sábado, 22 de fevereiro de 2014

Independência ou morte


É um pouco difícil analisar a situação na Ucrânia de um ponto de vista pessoal sem ferir susceptibilidades. Nós, portugueses, temos a sorte de nunca ter estado numa situação de crise semelhante à dos ucranianos, e ainda ter que ouvir palpites vindos de comentadores políticos, políticos comentadores, e meros opinadores de primeira viagem, alguns que nem sabem apontar a Ucrânia num mapa, e que talvez umas horas debaixo da munição do exército de Yanukovich lhe desse menos vontade de "pensar" do que sentados na mesa do café. Não posso deixar de estar solidário com os manifestantes que nas últimas semanas se têm concentrado na Praça da Europa, em Kiev, e especialmente com as famílias daqueles que perderam a vida estes dias, com a repressão das tropas leais ao governo a subir de tom. No entanto não me apetece mesmo nada apontar o dedo à Rússia e a Putin, cuja postura não difere muito daquela que o chamado "Ocidente" teve em situações semelhantes. Se podemos acusar Moscovo de alguma coisa, talvez apenas de alguma falta de tacto, ou de inclinação para a resolução dos problemas pela via diplomática.

Sendo o maior país com a maior área do espaço europeu, a Ucrânia é considerada fundamental em termos geo-estratégicos. A sua capital, Kiev, gerou durante séculos a cobiça dos mais variados impérios das vizinhanças, e os ucranianos viveram desde sempre debaixo da enorme sombra do seu vizinho, a Rússia, que tem sido ora mãe, ora madrasta, durante a quase totalidade da sua História. Mais madrasta do que mãe, certamente, e é preciso nunca esquecer o Holodomor, a grande fome de 1932/33, onde a loucura de Estaline levou à morte de milhões de ucranianos. Entre o período após o fim da II Guerra mundial e até à desagregação da União Soviética, a Ucrânia foi uma espécie de URSS Jr., de um apêndice do gigante, o braço soviete que se estendia do Mar Negro até à Europa central e balcãs. A Ucrânia confundia-se com a própria URSS; muitos cientistas, artistas, intelectuais e desportistas soviéticos eram ucranianos. O próprio Leonid Brezhnev era ucraniano, assim como metade da equipa de futebol da URSS dos anos 60 até aos anos 80, o recordista de salto à vara Serguej Bubka, e muitos dos medalhados dos Jogos Olímpicos de Seul em 1988, os últimos antes do desmembramento em 1991, e da independência da Ucrânia.

Falar de "independência" quando se fala da Ucrânia é complicado, atendendo ao historial entre o país e o vizinho russo, e depois de um período inicial sem se saber muito bem que rumo tomar, o presidente Leonid Kuchma encarregou-se de alienar muito do património da Ucrânia, deixando-o nas mãos dos oligarcas com ligações a Moscovo. Kuchma manteve-se após a chegada de Putin ao Kremlin em 2000, e na altura de lhe suceder outro "embaixador", Viktor Yanukovych, começaram os problemas. As eleições presidenciais de 2004 foram contestadas como fraudulentas, e o candidato derrotado Viktor Yuschenko viria a tomar posse em inícios de 2005. Considerado mais próximo do Ocidente, Yuschenko nunca se conseguiu libertar da mão-de-ferro da Rússia, e a detenção em 2010 da primeira-ministra Yulia Tymoshenko, considerada a sua natural sucessora, foi um duro golpe nas pretensões dos ucranianos a obter mais autonomia, Yanukovych chegaria eventualmente à presidência, e depois foi o que se sabe: Bruxelas tentou dar a mão à Ucrânia num primeiro passo rumo a uma eventual integração no espaço da União Europeia, Putin ameaçou com sanções económicas, e Yanukovych cedeu, num misto de cumplicidade e pragmatismo. Seria realista pensar numa Ucrânia de costas voltadas para um país de que dependem practimanete todos os sectores da sua economia.

Vladimir Putin pode não ser o tipo de pessoa que gostariamos de convidar para jantar na nossa casa, mas não é nenhum maluquinho. Consciente da importância da Ucrânia como estado-tampão, sabe que seria um duro golpe nas pretensões da Federação Russa em travar a influência ocidental, e é preciso não esquecer que estamos a falar aqui do maior país do mundo, com a sua quota parte de problemas internos, e não é dando parte fraca ou perder-se em debates de natureza ideolóica ou política que os vai resolver. Até pode ser que Putin simpatize com as pretensões europeistas dos ucranianos, mas é tudo uma questão de estratégia: vocês estão aí ao nosso lado e nós precisamos de vocês aí, paciência. Se achamos que aquilo que Putin está a fazer é chantagem, o que dizer por exemplo do embargo norte-americano a Cuba, que muitos analistas consideram já tão desnecessário que se torna aberrante? E seria fácil apontar o dedo ao presidente russo caso esta questão da Ucrânia fosse apenas um capricho seu. É preciso recordar que Yanokovych foi eleito com 48% dos votos nas eleições de 2010, e não foi graças aos eleitores de etnia russa, que é apenas 17% da população de 45 milhões do país. E estes ucranianos, serão menos dos que lutam pela "sua" ucrânia na Praça da Europa?

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