quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Agnóstico até provas em contrário


Estava a passar a véspera de Natal na casa de uns amigos, com a televisão sintonizada no canal 1 da TDM, mas sem som, e por volta das 11 da noite noto que estão a transmitir a Missa do Galo, em directo da Igreja da Sé de Macau. Nunca fui a uma destas missas, ou qualquer outra, para esse efeito, mas respeito quem opta por interromper a Consoada para ir até à Igreja ouvir um sermão, e até acho bem que alguém se lembre de que a data tem primariamente ums significado religioso. Mais tarde a RTPi transmitiu a mesma função em directo do Vaticano, conduzida pelo Papa Francisco, que faz aqui a sua estreia. Em Macau a missa pareceu-me mais ligeira, mais digerível, enquanto em Roma foi mais pesadona, mais taciturna. Noutras palavras: chata que até deu dó. Até a voz dos comentários em português era uma cura eficaz para a mais persistente das insónias; a certa altura diz: "nasceu o nosso Salvador! alegremo-nos! não há lugar a tristezas", com a voz de uma criança prestes a desatar a chorar. Se estavam ali a celebrar o nascimento de Cristo, para quê aquelas caras de funeral, aqueles cânticos deprimentes, aquele ritual lento e arrastado? Não estou à espera de música de discoteca e dançarinas do ventre, mas é esta a alternativa que oferecem a passar o serão em casa com a família? Não admira que os cultos protestantes vão ganhando cada vez mais adeptos.

Recentemente soube do caso de um tipo que conheci toda a vida que começou (por influência da esposa) a frequentar um desses cultos protestantes, umas daquelas assembleias de Deus que O próprio nunca convocou. Quando lhe perguntei que bicho lhe mordeu, ele que sempre foi um Anti-Cristo, um dos meninos de coro de Satã, um dos seus acólitos predilectos, ele respondeu-me que "estava a tentar essa via". Isto soa-me sempre a uma atitude desesperada, de alguém em fase terminal de uma doença qualquer em busca de conforto espiritual - e de um milagre, ou aqueles toxicodependentes reabilitados que procuram algo para preencher o vazio deixado pelo cavalo. Em ambos os casos a religião é encarada como uma muleta, não como uma viragem para os caminhos da fé. Desejo-lhe a melhor das sortes nesta sua nova empreitada, especialmente na função de ocultar a capa e os chifres de capeta e o cheiro a enxofre. Caso o templo onde se realiza a tal Assembleia não-convocada por Deus tenha carpete, as marcas de pata-de-bode que ali vai imprimir vão denunciá-lo.

Mais uma vez gostava de lembrar que respeito todas as religiões, fés e crenças desde que no advoguem a violência ou quaisquer comportamentos anti-sociais, e nestes incluo qualquer atentado às liberdades individuais ou lei que nos tenhamos comprometido a cumprir na nossa vida em sociedade. É preciso estar sempre a deixar claro que respeito as convicções alheias quando discuto estes temas. Escrevendo ainda vou dizendo qualquer coisa sem ser interrompido, mas nas conversas com os crentes sou interrompido de dez em dez segundos e tudo o que consigo dizer é "eu respeito, mas...". E sou interrompido com ralhetes, e não com factos que refutem as dúvidas que tenho sobre os dogmas em que eles acreditem, mas a que eu me recuso sem que me esclareçam as dúvidas. Mesmo os que têm o mínimo de legitimidade, conhecimentos teológicos e paciência para debater civilizadamente o assunto comigo acabam por desistir, deixando-me sem respostas. E de facto como se responde a algo para que não existe resposta? Para quem crê em dogmas a fé é prova quanto chega, e para eles questionar é o mesmo que duvidar.

Custa muito ser agnóstico. Nem os próprios ateus, com quem muitas vezes somos confundidos, gostam de nós. Para esses e para os crentes estamos sentados na linha divisória do campo de batalha, e exigem que tomemos partido de um dos lados do combate. Querem obrigar-nos a acreditar ou negar categoricamente em algo sem nos darem provas da sua existência ou ausência. Pessoalmente prefiro ficar exposto ao fogo cruzado do que tomar partido de um dos lados, e acreditar numa hipotética mentira. Não preciso de me convencer como que hipnoticamente de uma coisa ou outra para viver. Oxigénio, sim, preciso, mas acreditar ou duvidar de algo "porque sim", passo. Nem é uma daquelas coisas que me tira o sono à noite. Se optando por um dos lados vou ganhar mais amigos, deixo bem claro que não preciso de amigos desses. Se me disserem que tomar um dos partidos vai-me tornar numa melhor pessoa, eu discordo. Vai-me tornar numa pessoa que acredita em algo sem conseguir prová-lo. Ou seja, num teimoso.

Agora que penso nisso, deve ser mais complicado ser ateu do que agnóstico agora durante a quadra natalícia, pelo menos para os ateus que têm uma família de crentes. Pode recusar-se a celebrar, caso seja maior e vacinado, mas caso contrário é muito possível que uma eventual recusa o faça ser levado até à mesa da Consoada por uma orelha. Caso desatem todos a rezar, pode recusar, altura em que lhe recordam que o Pai Natal não deixa presentes no sapatinho dos ateus - e de nada adianta tentar explicar que o próprio conceito de Pai Natal é marcadamente ateu. Nunca fui apanhao numa situação desta natureza, em que fosse "obrigado" a rezar, ou num local onde todos estivessem a rezar: ou seja, nunca estive a bordo de um avião prestes a despenhar-se ou algo do género. Se insistirem que ore junto com eles, não me importo de juntar as mãos e fechar os olhos em silêncio, enquanto espero que a pancada passe, e aproveito para pensar noutra coisa qualquer. Nos resultados da bola do fim-de-semana anterior, por exemplo. Agora se me pedirem para recitar alguma oração ou cântico, aí peço desculpa, mas não posso, mas apenas porque não sei. É como se pedissem para dançar o "cha cha".

A intolerância que crentes e ateus têm por nós só no adquire os contornos violentos da intolerância que as religiões têm umas pelas outras porque não queremos angariar seguidores, não queremos "agnosticar" ninguém, nem queremos destruir ninguém em nome de algo que nem sabemos se existe, ou ocupar o território de alguém em nome de uma convicção. Só queremos que nos deixem em paz. Mas isso não chega, pois o simples facto de pôr em causa os dogmas que eles tomam por certezas absolutas, alguns deles verdadeiros contos da carochinha, é tido como um "insulto" - e por isso metem-nos no mesmo saco dos ateus: quem não acredita cegamente é ateu. Os crentes pedem as não-crentes (nós e os ateus) que os respeitem, mas o contrário já não é bem assim. Fazem-me lembrar alguns países islâmicos que proibem todas as restantes crenças, mas começam com lamúrias quando outros países proibem o Islão, e reclamam "liberdade de culto". E porque é que são tão parecidos? Porque nem é preciso proibir o Islão; basta manifestar uma ligeira antipatia para que chamem pelo tio e os acusem de "intolerantes".

Os ateus são os antípodas dos crentes, e lá por estes nos odiarem, também não querem nada connosco, pois deixamos em aberto a possibilidade da existência de Deus, mesmo que não haja um meio de o provar. Os ateus são arrogantes, e têm razões para isso. Alguns dos argumentos usados pelos crentes são risíveis, e desacreditam o seu dogma. O problema é que os ateus também não conseguem provar a não-existência de Deus, e não basta contrariar os crentes - isso é fácil - Deus pode existir, mesmo que os crentes não tenham razão, e não seja "Deus" como eles o idealizaram e acreditam que existe. Uns acreditam piamente que vão ganhar um lugar no tal Céu, outros estão convencidos que se vão transformer em fertilizante. Ora se duvidar de Deus me vai fazer passar a eternidade a sofrer os horrores do Inferno, ou em alternativa vou fazer parte de uma nutritiva salada ou uma rica sopa de couves, venha o Diabo e escolha. Epá pois é, esse também não existe. Ou existe? Posso provar? Claro que não, sou agnóstico! E você, no que acredita e consegue provar?

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