sexta-feira, 20 de dezembro de 2013
Estamos fechados, volte mais tarde
Realizou-se ontem o jantar de Natal do meu serviço, um evento sempre especial, a que terei faltado apenas uma vez em vinte anos, se a memória não me falha. E foi apenas por motivo de força maior. Esta é uma daquelas coisas que mesmo não estando muito para aí virado, sempre é um jantar de borla, e no fundo é isso que se leva desta vida. Mesmo a perspectiva de encarar durante as horas de lazer aquela gente desagradável com que somos obrigados a trabalhar não me incomoda. Se começarem a chatear, digo-lhes que comam mais, e pode ser que descubram na mastigação uma alternativa à calhandrice e à conversa da treta. Só precisam de ter cuidado para não morder a língua, pois ainda se arriscam a morrer do próprio veneno.
Este ano o jantar de Natal - que com a excepção da distribuição de prendas no final tem muito pouco de "natalício" - foi num dos restaurantes do Galaxy, na "strip" do COTAI, na Taipa. Prefiro quando o jantar se realiza na península de Macau, mas apenas por uma questão de logística. O ano passado foi na Ponte 16, cinco minutos a pé daqui de casa. Teria sido perfeito, não fosse pelo facto de não ter sido nada de especial em termos de ementa. Pensando bem não me recordo de nenhum jantar de Natal que tenha sido memorável em termos de comida ou de serviço. Acabo por ir na mesma, quer seja na Taipa ou em Coloane (há uns anos foi no Westin), mas não tendo carro, dá-me mais jeito que seja em Macau, para não precisar de depender de boleia ou dos transportes públicos. E reparem que já nem menciono os táxis. Já os risquei da minha lista mental de alternativas.
Como estou de férias e não me apeteceu andar a chatear nenhum colega com carro que viva em Macau resolvi ir apenas com o meu filho, e pelos meus próprios meios. Pensei em tomar o "Shuttle Bus" gratuito que vai directo para o Galaxy, e que se pode apanhar junto à sede do Banco Luso Internacional, na Praia Grande. Combinei encontrar-me com ele nesse mesmo local às 18:30, e pensei em chegar alguns minutos antes para guardar um lugar na fila. Era o chegavas, coração. Quando vi a tal fila, que começava à porta do Edifício anexo ao banco, fazia dois "caracóis" e acabava perto do Restaurante Solmar, caiu-me o queixo ao chão. Seria bem mais que uma centena de pessoas, arrisco-me a dizer 150, ou talvez ainda mais. Atendendo que cada um destes autocarros leva cerca de 40 passageiros, só ia chegar ao Galaxy a tempo de lavar os pratos.
Procedi de imediato a uma mudança de planos, liguei para o meu filho e combinei apanhá-lo a meio do caminho, e depois logo se via. Antes disso perguntei ao funcionário do Galaxy ali presente qual era a frequência do "shuttle bus", e ele respondeu-me "dez minutos". Devem-se ter passado dez minutos inteiros desde o momento que ali cheguei até ao momento em que decidi pisgar-me dali para fora. Esta deve ser uma doença rara, encontrada apenas em Macau, e somente no trânsito. Dez minutos são 600 segundos em qualquer parte do mundo, mas aqui é preciso ter em conta a inflação, o câmbio do renminbi, e já para não falar da especulação, é claro.
Encontrei-me com o filho e decidimos apanhar um autocarro. O 11, o 22, o 33, o 99, outra porra qualquer que fosse para a Taipa. Se me deixasse à saída da ponte já não era nada mau, e até se fazia o resto a pé. Enquanto me dirigia à paragem mais próxima, fiquei a pensar em toda aquela gente que esperava pelo "shuttle bus" gratuito para o Galaxy, especialmente os do fim da fila. Será que não têm 4,20 patacas para apanhar o autocarro? Ou desconhecem que existe outra alternativa além daquela? Se calhar são turistas, estão de férias, e por isso não têm pressa, mas esta é uma explicação que não consigo aceitar; ia-me arrepender daquele tempo perdido quando estivesse no meu leito de morte. Quero acreditar que se trata apenas de teimosia. Sim, é isso. Este autocarro é gratuito, eu tenho o direito de ir nele, e daqui ninguém me tira. Achas mal? Então vai tu embora, que eu não me queixo. São opções de vida, enfim.
Na paragem da Av. Infante D. Henrique, em frente ao Pacapio, onde estavam dezenas de infelizes à espera do "seu" autocarro. Fiquei a coçar a cabeça sem saber muito bem o que fazer. Juntava-me àquela mole humana, que empurra, aperta-se e espreme-se para dentro do autocarro, como se fosse o último para o "bunker" antes de se dar o holocausto nuclear? Daria para suportar o sadismo do motorista, que mesmo com o veículo lotado além da sua capacidade continua a deixar as pessoas entrar, condensando-as, como se estivesse a jogar Tetris humano? Devia juntar-me a esse grupo de gente infeliz, que entra na mesma, em prejuízo do mínimo de conforto e ainda sujeito a ir durante vinte minutos com um sovaco encostado na tromba? Foi aí que o pequenote deu uma boa sugestão: "vamos apanhar ali na Praça Ferreira do Amaral". Ora aí está, uma ideia genial. Que rapaz inteligente, tem mesmo a quem sair.
Pelo caminho passámos pela Escola Portuguesa, onde já se avistavam alguns táxis encostados ao passeio junto do Grand Lisboa, com o motorista lá dentro mas o letreiro de "fora de serviço" bem visível no vidro da frente. Junto ao antigo Lisboa havia mais dois ou três na mesma situação. Estes taxistas esqueceram-se completamente do juramento que fizeram quando abraçaram a profissão de Travis Bickle, o "Taxi Driver" de Scorsese, e agora vendem-se a quem paga mais. São prostitutas motorizadas, com quatro rodas. À porta do Grand Lisboa, na paragem de táxis, estavam cerca de vinte pessoas à espera. "Não são assim tantas", observou o meu filho. Podiam ser três como podiam ser 100, que no lugar deles ficaria revoltado. Não é aqui uma paragem de taxi? Onde estão os táxis que supostamente deviam passar por aqui? Senti pena das criaturas. Fazem-me lembrar aqueles tipos que marcam um encontro com uma miúda, ela não aparece, e ao fim de duas horas de espera dizem "epá estou farto; dou-lhe só mais meia hora e depois vou para casa".
Finalmente a Praça Ferreira do Amaral, onde fica o terminal de autocarros. Aqui dez minutos são mesmo 600 segundos, apesar de não se registar uma diminuição no número de pessoas à espera, ou melhoras no aspecto da sobrelotação do transporte. Mas olhando para o lado positivo, a ponte que nos separa da Taipa é mesmo ali em frente, e o risco de ficar preso no tráfico era reduzido. Entrámos no primeiro que ia para a Taipa, o 28A, e antes que pudesse dizer "nakakatakot", estava do outro lado do rio. Foi apenas mais cinco minutos até nos apearmos na velha Taipa, perto do hospital Kiang Wu, e dali até ao COTAI foi só atravessar a estrada. E o mais importante de tudo: sobrevivemos.
Começo a sentir que estou a ficar com agorafobia: medo de multidões e espaços abertos. Só me sinto bem em casa, e fico arrepiado quando penso em qualquer compromisso no outro extremo de Macau ou nas ilhas. Não sei se estou a enloquecer, mas quando circulo durante mais de vinte minutos na rua, dou comigo a praguejar, a blasfemar ou a dizer obscenidades a toda a hora. Acontece quando alguém que vai a andar na rua e a mandar mensagens no telemóvel cai para cima de mim, quando os carros me buzinam nos ouvidos, quando os autocarros fazem a curva em cima do passeio e deixam-me encostado à parede, a centímetros de ficar esmagado, ou quando estou com pressa e aparecem pela frente cortejos fúnebres de gente que está de férias, e acha bem andar por aí a olhar para o céu em horas de ponta. Gostava de pensar que sou eu que tenho um problema, e tal como Cristo, não me importaria de ser sacrificado para salvar estas pobres almas.
Mas não, não vou engolir essa. Afastem de mim essa merda desse cálice. Não vai ser por eu deixar crescer a barba, o cabelo e as unhas dos pés e ficar em casa a tremer entre os lençois que o problema vai ficar resolvido. Ao contrário dos residentes de Macau, que se quedam sentados à espera que esta SIDA funcional de que Macau padece fique curada, eu não me calo, nem vou virar a cara à luta. Temos uma cidade a rebentar pelas costuras, mais gente do que a capacidade dos passeios, mais veículos do que as nossas estradas permitem, equipamento e utilitários que não correspondem às necessidades. O melhor a fazer é fechar Macau para obras, ou como naqueles bares da moda muito requisitados, pendurar um letreiro à porta: estamos cheios, volte mais tarde. E que tal encerrar para descanso do pessoal? E bem precisamos de descanso.
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