sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Era uma vez...Macau


Era uma vez um povo que vivia num pequeno reino muito, muito longe daqui chamado Portugal, e que estava cansado de não ter nada com que temperar as febras e o entrecosto. Na pequena aldeia de Freixo de Espada à Cinta, para lá das montanhas do nordeste daquele reino, vivia um homem simples como qualquer outro. Um dia ao voltar da caça, pediu à mulher que lhe assasse uma perdiz para jantar. Enquanto comia, comentava com a companheira:

- Sabes o que fazia falta nesta perdiz, mulher? Um pouco de pimenta.
- De quê? - perguntou ela, sendo esta a primeira vez que ouvia falar de tal coisa.
- Pimenta, sabes? Umas bolinhas pretas que conferem aos alimentos um paladar mais bravo.
- Bolinhas pretas...paladar bravo...pólvora, queres tu dizer, homem de Deus?
- Qual pólvora qual quê! Pimenta, sua estúpida! PIMENTA!
- Olha meu amor, porque é que não vais ver se eu estou ali na China?

E o homem foi mesmo! A esposa inconsciente tinha ouvido esta expressão no mercado da aldeia, mas não tinha ideia do que era a China, e se era um lugar, onde ficava. Alguns historiadores defendem uma versão alternativa dos eventos; o que aquela mulher disse realmente foi "vai ver se eu estou ali na esquina", mas como era transmontana, em vez de "esquina" saiu-lhe "china". No momento em que o marido bateu com a porta, a donzela pensou que ele tinha ido até à taberna afogar as mágoas, como era costume. Ao fim de um mês, apercebendo-se que estaria a demorar mais que o habitual, começou a desconfiar que teria ido um pouco mais longe, e se calhar era melhor não contar com ele para o jantar durante um bom tempo.

Este homem que bateu com a porta aborrecido com a perdiz insonsa que a esposa lhe serviu era nem mais que Jorge Álvares. Aposto que isto é um facto que os cidadãos que prestaram homenagem ao navegador no último Sábado não sabiam. Partindo rumo a Oriente, chegou primeiro a Malaca, e exactamente há 500 anos chegou pela primeira vez à costa da China. Exactamente não é bem assim, pois a chegada a Cantão terá ocorrido em Maio de 1513, pelo que a tal homenagem surge um pouco atrasada. A primeira coisa que Jorge Álvares disse quando chegou à China? "Cinco quilos de pimenta, fáxavôr". Como não se conseguiu fazer entender, levantou ali um padrão, com o pedido e a sua morada de Freixo de Espada à Cinta, para onde podiam enviar a encomenda. O pedido e a morada foram apagados da pedra pelos elementos, pelo que só ficou a tarimba com a cruz de Cristo - era o equivalente ao papel-selado, naquele tempo.

Mais de vinte anos depois de Álvares ter chegado tão longe como Tuen Mun, actualmente um distrito de Região Administrativa Especial de Hong Kong, chegaram a um porto ali próximo outros tipos barbudos de ceroulas, que se haviam enganado no caminho depois de terem adquirido um nómio marado a um mercador cigano em Pegu. Ao avistarem um grupo de cinco pescadores chineses que jogavam "fan-tan" perto de um pagode junto à praia, resolveram pedir direcções. Um deles aproximou-se do grupo e inquiriu:

- Saudações, pagãs criaturas. Por Cristo, podeis-me dizer onde estamos? Temos uma paródia mais logo em Central e não nos queriamos atrasar.

Julgando tratar-se de alguma troupe de eunucos que havia ficado à deriva no mar sem fazer a depilação durante meses, os pescadores ignoraram-nos e continuaram a jogar, até que o nobre fidalgo luso tira a espada da baínha e corta a cabeça a um deles. Um dos outros exclama irritado:

- F...-se pá! Fiquei com a farda toda cagada de sangue, o que é vocês querem, afinal?
- Agora que tenho a vossa atenção, podeis-me dizer que lugar é este? - pergunta o português, satisfeito por ter finalmente estabelecido contacto com os nativos.
- Aquilo ali? Magé Miao (媽閣廟) - respondeu o chinês, enquanto apontava para o templo.
- Muito bem - retorquiu o português - já que aqui estamos e vocês são umas aventesmas, importam-se que fiquemos por estas bandas, criemos um entreposto comercial e divulguemos a fé cristã?
- Divulguem o que quiserem, desde que não chateiem muito e nos deixem jogar em paz...
- Obrigadinho. E olha, já agora, desculpem lá isso do vosso amigo que acabei de decapitar.
- Não faz mal. Ele estava a fazer batota e nós iamos envenená-lo mais tarde, mas vocês bárbaros tinham que vir aqui sujar isto tudo de sangue.

Os navegadores tiraram as malas do barco, plantaram o padrão e assentaram arraiais. Um deles ficou encarregado de ir a Lisboa comunicar a sua majestade D. João III a conquista de mais um território para a coroa:

- Vaes a Lixboa e dize a soa majestade, por graças de Deos, que o reino ganhou maes una terra - disse o cronista de bordo ao rapaz a quem incumbiram a tarefa de viajar à capital do Império.
O rapaz, que era um bocadinho lento, ficou irritado:
- Porra! O que é que está praí a ladrar? Fala português, caraças!
- Ok, ok, não é preciso ofender. Vais lá ao rei e dizes que adquirimos Magé Miao.

Como o rapaz era meio idiota e completamente analfabeto, e o iPad ainda não tinha sido inventado, foi durante a viagem de meses a repetir o nome da nova terra que tinham acabado de ocupar. "Magé Miao, Magé Miao, Magé Miao...", repetia ele vezes sem conta, e era a última coisa que dizia quando ia dormir, e a primeira quando acordava. Chegado a Lisboa, anunciou a D. João III a boa nova:

- Majestade! Tenho a honra de anunciar que ganhastes mais um território para reinar!
D. João, aborrecido, boceja e desabafa:
- Outra? Preferia antes um cavalo. Deixa-me adivinhar...é na Ásia, não é? Na India? Já sei, na China!
- Sssiiim... - responde o rapaz meio atrapalhado - é na China, de facto.
- E como se chama esta nova terra, ó pateta?
- Xiii...era...hmmm...Ma-qualquer coisa....Ma...cau? Macau!
- Muito bem, fica registado. Agora vai-te embora que trazes contigo o cheiro dos setes mares, e olha que não te estou a elogiar.

Em 1557 os portugueses estabeleceram em Macau um entreposto comercial, em regime de arrendamento, e pagavam anualmente uma renda de 500 táeis em prata ao imperador da China. Como isto dos entrepostos marítimos dá muito trabalho, mandaram trazer cinco mil escravos, que ficaram aqui a morar a paredes meias com os 20 mil pescadores locais. Os escravos trabalhavam, os pescadores pescavam e jogavam "fan-tan", e dois mil portugueses mandavam neles todos. Para ter um pouco de mão nesta salganhada, o Papa estabeleceu em 1576 a diocese de Macau - não perderam tempo. Cada vez que alguém se portava mal, era só contar um conto da carochinha, que um homem lá em cima ia ficar muito zangado, e entrava logo na linha.

Em 1580 acontecia uma grande desgraça: a coroa portuguesa juntava-se à espanhola, debaixo da bandeira da última. Como ainda nos anos 90 do século XX os jornais portugueses demoravam quase um mês a chegar a Macau, naquele tempo ninguém deu por nada, até um belo dia, em 24 de Junho de 1622, quando se avistou na Barra uma frota de navios estrangeiros. Eram uns tipos de socas, que naquele tempo andavam sempre mal-dispostos porque ainda não conheciam as qualidades terapêuticas da "passa", que na época era apenas conhecido por cânhamo: os holandeses. Eram 800 holandeses armados até aos dentes, e comandados pelo capitão Kornelis Reyerszoon, e na capitania de Macau entrava-se em pânico:

- O que vamos fazer??? - perguntava um alterno português ao seu capitão.
- Ora, manda lá os escravos para dar porrada aos gajos quando eles desembarcarem na praia.
- E nós?
- Ora...nós vamos ficar aqui a...er...controlar as operações pelo radar.
- O que é um radar?
- Cala-te e vem comigo. Vamo-nos esconder lá para a ilha da Montanha, ou para a Penha, sei lá, vamos bazar daqui que se faz tarde.

E assim deu-se a famosa batalha de Macau, e como ainda hoje os portugueses ganham todas as batalhas aos holandeses (a última foi a batalha de Nuremberga, em 2006), saimos vencedores. Tudo graças a um padre, de seu nome Ró, que já perdido de bêbado por ter estado a festejar o S. João, disparou acidentalmente um tiro de canhão do alto da Fortaleza do Monte, e acertou em cheio no navio holandês que transportava as munições, causando uma enorme explosão. Posto isto, os invasores decidiram retirar:

- Vamos embora que já me estragaram o dia! - exclamou o capitão Reyerszoon.
- E a batalha, ó chefe? - perguntou um dos soldados "laranja".
- E isso tem alguma importância? Mesmo que vencessemos, os fogos de artifício estavam dentro do barco que rebentou! Como é que iamos festejar?

E assim Macau continuou sob a alçada portuguesa, tudo graças ao padre Ró. Ao ver que tinha acertado em cheio no "coração" do inimigo, apesar da visão turva, o clérico regozijou-se:

- Ehhh...ganda sorte, pá. Se eu quisesse fazer de propósito, não acertava. Se o "mark-six" já tivesse sido inventado, ia comprar um bilhete.

Os portugueses continuaram a pagar renda até 1863, altura em que na China decorria a Guerra do Opio. Quando o emissário dos mandarins chegou a Macau para receber a prata, ressacado, com ar de carocho e a coçar-se constantemente, um oficial português recusou-se a pagar:

- Olha que é para teu bem. Já sei que depois vais gastar tudo em droga, seu desgraçado.

Macau era um cantinho português à beira-mar chinesa plantado, e durante a II Guerra Mundial de 1939-45, que foi uma coisa horrível, a cidade serviu de porto de abrigo a milhares de refugiados chineses, cujos descendentes são os tipos e as tipas que actualmente vemos por aí na rua todos os dias.

Um dia a China resolveu juntar os cacos, e em 1949 apareceu a República Popular. Ninguém ligou muito ao assunto até Dezembro de 1966, quando se deu um incidente que ficou conhecido por "12,3" (porque teve início a 3 de Dezembro, ou 12/3 na versão inglesa, e não tem qualquer relação com o concurso televisivo apresentado por Carlos Cruz). Este "12,3" surgiu na sequência da Revolução Cultural, um período conturbado na China, onde tudo acontecia ao contrário: os filhos mandavam nos pais, os alunos ensinavam os professores, os cães eram os donos dos homens e as galinhas comiam as pessoas - garanto que vocês não gostariam de ter estado lá. Foram dois meses críticos para Macau, que não sentia uma ameaça tão grande desde a chegada dos holandeses. Só que esses eram laranjas, e estes outros eram vermelhos.

O "12,3" deu força aos "patriotas" e às suas famílias, que mais tarde viriam a tomar conta disto tudo. Podia ter sido mais cedo, pois após a revolução de 25 de Abril em Portugal, um certo ministro das colónias que estava encarregado de livrar-se das mesmas, queria entregar Macau à China, assim sem mais nem menos. Passo a contar uma conversa secreta que decorreu entre esse ministro e um ilustre politico de Macau, decorria o ano de 1975:

- Muito bem, sr. ministro, agora que mandou Angola e Moçambique aos cães, o que pensa fazer com Macau.
- Entregá-lo à China, ora essa.
- Á China? Você está louco? Sabe o que está para aí a dizer?
- Sim e não, respectivamente.
- Olhe a gente faz assim: o senhor deixa Macau em paz, e prometo que lhe damos uma ajudinha para chegar um dia a chefe de estado, pode ser?
- Meu amigo, já não está cá quem falou, eh eh.
- Livrámo-nos de boa. O senhor diz muitos disparates, sabia?
- Ah ah, o melhor é você e os outros se irem habituando.

E foi por um triz, e parecia que nunca mais iamos ter paz. Em 1976 Macau passou ao estatuto de "Território chinês sob administração portuguesa", e nos anos 80 foi oficializada a entrega do território à China, em 1999. No início dos anos 90 foi retirada a estátua do antigo Governador Ferreira do Amaral da Praça que também levou o seu nome, e diz-se que esse foi o momento em que Macau deixou de ser governado pelos portugueses. Ferreira do Amaral foi um militar que não colhia a simpatia da população chinesa, que quando percebeu que ele já não tinha um braço, resolveram aliviá-lo também do peso da cabeça.

Esta não é a História oficial de Macau, e nem tudo o que foi aqui dito é verdade - ou pode ser, quem me pode desmentir? No entanto estes 500 anos que condensei num simples (mas extenso) artigo são uma narrativa aberta, e podem-se acrescentar alguns factos ainda mais malucos que estes inventados por mim agora mesmo. Mais ou menos precisos, todos estes acontecimentos passaram à História. E desde há 14 anos que é assim. Assinalam-se hoje os 14 anos do fim de Macau, e do início da RAEM. E mesmo esta tem os seus dias contados...

3 comentários:

  1. Caro amigo
    Havia muito tempo que não via uma peça com tanto humor.
    Ao nivel do L'Arrache Coeur do Boris Vian, mas com mais humor.
    Está de parabéns
    Grande abraço
    Alfredo Rodrigues
    http://www.queroemigrar.com

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  2. Muito obrigado pelo seu comentário, e obrigado a todos pelo "feedback" muito positivo que o artigo recebeu no Facebook. Já agora queria dizer que editei mesmo agora o texto, pois na parte sobre a Revolução Cultural, onde se lia "os pais mandavam nos filhos", era obviamente o oposto.

    Cumprimentos.

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  3. O que eu me ri com este artigo! Muito bom mesmo!
    Já acompanho o blog há alguns anos e noto com satisfação que o Leocardo tem vindo a melhorar de forma consistente a qualidade da sua escrita: havia aí um talento escondido, amigo! Aliando isso a uma grande criatividade, criou um estilo muito característico de escrever. Parabéns e espero que a inspiração continue por esses lados, para gáudio de todos.

    PS: Há uma gralha no diálogo dos marujos com os pescadores que estava a jogar: acho que eles queriam ir a Central "logo" e não "longo".

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