sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Os sons dos 80: The Pogues


A formação inicial dos Pogues. Em cima, da esquerda para a direita: James Fearnley, Caitlin O'Riordan, "Spider" Stacy e Shane MacGowan. Em baixo: Andrew Ranken e Jem Finer.

Para falar dos The Pogues, ninguém é mais suspeito que eu: foram, são e muito possivelmente serão a minha banda favorita de todos os tempos. Chamem-me de maluco, se quiserem, mas foi esta combinação de leite e whisky musical, que resultou num "irish cream" de canções, ora em lamentações, ora em loucas correrias, que fez um "clique" no meu ouvido. E foi mesmo assim: formados em 1982, os Pogues eram designados por uma banda de "punk céltico". Mas que raio é isso, "punk céltico"? O que os Pogues fizeram foi combinar os sons da música de raíz céltica, mormente a irlandesa, e dar-lhe um tom de modernidade. Como a maioria dos seus elementos tinha um passado musical que remetia ao "punk" londrino do final dos anos 70, a escolha recaíu num som mais agressivo, contestário e ao mesmo tempo ruidoso, recorrendo a instrumentos improváveis, como o banjo, o mandolim, o acórdeon e o violino. A combinação deu origem a um dos actos mais rebeldes, mais exóticos e mais originais a que os anos 80 assistiram.


Shane MacGowan bão saíu inteiro dos loucos anos do "punk-rock".

O líder, mentor e alma dos Pogues foi Shane McGowan, uma espécie de bardo irlandês que bebeu muito além do recomendável, e pelo meio ainda meteu algum ácido. Filho de irlandeses originários de Tipperary, Shane nasceu em Kent, na Inglaterra, no dia de Natal de 1957, quando os seus pais passavam a quadra com familiares. O seu pai era músico e a sua mãe dançarina, e depois de passar os primeiros anos da infância na Irlanda de origem, mudou-se para Londres com a família aos sete anos. Aluno médio, apaixonado pela música e um rebelde sem causa, Shane foi desde cedo um frequentador do ambiente nocturno da capital inglesa, e assistiu na fila da frente à ascensão e queda da cena "punk". Em 1976, com apenas 18 anos, fez a capa do Daily Mail, e logo pelos motivos mais estranhos. Durante um concerto dos Clash, a sua "amiga" Jane Crockford - mais tarde elemento da banda "punk" Mo-dettes - arranca-lhe um pedaço da orelha à dentada. Em 1977 forma os Nipple Erectors ("os erectores de mamilos", em tradução livre), que mais tarde mudam de nome para "The Nips", e grava alguns temas que o tornam mais ou menos conhecido na cena musical "underground" londrina.


Ainda durante o auge do "punk", em 1977, MacGowan conhece "Spider" Stacy na casa-de-banho durante um concerto dos Ramones. Stacy estava num grupo chamado Millwall Chainsaws, juntamente com Jem Finer, que viria a ser um dos fundadores dos Pogues. Em 1982 MacGowan deixa os Nips com o guitarrista James Fearnley, e ambos juntam-se a Stacy e Finer, que acabaram com os Chainsaws, entretanto re-baptizados de The New Republicans. Contratam a baixista Caitlin O'Riordan, que MacGowan conheceu em 1979 enquanto trabalhava numa loja de discos que ela frequentava, e o baterista Andrew Ranken, e formam os Pogue Mahone. Este nome era uma anglicização do gaélico "pogue mó thóin", que significa "beija-me o cu". Com um nome destes, dificilmente passariam nas rádios, e por isso simplificam o nome para The Pogues. O grupo torna-se conhecido em alguns círculos devido aos seus concertos, onde imprimem uma energia fora do comum, e em 1983 fazem uma aparição no programa The Tube, do Channel 4 do Reino Unido, onde interpretam "Waxie's Dargle", um tema tradicional irlandês. O vídeo, que tenho aqui a honra de partilhar, documenta bem a energia e a originalidade da banda. MacGowan berra como se não houvesse amanhã, Stacy bate com pratos na cabeça, e o resto da banda "arranha" os instrumentos e ajuda a gritaria como pode. Por incrível que pareça, há quem ache isto fascinante. Eu, por exemplo, e no fui o único - esta aparição foi a chave dos Pogues para a fama.


Os Pogues assinam pela Stiff Records nesse ano, mas recusam-se a gravar "Waxie's Dargle" como primeiro single, e optam antes por este "Streams of Whisky", um original escrito por MacGowan. Ambos os temas são incluídos no primeiro álbum do grupo, "Red Roses for Me", que conta ainda com "Dark Streets of London", o primeiro tema que gravaram, ainda sem editora. O disco, com produção de Stan Brennan e gravado ao vivo em estúdio, foi bem recebido pela crítica mas passou despercebido pelo público em geral. Entre temas tradicionais como "Greenland Whale Fisheries", "Poor Paddy" ou "Kitty", é já possível encontrar algum do génio que MacGowan viria a evidenciar em trabalhos seguintes, com temas como "Boys from the County Hell", "Sea Shanty", "Transmetropolitan" ou "Down in the Ground Where the Dead Men Go". Nos sete círculos do Inferno, celebrava-se o nascimento de mais um poeta maldito.


Em 1985 os Pogues regressam com um segundo álbum, "Rum, Sodomy & the Lash", um título inspirado numa frase (erradamente) atribuída a Winston Churchill, quando lhe pediram a opinião sobre a tradição naval britânica. Para este disco entra Philip Chevron para a guitarra, deixando Shane MacGowan mais livre para as funções de vocalista, compositor e letrista, e a produção fica a cargo de Elvis Costello, o padrinho do "new wave", o movimento que se seguiu ao "punk" e que acolheu os seus "orfãos". "Rum, Sodomy & the Lash" é na opinião de muitos fãs (incluíndo eu próprio) o melhor trabalho dos Pogues, o mais puro, o que melhor descreve a essência da banda. É um MacGowan inspiradíssimo que cria temas inesquecíveis como "A Pair of Brown Eyes", "Sally MacLennane", "The Sick Bed of Chuchulainn" ou "The Old Main Drag", temas que versam sobre a angústia, a perdição, os amores perdidos, as gangrenas da guerra, aquilo que viria a ser denominado "hinos da serjeta", em que o cantor se tornaria especialista. O álbum termina com aquela que ainda hoje é considerada a melhor rendição do peoma de Eric Bogle "Waltzind Mathilda", e inclui ainda este "Dirty Old Town", um clássico da autoria de Ewan McColl, entre outros temas tradicionais. O disco chega ao nº 13 do top de álbums do Reino Unido, e tornam os Pogues em mais que uma curiosidade, e os seus elementos provavam o doce veneno do sucesso comercial.


"Rum, Sodomy & the Lash" viria a causar uma baixa inesperada nos Pogues, quando o seu único elemento feminino, Caitlin O'Riordan, se envolve romanticamente com o produtor Elvis Costello. A relação entre ambos não interfere com o trabalho da banda, pelo menos inicialmente, e O'Riordan contribui com a voz para o tema "Haunted", uma das contribuições do grupo para a banda sonora do filme "Sid & Nancy", de Alex Cox, sobre a vida de Sid Vicious, dos Sex Pistols, e participa ainda no EP "Poguetry in Motion", o primeiro single dos Pogues a entrar para o top-40 britânico, e que incluía os temas "London Girl", "Rainy Night in Soho", "Body of an American" e "Plantxy Noel Hill". Já com Terry Woods, antigo elemento dos célebres Steeleye Span no grupo, os Pogues partem para uma digressão na América sem O'Riordan, que casa com Costello na mesma altura, e é substituída por Darryl Hunt, que tinha sido seu colega nos Pride of the Cross, uma banda pré-Pogues. O'Riordan ainda aparece em 1987 ao lado dos Pogues no filme "Straight to Hell", outro projecto de Alex Cox, e onde interpreta este "Danny Boy". Quando decide juntar-se musicalmente ao marido, O'Riordan deixa os Pogues e é definitivamente substituída por Darryl Hunt.


E o que viria O'Riordan a perder ao sair dos Pogues? Isto, por exemplo. Em Dezembro de 1987 a banda lança "Fairytale of New York", um tema de Natal originalmente escrito por Jem Finer e Shane MacGowan, e originalmente idealizado para ser cantado em dueto pelo último e por O'Riordan. Com esta fora de cena, é escolhida Kirsty McColl, filha de Ewan McColl, o tal poeta que foi autor de "Dirty Old Town". A canção seria um enorme sucesso, e é praticamente todos os anos entrada no top-20 dos singles do Reino Unido por altura no Natal, mesmo que o melhor que tenha conseguido foi o nº 2, no ano da sua edição original. Esta foi a primeira de muitas contribuições entre Kirsty McColl e os Pogues. A banda participaria no álbum de 1990 da cantora, "Electric Landlady", e haveria mais um dueto com MacGowan nesse mesmo ano, "Miss Otis Regrets/Just One of those Days", um medley de dois temas do compositor nova-iorquino Cole Porter, incluído na colectânea "Red, Hot & Blue", um projecto que visava sensibilizar para o flagelo da SIDA. Kirsty McColl viria morrer prematuramente em Dezembro de 2000, num acidente enquanto passava férias com a família em Cozumel, no México.


"Fairytale of New York" seria incluído no terceiro trabalho de originais dos Pogues, em 1988: "If I Should Fall From Grace With God", produzido por Steve Lillywhite, marido de McColl, e que tinha no seu currículo a produção de álbums dos Rolling Stones, U2 ou The Smiths. O novo trabalho é mais ambicioso, com uma produção mais trabalhada e um som mais elaborado, com os temas a recairem para uma vertente mais política. Como banda de raiz céltica e irlandesa, os Pogues e o seu líder MacGowan não queriam deixar de fora a veia contestatária, que já tinham deixado vincada na sua colaboração com os Dubliners em "The Irish Rover" um ano antes. Canções como "Broad Majestic Shannon", "Thousands are Sailing" ou "Streets of Sorrow/Birmingham Six" abordavam a luta do povo irlandês, as tradições, as vagas migratórias, ou no caso do último tema referido, a luta contra a opressão da coroa britânica sobre a ilha-esmeralda. Não faltariam ainda temas mais ligeiros, como este "Fiesta", e da qual os portugueses Despe & Siga viriam a fazer uma versão.


Chegamos a 1989, e os Pogues gravam o quarto longa-duração de originais, "Peace and Love", novamente com a produção de Steve Lillywhite. Aqui começa a ser evidente um certo mal-estar no seio da banda, com MacGowan a denotar algum distanciamento. O génio por detrás da essência da banda começa a acusar problemas com o consume de álcool e drogas, que já eram conhecidos, mas que se começam a acentuar. Das 14 faixas do álbum o líder dos Pogues assina apenas seis e dá a voz a oito, e mesmo essa voz parece começar também a sofrer dos constantes abusos. É nesta altura que se começa a temer pela integridade de MacGowan, e é cada vez mais evidente a sua deficitária higiene oral, algo que viria a ser a sua (infame) imagem de marca. Mesmo assim "Peace and Love" chega ao nº 5 do top britânico e produz alguns temas interessantes, como "White City", "Down all the Days", dedicado ao escritor Christy Brown, imortalizado no cinema por Daniel Day-Lewis em "My Left Foot", e este "Misty Morning, Albert Bridge".


Ao mesmo tempo que sai "Peace and Love", sai o single "Yeah Yeah Yeah Yeah", muito incaracterístico, e os Pogues partem para mais uma digressão, que viria a ser marcada pelo comportamento erróndeo de MacGowan. Num dos episódios mais bizarros está incluído o concerto do grupo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, com a primeira parte a ficar a cargo dos portugueses Essa Entente. MacGowan, para lá de bêbado, interrompe o espectáculo para anunciar que tinha acabado de perder um anel "que tinha sido abençoado pela Virgem Maria". Pouco antes disso, o baixista dos Essa Entente, Paulo Salgado, tinha-se engasgado enquanto bebia uma caneca de cerveja, quando engoliu um...anel. Apesar dos excessos fazerem as delícias dos fãs, a quantidade de concertos cancelados e a perda de patrocínios era má para a imagem dos Pogues, e é dado um ultimato a MacGowan: ou portas-te bem e fazes a tua parte, ou senão...


MacGowan sente o perigo e resolve tirar um período de férias na Tailândia, onde recupera a forma (sabe Deus como) e estranhamente reconcilia-se com as musas da inspiração. Assim em 1990 sai "Hell's Ditch", o quinto registo da banda, e o último de MacGowan como vocalista. Este seria o melhor dos Pogues desde "Rum, Sodomy & the Lash", com MacGowan em grande forma, dando ênfase à temática oriental em temas como "Sunnyside of the Street", "Sayonara" ou "The House of the Gods", onde o grupo "rouba" a introdução de "I Still Believe in You", dos Beach Boys. "Summer in Siam", que podem escutar no vídeo acima, seria o primeiro single do álbum, que a par do seu lado tailandês bebia ainda de um tema tão antagónico como a Guerra Civil Espanhola, presente em temas como "Lorca's Novena" e "Hell's Ditch". Apesar do sucesso do disco, a digressão que o suportou voltou a ser desastrosa, e depois de mais um concerto cancelado, no Japão, onde seria gravado um disco ao vivo, MacGowan é despedido. Para "baralhar" os fãs, sai em 1991 a colectânea "The Best of The Pogues". Nesse mesmo ano os Pogues fazem parte do elenco da Queima das Fitas em Lisboa e no Porto, já sem o seu carismático líder.


Em 1992 sai "The Rest of the Best", uma segunda colectânea, e no ano seguinte o primeiro disco dos Pogues sem MacGowan, "Waiting for Herb", que foi recebido positivamente pelos fãs, mas que não trouxe nada de revolucionário. "Spider" Stacy ficou encarregado de dar voz aos novos Pogues, mas não fazia esquecer o poeta maldito dos dentes podres. Esse, como que renascido das cinzas, regressa em 1995 com o seu primeiro registo a solo, "The Snake", onde conta com a ajuda de alguns amigos do outro lado do Atlântico, os Popes. O disco traz de volta o antigo "Haunted", em dueto com Sinead O'Connor, e para o sabor ser ainda mais doce, os Pogues gravam no mesmo ano "Pogue Mahone", um fiasco que já não contou com James Feranley, Jem Finer, Terry Woods e Andrew Ranken. Em 1998 MacGowan volta com "Crock of Gold", sem o mesmo sucesso da sua estreia a solo. Parecia já não ter chão para pisar, o projecto "folk-punk" dos anos 80.


Shane MacGowan pode sorrir de novo...e até tem os dentes para o efeito.

Os Pogues voltaram a reunir-se em 2001 com a mesma formação com que MacGowan havia sido despedido em 1990. Desde essa data deram e publicaram raridades, tudo menos material original, que disseram desde a primeira hora "não estarem interessados em produzir". O ano passado faleceu o primeiro Pogue, mas não foi o desregrado MacGowan, mas sim Philip Chevron, que vinha há alguns anos batalhando com um cancro. O icónico vocalista continua para as curvas, e até tem uma dentição nova e tudo. Mérito para Victoria Clarke, sua companheira de há mais de 20 anos, que tem feito de "voz da consciência" do bardo beberrão. Com mais de 30 anos de história e muitas estórias loucas para contar - e para cantar - os Pogues são uma das jóias mais preciosas e raras que sairam dos anos 80.

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