sábado, 21 de dezembro de 2013

Quo vadis, jornalismo?


A jornalista Sónia Nunes (que é um doce), do diário local Ponto Final, deixou há dois dias uma mensagem na rede social Facebook que me chamou a atenção, que convida ao debate: Para quê uma carteira profissional de jornalista quando podemos ser "profissionais habilitados com o autocolante"?. Não sei precisar que situação em particular levou a Sónia a cometer este desabafo, mas como a "thread" não teve continuidade, fica no ar o fumo da dúvida. Eu próprio respondi-lhe quase de imediato, pois penso que aquilo a que ela se refere tem a ver com um tema que tem sido muito discutido em Macau: o estatuto do jornalista. Quem é jornalista? Quem pode ser jornalista? Quais os requisitos para se ser jornalista? De que protecção goza a profissão, e que direitos especiais lhe são conferidos? Um tema que dá pano para mangas.

Em primeiro lugar, respeito a profissão de jornalista como respeito qualquer outra, desde o físico nuclear ao sapateiro, e mais respeito tenho ainda por qualquer professional que gosta do que faz, e que o faça bem feito. Eu próprio cheguei a pensar em ser jornalista, optei por essa área no ensino secundário complementar - a "velhinha" área D, de letras, onde se optava por Jornalismo ou Administração Pública. A maior vantagem em ir para letras, pelo menos para mim, era não ter Matemática. Desconfio que se optasse pelas áreas de Ciências ou Economia, ainda estava a fazer o secundário. Não prossegui esse, vá lá, "sonho", porque surgiram outras oportunidades, e mais tarde vim a descobrir que a profissão é mal paga, e a empregabilidade é baixa. Ser jornalista e ao mesmo tempo ser bem pago depende de muitos factores, e ao contrário de outras profissões onde "quem sabe, sabe", ser bom naquilo que se faz não é suficiente. Passo a explicar.

Para se ser jornalista, não basta ter faro para a notícia, escrever bem, ser desinibido, corajoso ou trabalhador - não chega ser bom jornalista. Há profissões que requerem conhecimentos e formação técnica sem os quais é impossível exercê-las. Nenhum brincalhão consegue passar por médico, engenheiro, electricista ou mecânico de automóveis por muito tempo sem que a sua incapacidade para o ofício venha ao de cima. Qualquer chico-esperto que escreva mais ou menos bem pode passar por jornalista - e quando digo jornalista, claro que me refiro a um repórter ou restante pessoal da redacção de um jornal; aspectos como o grafismo, a paginação e tudo o que tem a ver com o resultado final, ou seja, o próprio jornal, requer mais do que saber escrever, elaborar uma notícia, fazer uma reportagem ou conduzir uma entrevista. Além disso, a digitalização da imprensa e a decadência gradual da versão impressa implicou a aquisição de novos conhecimentos, e "afunilou" a oferta de trabalho. A televisão é também excepção, pois obedece a critérios mais variados. Não é alguém que passou anos numa redacção atrás de uma máquina de escrever, ou como agora um computador, que vai apresentar o Telejornal, o desporto ou o Boletim Meteorológico.

A primeira questão tem a ver exactamente com a vertente académica: quem está habilitado para ser jornalista? Simples, alguém com um curso em Comunicação e que tenha feito estágio orgão de comunicação social, seja ele um jornal, uam estação de radio, um canal de televisão ou uma revista cor-de-rosa. Será mesmo assim tão simples? Conheço jornalistas, mesmo em Macau, que têm apenas o curso secundário, mas que entraram pelas portas das traseiras "porque têm jeito". Imagine a minha cara Sónia que amanhã o meu "padrinho" (tivesse eu um, que nem sou baptizado) comprava o jornal onde a minha cara trabalha, e fazia questão de me pôr a director. Quem o ia impedir, ou sequer reclamar, se tiver amor ao emprego? Esta é a primeira questão com que os profissionais da imprensa têm que se preocupar, em vez de andarem tão preocupados com quem entra onde e com que cartão e autocolante. Se o menino ou a menina que gosta de brincar aos jornalistas tem jeito, vá queimar as pestanas quatro ou cinco aninhos como todos os outros aspirantes, e se forem mesmo bons não terão problemas de empregabilidade. Eu próprio cozinho de vez em quando para os amigos, e se eles acham delicioso, podem elogiar-me e até sugerir que eu "abra um restaurante". Esta é uma ilusão em que muita gente acredita; fazer uns petiscos para meia dúzia de amigos não é a mesma coisa que ter um restaurante. Eu não percebo nada de restaurantes, a não ser ir lá, sentar-me e comer, pois no tenho qualquer formação em hotelaria.

Quanto à questão da acreditação, que parece ser a principal preocupação expressa nas entrelinhas do comentário da Sónia. Em primeiro lugar, numa conferência de imprensa, como o próprio nome indica, só devem lá estar jornalistas acreditados, e mais ninguém, ponto final. Nem é preciso discutir muito este ponto, mas no que toca à notícia em si, o caso muda de figura. Alguém que esteja na presence de um acontecimento digno de reportagem, e não haja um único professional da comunicação social no local, o que deve fazer? Chamar um, ou registar ele próprio o acontecimento? Hoje em dia que qualquer um tem câmara fotográfica e de vídeo no telemóvel, fica mais fácil. E se o telemóvel for de última geração, pode publicar a notícia no seu blogue, se tiver um, no Facebook, na Google ou mandar para 80 amigos através de e-mail. Se for mesmo um acontecimento digno de notícia, não o deixar de ser apenas porque a pessoa que o publicou não está acreditada como jornalista. Um jornalista não é um cirurgião ou um cientista, e não é preciso ser um génio para se escrever o corpo de uma notícia. Aliás, basta ler jornais com alguma frequência para se ter uma ideia. Um jornalista não é Deus, omnipresente e omnipotente, nem tem super-poderes para poder chamar a si o exclusivo de informar. A não ser que se chame Clark Kent e trabalhe no Daily Planet, claro.

Não quero dizer com isto que "qualquer um pode ser jornalista". Se isso não ficou ainda bem claro, remeto para dois parágrafos atrás, onde falo da formção académica. O que se deve evitar é a arrogância, desacreditando quem faz jornalismo por carolice apenas porque não é detendor de um "press card". E já que falo de arrogância, havia uma jornalista que passou há alguns anos por Macau e cujo nome não me record (porque não é importante e não chegou longe) que numa entrevista disse que o seu filme favorito era "Citizen Kane", que é um filme "só para jornalistas". Agora pergunto eu: porque carga de água? Vi "Citizen Kane", gostei muito e entendi tudo, apesar de não ser jornalista. E reparem que muitos (a esmagadora maioria?) dos colunistas dos principais jornais em Portugal são profissionais de outros ramos, políticos, economistas, advogados e outros, e sem qualquer formação em Jornalismo. Se alguns destes não sabem escrever ou escrevem mal, há também jornalistas encartados que escrevem com os pés, e isso é tudo uma questão de perspectiva.

Ninguém está a querer tirar o pão da boca dos profissionais da imprensa por querer exprimir uma opinião, ou querer publicar uma notícia que considere ser do interesse público. Se é ou não do interesse público, isso cabe ao público decidir. A blogosfera, por exemplo, deu essa oportunidade a qualquer um que goste de escrever de fazer passar as suas ideias para quem o quiser ler sem obrigar ninguém a isso ou cobrar um tostão pelo seu esforço. Longe vão os tempos em que era necessário recorrer aos canais apropriados para se fazer escutar, ou neste caso, ser lido. E ainda bem. Concluíndo, o lugar dos jornalistas é nas redações, e os que lá estão são escolhidos pelos respectivos media que lhes pagam o salário. É uma profissão nobre, digna, com um papel preponderante na sociedade, tanto agora como no passado, e até na História, mas repito: não têm o exclusivo de relatar essa mesma História.

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