meados dos anos 90 viaja à volta do mundo dando concertos. Pedro Ayres Magalhães é o único membro que resta desde a gravaço do primeiro disco, e quando em 2012 Teresa Salgueiros deixou os Madredeus, temeu-se pelo seu fim, mas foi substituída por Beatriz Nunes.
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