sábado, 14 de dezembro de 2013
Macau Simplex
Tenho aproveitado o Sábado para descansar, mas só para que não fique com um dia em "branco", deixo-vos com o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Continuação de um próspero fim-de-semana.
Um rico paciente protege os seus bens,
Um pobre paciente defende-se da humilhação,
Pai e filho pacientes mostram afeição,
Irmãos pacientes mostram sinceridade,
Um amigo paciente torna a amizade eterna,
Um casal paciente vive em harmonia.
Provérbio chinês
São cada vez mais os residentes de Macau que optam por viver aqui ao lado, em Zhuhai, como forma de contrariar o encarecimento da habitação aqui desta banda. Em compensação chegam do continente cada vez mais patriotas que pensam que vale a pena investir e fazer de “Aomen” o seu novo lar. Os operadores turísticos recebem os turistas que chegam do outro lado das Portas do Cerco com uma vénia, criam-lhes condições para que se sintam em casa, apostam na aprendizagem do Mandarim, e já é comum encontrar lojas, cartazes, guias, panfletos escritos em chinês simplificado. Para quê simplificar o que tanto custou a criar e foi tão complicado? O encanto de Macau é esse mesmo: ser complicado. Quem chega de fora em busca de mais do que apenas os casinos ou os produtos de luxo, quem vem tentar perceber o que é Macau, realmente, “what’s the big deal anyway” e nunca consegue uma resposta definitiva, não vê com bons olhos todo este “simplex” a que os locais vão aderindo. Perde-se o tal encanto, perde-se a matriz, perde-se, em suma, Macau, e tudo o que resta é apenas uma mera extensão de Zhuhai.
Há coisas que são complicadas, e que é melhor não simplificar, correndo o risco de as fazer desaparecer. Os já referidos caracteres simplificados, por exemplo, que foram uma estratégia do partido único para combater o analfabetismo, desvirtuam a beleza dos caracteres clássicos, e retiram-lhe o sentido, o significado que os torna únicos na perspectiva da simbologia que carregam em cada um deles. O carácter para “amor”, por exemplo, 愛, é um carácter composto, onde entra o “coração” (心). Na sua versão simplificada (爱) omite-se o coração. E de onde vem o amor senão do coração? Se esta terra tem uma História, se é complexa, complicada, clássica, e por isso mesmo única no mundo, para quê simplificá-la? Assim arrisca-se a ficar também sem coração. Mas afinal onde está a pressa em tudo simplificar? “Man-man”, meus amigos, “man-man”. Onde está a famosa “paciência de chinês”?
E é essa uma das maiores virtudes deste povo, a paciência. A tal “paciência de chinês” de que se fala, sendo mesmo uma expressão de uso corrente na nossa língua, não é nenhum mito. Estamos aqui a falar de uma civilização feita de gente que cobre um ovo de barro, cinza, sal, cal e cascas de arroz durante meses para produzir o famoso “pei-tan” (皮蛋), o “ovo centenário”, que demorou séculos a construir uma muralha que é o seu orgulho, que ensina as gerações seguintes a lançar as sementes ao vento para que aquelas que se seguem possam um dia fazer uma colheita próspera. O próprio carácter chinês de “paciência”, 忍,”yan” no dialecto cantonense, é composto por outros dois: 刃, que significa “lâmina”, e 心, outra vez o “coração” – e quem disse que os chineses não são também românticos? Este carácter composto diz-nos que praticar esta virtude da paciência pode ser uma tarefa difícil, dolorosa, como uma “faca (lâmina) no coração”. Não está ao alcance de todos, mas a persistência será sempre recompensada, ensinando a saber esperar e com isso ter um “coração de ferro”, capaz de resistir às “facas” da adversidade, e com isso ter o génio para contornar qualquer obstáculo. O sucesso imediato nunca é duradouro; não há rio que tenha galgado os vales à pressa e tornado férteis as suas margens. Em suma, “Roma e Pavia não se fizeram num dia”, e perante estas evidências, esta expressão ganha um novo sentido.
Mao Zedong, fundador da República Popular da China, pode não ter sido o príncipe perfeito – muito longe disso – mas tinha entre as suas virtudes a paciência. Durante a visita de Nixon em 1972, falou-se de Taiwan, e o Grande Timoneiro disse ao presidente norte-americano que a ilha nacionalista considerada “rebelde” por Pequim “pode esperar 100 anos”. E deste milagre da diplomacia que foi o encontro dos líderes de duas das maiores potências antagónicas do planeta, foram lançadas as sementes das relações sino-americanas. Muitos anos antes, Estaline havia incitado o seu amigo Mao a “expulsar a canalha estrangeira” dos territórios de Macau e Hong Kong. O presidente chinês não se deixou levar pelos inebriantes fumos revolucionários da época, e deu a estas duas regiões o tempo necessário para que o regresso à pátria acontecesse com naturalidade – e em boa hora, temos que reconhecer. Mesmo quando aconteceu, e já sem Mao, foram-lhes dados mais 50 anos debaixo de um “segundo sistema”. Agora quem se compromete a esperar mais cinquenta anos quando o mais fácil seria a integração incondicional na China? O que é “fácil” não agrada ao paladar de quem olha mais longe no horizonte. Quem estrelar um ovo hoje, nunca terá um “ovo centenário” no futuro.
Mas enquanto a paciência chinesa vai lentamente chamando estes dois filhos para o regaço da sua mãe com um canto delicodoce, um deles comporta-se como um menino traquinas, o outro como um piegas. Em Hong Kong fala-se de democracias, de sufrágios directos, de coisas que a mãe não gosta. Em Macau há pressa de ir correr para o colinho, e enquanto a mãe pergunta se não prefere antes mais algumas bolachinhas, este filho vai fazendo as malas e pergunta: “então vamos a isto ou quê?”. Esta pressa no agrada à mãe. Estará o filho mesmo preparado? Não lhe fará mal tanta pressa e tão pouca paciência, ou nenhuma? A vontade com que lhe faz todos os favores, a maneira como bate o peito e lhe faz juras de amor eterno, a forma como ignora as vozes que lhe sussurram no ouvido que o melhor é esperar mais um pouco, tudo isto deixa a mãe apreensiva. Estará este filho com febre? Pobre mãe que tem dois filhos que tantas dores de cabeça lhe dão. Um tão irrequieto e desobediente, outro tão passivo e efeminado. Tão lingrinhas.
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