segunda-feira, 25 de novembro de 2013
Sua alteza, o sr. rato - o mistério das uvas
PARTE I : SUA ALTEZA, O SR. RATO
Começa a ser cada vez mais difícil entender o sr. rato. O que faz? De onde vem? Para onde vem? Quais os seus sonhos e ambições? Será que existe uma rata no seu coração de rato? Acredita no amor? E em Deus? Tudo o que sei dele é aquilo que cada vez menos ele me deixa saber. Nestes últimos 6 dias desde o incidente com o caixote do lixo tenho feito tudo para o encontrar, para passar tempo com ele, para poder entender melhor a sua natureza de criatura imunda e rastejante. Retiro, imundo não. Em vias de higienização, isso. Os meus últimos avanços nesse grande projecto científico a que dei o título temporário "O que come o sr. rato" redundaram em fracasso. Começo a pensar que o bicho é esquisito, ou finório. Se calhar é da realeza. Sendo um "ratus norvegicus", pode ter vivido em tempos em Skaugum, onde era rato do rei Haraldo V, enquanto o seu pai e avô tinham roído o queijo de Olavo, o antecessor. Pode ser que tenha sido enxotado pela rainha Sónia por lhe ter entornado o akevitt no vestido. É bem possível, pois é preciso não esquecer que o sr. rato é um pouco trapalhão.
Na terça-feira, depois daquela incursão pelo lixo nas primeiras horas do dia, deixei-lhe arroz cozido. Mais uma vez mandou-me a mim comê-lo. Desconfio que o sr. rato não gosta de nada que não esteja bem temperado. Sim, anos a chafurdar no entulho deixaram-lhe um apetite pelos sabores mais intensos. A especialista em nutrição de quadrúpedes caninos, roedores e marsupiais (a minha irmã) ficou de me passar um pouco daquela ração que dá ao seu esquilo, mas enquanto isso precisava de improvisar. Na quarta à noite fui ao supermercado e encontrei um pacote com uvas pretas, marcado a duas patacas. Perfeito para o sr. rato, pensei eu. Cortei-lhe as uvas ao meio, cortes longitudinais, e deixei-as no pratinho com o desenho do Templo da Barra juntamente com quatro pedaços do seu chocolate preferido. Na manhã seguinte tinha comido algumas (poucas) uvas, mas ao chocolate chamou-lhe um figo. Que parvoíce a minha...o sr. rato ficou com a boca doce do chocolate e achou as uvas insonsas. Amanhã deixo-lhe apenas uvas.
Na noite de quinta para sexta, o sr. rato encontrou apenas uvas no pratinho com o desenho do Templo da Barra. Na manhã seguinte, depois do sono dos justos, acordo perante um cenário caótico, pior do que aquele que tinha encontrado naquela infame terça-feira. As uvas tinham sido todas comidas, mas à volta do prato estavam duas ou três cascas, e, audácia das audácias, mais uma em cima do estofo do cadeirão da sala. Como se atreveu o sr. rato a sentar-se onde se sentam os homens e as mulheres para comer uma metade de uma uva, deixando a casca como marca da sua ousadia? Peguei na casca e fiquei surpreso com o que vi. A polpa da uva estava compeltamente comida, e a casca intacta, ainda redonda, fazia lembrar um barquinho. A precisão dos dentes de roedor nato que é o sr. rato tinham separado quase mecanicamente a polpa da casca. Fascinante, o trabalho de dentes do sr. rato. Mas uma dúvida assombrava-me: se não gostava da casca, porque tinha deixado apenas algumas? Teria comido a casca das outras? Eram umas boas vinte e tal metades de uva, e nesses dois dias tinha encontrado apenas cinco ou seis. Um mistério que vim mais tarde a desvendar e
me deixaria ainda mais assombrado. Era o mistério das uvas.
(INTERVALO E INTERLÚDIO COMERCIAL)
(FIM DO INTERVALO)
PARTE II: O MISTÉRIO DAS UVAS
Sexta-feira durante o dia encontrei-me finalmente com a especialista em nutrição de quadrúpedes caninos, roedores e marsupiais (a minha irmã), que me passou uma pequena quantidade da ração que habitualmente dá ao seu esquilo,o suficiente para uma refeição. Chegado a casa essa noite, sento-me em frente ao computador, e quando me preparo para me virar para o ecrã, reparo em algo debaixo do cadeirão da sala, mesmo junto à parede, algo que se assemelhava a manchas escuras. Aproximei-me, e foi com grande espanto que vi que eram...cascas de uva. As que faltavam, as daquela noite e as da noite anterior. A peça que faltava do puzzle. O sr. rato levou as uvas da cozinha até à sala, onde se abrigou debaixo daquele cadeirão chinês de pau-rosa envernizado para realizar o processo de separação da polpa. Foi aí que deduzi que a casca que tinha deixado em cima do estofo foi como que uma amostra: "é assim que eu quero as uvas, Leocardo". Para castigo deixou-me as cascas debaixo do cadeirão para eu limpar. Peço desculpa, sua majestade. Não se volta a repetir.
Ao limpar as cascas de uva notei a fascinante "craftsmanship" das favolas do sr. rato. A polpa havia sido clinicamente retirada do interior de cada uma das metades da uva, nem uma casca partida, nem um pequeno rasgo, nem uma marca de dentes. Foi como se a uva se tivesse evaporado, desintegrado do universo deixando apenas a cápsula. A maneira como o sr. rato ratou as metades daqueles bagos de uva é trabalho de ourives, requer a minúcia de um contraste. Devia ser considerado uma forma de artesanato reconhecido pela UNESCO como património intangível da humanidade. No fundo eu merecia estar ali a catar as cascas de uva deixadas pela sr. rato. Fui descuido da minha parte, ofender a sua alteza ratal. Eu tinha o dever, mais, a obrigação de descascar as uvas para o sr. rato, e dá-las à sua boca, se necessário. Fosse este ultraje cometido nos tempos do Imperador Ratão, e ele mandava-me cortar a cabeça, ou outra coisa que me fizesse mais falta. Bom, pelo menos não deixou nenhuns cocós no chão.
Essa noite foi a última vez que tive contacto visual como sr. rato. Deixei-lhe a ração para o esquilo no pratinho, no sítio do costume, aguardando pela sua opinião quanto a esta novidade gastronómica. Eram quase uma da manhã, estava sentado em frente ao computador, quando começo a escutar passos no sótão. O som dos passos tornavam-spulinhos à medida que se iam aproximando da escadaria. Era o sr. rato, sem dúvida. Mal me viro e olho para cima, vejo um vulto a esconder-se, rápido como uma seta. Insisti, fiquei de pé em frente à escada com as mãos na cintura, esperando uma nova aparição do sr. rato. É aí que se dá um contacto, que mesmo que ténue, foi repleto de significado. O sr. rato espreita por detrás do alçapão, mostrando apenas a cabeça. Olha para mim e mexe o focinho três vezes, como quem pergunta: "estás chateado comigo, gajo?". Permaneço imóvel e olhando para ele, como quem o convida a descer. O sr. rato desiste, dá meia-volta, e regressa à solidão e penumbra do sótão, preferindo aguardar pela hora que o gigante que permanecia do meio da sala fosse repousar.
Sábado de manhã, desilusão. O sr. rato não gosta da comida de esquilo. Isto pode ter algum valor científico para alguns, mas para mim não vale nada; fico sem saber o que dar ao sr. rato quando não consigo pensar em nada de original ou complicado para lhe oferecer. Dava mais jeito comprar um pacote de meio quilo daquela ração e deixar-lhe um pouco todos os dias. Afastou as sementes de girassol, cheirou o resto e mandou-me à fava. Era Sábado, e estava-me nas tintas para o sr. rato, portanto deixei a ração ali durante todo o fim-de-semana. Mas nem sinal do sr. rato. Foram dois dias de muita animação em Macau, e como realeza o sr. rato participou dos múltiplos eventos. Tivemos boxe, tivemos Alicia Keys, passaram por cá celebridades como David Beckham. Um fartote. Penso que rata da Paris Hilton piscou o olho ao sr. rato, mas ele é de sangue azul-fel, e não vai com qualquer uma. Pensam o quê?
Passei pelo supermercado aqui ao pé de casa ontem ao final da tarde, e vi lá um pacote com fatias de papaia madura a três patacas e meia. Está para o sr. rato, pensei. Tirei as cascas, deixei-as no prato e fui dormir. Esta manhã estava o repasto pela metade, e encontrei dois pedaços debaixo do cadeirão da sala. Devia ter ficado furioso, mas o sr. rato faz-me sorrir. Hoje vou deixar-lhe umas fatias fininhas de mozzarella, do meu estoque pessoal, e uns pedaços do chocolate que ele tanto gosta. Ele merece. Afinal não são todos que têm a honra de receber realeza em casa.
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